O momento

Cheguei uma única vez em primeiro lugar em provas de ciclismo. Na verdade, do ponto de vista biótipo, sou um anticiclista. Atarracado, um metro e setenta e poucos (bem poucos), batia nas subidas e apanhava (mas dava um trabalhão) nas retas. Quase como na vida, o ciclismo tem mais retas do que lombas, muito mais. Ou seja, há muito mais rotina do que viagens, mesmo que viagens sejam uma rotina. Por isso é tão essencial perceber que é ali, na rotina, que nasce o incomum. O normal é vermos atletas longilíneos erguendo os braços vitoriosos nas bandeiras finais. Mas sempre há os baixinhos como eu, que se importam menos com o podium e mais com o prazer de correr danadamente bem, dane-se a modéstia, dane-se. Uma única vez ganhei e posso garantir: quando você passa em primeiro, no exato momento que o autofalante grita o nome da equipe e complementa com um “conduzida por Mariel”, a pior coisa pode acontecer é um desmaio. Se vc está de bicicleta a 35 40 por hora, não é boa ideia que nada se apague. O ponto é esse, vivemos entre a glória vívida de algo com os desligamentos que essa mesma glória pode apresentar. Você está sujeito a errar contornos, e-mails, telefones, determinadas datas, certos protocolos, enfim, podemos errar rudemente nos braços sempre azuis, ensolarados e continuamente quentinhos da alegria e do amor. No ciclismo, há funções específicas para os atletas de cada time. Dependendo da estratégia, sua função tática pode ser simplesmente se manter à frente do cara capaz de ganhar. Assim, sem vento e protegido desse desgaste, as chances dele aumentam no sprint final, o momento da definição. Não se pode abrir nem antes nem depois para que ele arranque, lépido e longo, para a glória. É uma relação de confiança e atenção entre os participantes da equipe. E aqui, novamente o momento exato se mostra fundamental. Se vc erra nisso, vai comprometer o resultado. Como já aconteceu comigo, digo com toda a delicadeza possível: é uma bosta. Antes da corrida e durante a prova você treina os movimentos, repete, repete, repete e… do nada, a marcha não entra, você vai para o lado equivocado, há um buraco não previsto, o sujeito arranca e você não nota, vc não percebe um erro e envia um sinal que pode prejudicar a estratégia e torce para que tudo fique bem. É tenso. Existir (e a própria vida) talvez seja um exercício de perdão a alguns erros, certos vacilos, determinados enganos. Alguém me disse que “viver é um teste de caráter”. Você se acha falível ou infalível e e bem, um dia vc é uma coisa, noutros outra e em todos, tudo ao mesmo tempo. Fico me perguntando se te protegi como devo e acho que a resposta é sim em parte do tempo. Não em outras partes do tempo e coisa e outra o tempo todo. No ciclismo, dizia, conquistei somente uma vitória. Foi longe, ninguém soube, não havia torcida pró e nada será tão eterno no terreno esportivo. Atribuo àquela vitória a treinos específicos, manobras acertadas, lucidez no ritmo, alguma sorte e a um amuleto em forma de coração, dado pela alma que amo, fruto desses encontros que são bons porque são únicos e únicos porque acontecem uma vez. Talvez isso conte que existir seja a mistura de muitas coisas, o que acaba (se prestarmos atenção) por se transformar em caráter. Ontem foi um dia de decisões. Hoje será igual. Não há dias sem decisões. Será que será que será hoje? Será que conscientemente desejei acertar, mas inconsciente mente desejei errar? Entendendo isso, meu coração foi parar ao lado do teu, para qualquer resultado, para toda a alegria de torcemos um pelo outro e pela certeza que se vencer ou perder são momentos, o amar nos faz eternos. Meu coração foi parar no eterno que é você, no eterno que eu sou. No termo que sempre seremos.

Publicado por

Mariel

Vale o que está escrito

6 comentários em “O momento”

  1. Acho que traiçoeira não é carva, mas sim a reta. É na monotonia da rotina linear que nos desconcentramos e caímos. A sinuosidade da vida, pelo menos, nos deixa mais espertos.

    Parabéns por mais um belo texto.

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    1. Você percebeu bem os perigos da rotina e suas intermináveis retas o de nós desconcentrados. O maluco é que às vezes é por tédio, noutras por excesso. Vai entender? Grato pelo carinho do comentário

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  2. Não sou praticante de ciclismo, a não ser eventualmente, talvez por ser bunda mole. Há de se ter uma bunda poderosa para permanecer por vezes muitas horas em uma bike. Tirante isso, bela analogia com o que é viver em sociedade, a partir de suas responsabilidades individuais. Nesta prova, você venceu, Mariel!

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    1. Ninguém é bunda mole por não praticar, ainda que o ciclismo seja um endurecedor eficiente de bundas. Quase rolei de rir com o comentário. O teu incentivo gentil e carinhoso me fez sim me sentir um vitorioso

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  3. E a vida vai rodando, entre palavras, emoções e… bicicletadas pelo caminho!
    Em tempo da Volta a Portugal em Biclicleta, uma tradição muito popular e agora na estrada, há um termo que se ouve muitas vezes e que me fascina: metas volantes!
    Acho que ele se aplica muito bem à Vida de cada um, pois…não será esta vida uma sequência de “metas volantes”?
    Meta final é paragem… fim…quem quer isso?
    Belo texto!

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    1. Metas volantes, que coisa mais poética de se pensar de um ciclista. Tinha que ser em Portugal. Grato por me associar a isso minha amiga além mar

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