Lembro como se o agora estivesse aqui, se espreguiçando e com tempo de sobra. Acontece quando me aproximo dos portais onde meu amor esteve, algo me ascende, se assenta e acende. É quando inexiste chance para incertezas com seus olhares reticentes e cheios de tristezas. Quando abro a porta e o portal me encontra, entro sem medo. Revejo as bolitas de gude, o carrinho de rolimã, os milhões de peixes dando sopa no açude e o colégio de manhã. Estão ali, você vê? Olha a goiabeira, experimenta as uvas japonesas, as canções, os livros, a mãe chamando para o café da tarde, a fumaça vindo da cozinha, tudo circundado por uma certeza: tem um jogão rolando no campinho ao lado da igreja.
Quando descobri a vida em seu estado permanente, percebi (às vezes surpreso, noutras confuso ou preso) que tudo se trata de uma dança. É a mesma que anima a viagem dos cometas, as piruetas dos atletas, ou que te ajuda a contar as estações pelos tipos de passarinho. Uns cantam, outros beijam flores, todos inspiram mãos dançarinas. É onde se aninham todo tipo de esperança, acho que existe um vão ligando as mãos.
Na rotina em busca de razões enluaradas para as noites insones, penso que a melhor coisa que encontrei para o tanto e para o todo é que Deus não me deve explicações. Ele é breve, se entendermos suas cataratas, rios e canções. Ouça o riso que colocou em alguns luares, sua presença misteriosa e plena em todos os lugares, o humor enorme que demonstrou nos rinocerontes e a lembrança de tudo que entregou aos elefantes. Deus é terno, eterna memória de si em nós mesmos, mesmo quando estamos à esmo.
Aprendi que esquecido ou exilado, amando o amor vindo, chorando o amor indo, tudo me trouxe até aqui. E olha só: sorrindo. Estou nem pronto nem forte, mas ninguém pode dizer que desisti. Nem que a morte plena, a vida desistente de si mesma, tenha me atingido. Olhei teu lindo farol, segui Marte e vi os caminhos sendo iluminados. Entretanto, mais preciosos do que a chuva chegando na terra molhada são os lumes que surgem do nada, gente que te empresta um riso e que vela os sonhos que não tive em muitas madrugadas.
O tempo em que estive à deriva? Não saberia precisar. Apenas aceitei como precioso o impreciso e que às vezes é preciso se mentir contente para manter verdadeiro o riso. Mas vou dizer: que noites impressionantes, que ventos formidáveis, que ilhas, que fantasmas, que piratas, que praias. Minha nossa, quantos presentes quando a vida me trouxe tuas mil ausências. Quase perdi a voz gritando “amor à vista!”. Escrevi cartas náufragas ao amor distante. Descrevi a chegada tumultuada das caravelas, a vinda dos invasores, contei o que vi, do descobrimento aos descobridores. Entendo que a hora é de um andar lento, coração incerto (não sobre o que sente, bah, mas sobre como seguir batendo) caminhos retos. Então lembro que somos pequenas histórias, somos um momento, um olhar, uma lembrança, algum esquecimento. Somos uma brisa, um terremoto, um vendaval, um pensamento. Somos um sonho, somos um pedaço, estamos de partida, vivendo na chegada dos sentimentos.
37 comentários em “Ânima”
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Vou ler este texto algumas vezes, mas tenho a certeza que o recado é: Amo viver!!! Também amo viver e agradeço o dom da vida todos os dias! Abraços Mariel!
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O recado também é esse, Renata. Penso que o importante é termos a nossa leitura da vida. Abraço pra ti também!
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Lindo!
“Então lembro que somos pequenas histórias, somos um momento, um olhar, uma lembrança, algum esquecimento. Somos uma brisa, um terremoto, um vendaval, um pensamento. Somos um sonho, somos um pedaço, estamos de partida, vivendo na chegada dos sentimentos.”
Não há nada a adicionar depois disso.
Obrigada por essa bela leitura!
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Você me ensina a viajar, então caminhamos juntos. Obrigado você, mesmo, mesmo, mesmo.
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Lembro que a poesia nem precisa ser em verso e, então, ela escorre pelos poros.
Que leitura maravilhosa!!!
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Clau,que carinhoso o teu comentário. Desconfio que seja teu olhar gentil que enxerga a maravilha na leitura. Mas, mesmo assim, é tri bom ler teu elogio.
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O título logo me fez pensar em Jung… E lendo todo o texto, confirmou… Uau! Esse seu lado interior te enalteceu! És uma pessoa encantadora!
:)
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No interior da gente mora um matuto esperto pra caramba. Quando nos visita aqui fora, não falta pano nem manga, hum? Você é sempre tri gentil e isso é bem legal da tua parte!
