Mortos ao vivo

Não falo da morte, essa coisa sepultante e triste pelo que causa em nós. Penso naquilo que morre e morrendo, deixa de existir e deixando, se torna inexistência. São coisas desnutridas ou descartadas, se foram porque algo ou alguém não resistiu e desistidas, só podem existir na contramão de si mesmas, sós e inertes, inativas, descontinuadas, desorientadas e sedentas. Sim,  persistem, sorriem, sabem distinguir, respiram, mas não ar, não há, não estão lá. No fundo sabem que perambulam, esmolam e se aquecem no esquecimento do anti-aniversário, mas não reagem mais, anônimo e pronto para o pulo. Outros tremem, paralisados de dor e escrevem sem saber mais como seguir, sem conseguir, apenas sem. Cruzaram a fronteira de si, entregaram oferendas, não há mais fé. Seguiram pra Ithaca, não há mais cosmos. Enfrentaram piratas, borrascas, dragões e agora cominha pela escotilha, perdeu. Então, retirados, exilados, escondidos, vivem em pedaços de flancos, expostos ao tempo onde às vezes faz frio, noutras mais frio. Alguns invernos são tão intermináveis, não? Nem são pessoas mesmo, essas de carne e osso, essas que você perguntas coisas sobre ilhas caribenhas ou mantém no relógio a hora do outro. São processos, prioridades, decisões, escolhas, descartes. É a vida feita de (pau, pedra e o fim do caminho)

Lembro de uma vez que tocou o telefone e o ar gelado das despedidas longas foi capaz de congelar até a última veia por anos. Aquela cena está morta e viveu me assombrando até hoje. Então, revivida, tornou-se outra coisa, uma queda, a ponta, a faca, o gosto do nada, o feio e o cruel, um feto, o descartado, o banido, o estranho, o distraído, o distante, o que pode ser substituído, um sentenciado, o silenciado, a inconveniência. A dor de cabeça, a bailarina sem graça, a caixa, a lembrança, um quadro, um quarto, a cela, a ceia, o Natal fora de hora. E mesmo assim, (eu sei que vou te amar).

Dizem que momentos antes de morrer passa um filminho da vida que se teve. A primeira vez no aeroporto, o primeiro beijo, o irmão perdido, o pedido de casamento, um filho de nome Pedro. E se não passar? Ou se passar, mas for legendado? Ou pior, se for dublado em uma língua que só você não compreende, pra que serve esse filme? De que ele adianta, que serventia tem, se é só você que está vendo e ainda por cima, na hora da morte, amém? E se a morte for de outra natureza, algo que acaba em um conselho? (segue o seu destino, molha tuas plantas e ama as tuas rosas).

Há casamentos mortos vivos, projetos nem nascidos, amores não paridos e portanto inexistentes para o tanto que poderiam ter sido. Poderia haver um passo a mais, um pequeno acordo, a paciência implorada, mas nada detém uma execução planejada, surge ferindo, são inacreditáveis. Você tem pressentimentos, acorda com a boca seca, a marcha aumenta, o polegar em sinal negativo, então silêncio. Um silencio surdo, manco, cego, um sino que toca, a missa do dia, a janela que fecha, velas acessas para os zumbi, (mas quero o teu sorriso brilhando o tempo todo). 

Uma vez definida, a mão cega executa a mando do coração apavorado com o fato de estar diante do que há de amor e de amado na vida até ali postergada. Precisará então decidir qual morte decretar, porque é preciso, inadiável, urgente. Porque por um instante não entendemos o que fala e a desorientação precisa ser contida, que custe do amor a vida. Então, antes do entendimento, antes que um olhar fixado revele o sempre e o portal, que caia a bastilha, queimem os livros, inundem as ruas, derrubem as casas com cozinhas, os quintais, silenciem os cães, os muros brancos, ordem nos recintos. Ordem nas galerias. Levem o prisioneiro porque {meus olhos ficam sorrindo e pelas ruas vão te seguindo, mas mesmo assim fogões de mim). 

O que não sabem os anjos do apocalípse é que acreditar que amor, na perda, era tentacular. Não era. Nada no amor é perda ou humilha nem fica de fora. O amor reencarna. Resiste. Refaz. Redime. Repara. E reacende lareiras. E reconduz a chuva por trilhas. E retorna reformado, ressignificado. Enquanto não entendermos isso, continuaremos achando que é possível lidar com o amor como se lidou com tudo que até ali não foi amor. Então não haverá coração sobrante, só o coração amado, unido ao coração amante em noite (Enluarada

O presente de hoje é o que é . Os textos (entre parênteses) são trechos de canções de artistas que vão de Pixinguinha a Fábio Júnior. Não há escala de valor, são pedaços de canções que gosto do que dizem. Ou que significam. Ou porque estiveram pendurados na memória, um cartaz na na porta.

Publicado por

Mariel

Vale o que está escrito

6 comentários em “Mortos ao vivo”

  1. Seus textos são sempre brilhantes.
    Semana passada fui a um velório.Foi aqui na Bélgica. Já uns 20 a os q não ia a um velório.
    À entrada haviam fotos da senhora de 63 anos. Uma pessoa justa e generosa. Sobretudo, ativa pelo próximo, e no caso, por novos habitantes estrangeiros. Eu e outros estrangeiros estamos órfãos. Como ela não há.
    Eu dizia das fotos….olhei p elas e vi a jovem q foi, o dia do seu casamento q acabou, o seu primeiro filho, ela no trabalho, na praia, em família,…aquelas deram me tanta tristeza. Não dormi naquele dia. Uma vida se foi em 3 meses de sofrimento. Um generoso ser humano. Cheguei a casa, vi um pouco de notícias. Deu-me uma revolta! Uma revolta tão grande! Tanto lixo humano a reproduzir ódio, guerra, e quem já não veremos, é ela.
    Nos últimos momentos não quis visitas. Visitas para que? Filme da vida para que?

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    1. Uau. Confesso que não entendo muito os rituais, não sei bem o que fazer com as sensações que me causam, uma porção de gente digerindo suas mortes, as mortes que aquela pessoa teve, o que se vai (e morre) com quem já foi. Tenho medo zero de morrer. Meu grande pavor é a falta de autonomia em vida, o fim da piedade, da empatia, da alegria e do amor. São coisas frágeis.
      Quem bom que você veio visitar. Que bom que foste capaz de te indignar com o que essa ida te trouxe. Que bom que podes falar sobre isso

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