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E então temos aí Mariel,turista em seu próprio coração.
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E temos um amigo com um olhar para a alma do mundo. A viagem é melhor assim, turística ou não.
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Aplausos!!!! Belíssimo poema para se ler e para se encantar…
Alguns trechos como: “O tempo em que estive à deriva? Não saberia precisar. Apenas aceitei como precioso o impreciso e que às vezes é preciso se mentir contente para manter o verdadeiro riso.” me lembraram esse pensamento que Jorge Luis Borges traduziu em seu Livro dos Sonhos.
“Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta e não sabia, ao acordar, se era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta, ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem.”
[Herbert Allen Giles, Chuand Tzu (1889)]
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Querido, a lembrança que você teve me honra e alegra, claro. Lendo o lance que o Borges traduziu, evidentemente fica clara a diferença de talentos. Mas ainda assim ganhei o dia com o teu comentário.
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Rsrsrs… O Borges foi só uma das lembranças dentre outras, como o Jung que já foi citado nos comentários! rs
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Eu sou tão pragmática, Muriel… Admiro-o muito por seus escritos; por sua capacidade de falar (magnificamente) do nosso eu. Obrigada pelas palavras.
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Vamos ser pragmáticos, a admiração é mútua então. Fazemos a mesma coisa, cada qual com sua letra, mas no fundo somos todos um só, buscando as mesmas coisas e descrevendo com os nossos talentos e limitações a parte vista da vida.
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De novo, falou bonito. Obrigada!
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Dançando aqui, na magia das tuas palavras. Tu me escreveu…Só não tinha o carrinho de rolemã…Mas isso, é só um detalhe.
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Dançar é ótimo, Mariana. E se não tinhas o carrinho de rolimã, que me rendeu cicatrizes que me orgulho até hoje, a diferença fica nisso. E como dizes, é um detalhe. Que bom você por aqui!
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Simplesmente incrível, querido Mariel… Palavras que me tocaram profundamente. Um beijo especial!
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Eba, você conseguiu escrever então. Estava preocupado com isso. Um beijo pra ti também. Vamos regando a amizade que a semente é das boas.
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E é a mais linda dança, do tudo com o todo, assim mesmo como você conseguiu capturar.
Grande abraço!
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Eu sou um copista, Joaquim. Olho e escrevo uma cópia do que vejo. É divertido. Super abraço pra ti!
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Tão abusado esse seu transbordar…é de uma profundidade perto e longe de realidades, me deixa com saudade ler teu olhar. Diferente de você, eu canso, de mim, do debate, do desgaste. Outras vezes, respiro e fluo…como teu texto, apenas vivo e deixo viver. Que amor!!
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Estava pensando, Cláudia. A vista aqui do meu ponto indica que não somos diferentes no cansaço, mas no jeitão de enfrenta-lo. Não há melhor nem pior nisso, é apenas isso, o jeito de olhar e transcrever. A impressão que tenho, lendo tuas coisas, é que o que nos difere (e, portanto, aproxima) é o modo de dizer as coisas iguais que sentimos.
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Sempre um lindo olhar de aproximação…
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Será que dessa vez consigo comentar? rs
“O tempo em que estive à deriva? Não saberia precisar. Apenas aceitei como precioso o impreciso e que às vezes é preciso se mentir contente para manter o verdadeiro riso. ”
Tão verdadeiro isso… Gosto muito daquilo que vejo escrito aqui, desde os pequenos e simples textos aos mais complexos.
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Ahhh agora foi… mas tive que deslogar e colocar email e site, aí ele logou de novo desse jeito… muito esquisito isso.
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Que coisa estranha mesmo, porque não está configurado isso. Mas vou ver de novo, tá?
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Conseguiu, que ótimo! Vanessa, amiga de lida, escrever é o que há. E que bom que gostas, guria, porque a recíproca é pra lá de verdadeira.
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É só texto bom por aqui… mas, este é de cair o queixo… estou boquiaberta… lindíssimo Mariel! Parabéns! Posso usar uma expressão sua? Bah!!!
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Bah, como é bom ter gente legal por perto. Muito bah.
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Não foi novidade ler tão belo texto, já analisei bem seu pensar e mesmo sendo nós diferentes algo que me aproxima de ti é este mesmo olhar. Em palavras diferentes até por estudos desiguais, sinto-me a vontade em ler e te pedir cada vez mais. Abraços amigo Mariel!
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Primeiro, desculpa: não percebi o teu comentário. Acho que não se se trata de desigualdades de estudo como você diz. O que penso, lá no fundo da alma é que nossas diferenças acabam sendo uma ponte para observarmos que de perto, somos iguais.
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Republicou isso em Pano de guardar meus confetese comentado:
Copista, bah!
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Bah, fica à vontade. É uma honra, tche.
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