Mim

Na encarnação passada, quando fui criança, refrigerante era algo de domingo, um copo pra cada pessoa. Normalmente era uma garrafa de Minuano Frisante, tipo açúcar líquido e misturado com gás. O nome Minuano era uma citação ao vento gelado que percorre, disfarçado de inverno, as madrugadas gaúchas. O vento, além de confirmar que ossos podem tremer sozinhos, tem um assobio lancinte, assustador, frio. Uuuuuuhhhhh, uuuuuhhhh, faz isso a noite toda, sibila, baba e sopra. O minuano tem vida própria, usa costeleta e é uma mistura do Geromel, o zagueiro do Grêmio, com o Cássio, goleiro do Corinthians. Ou seja: não tem conversa, é monstruoso e ainda faz uuuuuuhhhhh, quem não treme? Um Minuano não é como os terremotos, que têm escala e que podem ser previstos por satélites ou pelo movimento frenético de cobras, não. Durante um Minuano, você agradeceria se estivesse num satélite, longe da Terra, cuja capital, todo mundo civilizado sabe, é Porto Alegre. E se você fosse uma cobra, seus movimentos não seriam frenéticos, nada se movimenta durante um Minuano, apenas treme. Às vezes você pode achar que aquele vento, de hora em diante chamado apenas de uuuuull, é o braço armado do universo e que universo e uuuuuullll não vão com a sua cara. Imagine você no Beira Rio e o Inter perdeu. Certo, isso não é imaginar, é lembrar. Mas imagine que você está no estádio, o Inter perdeu para o Solimões do Piauí, com gol contra da nova esperança colorada em sua noite se estréia e cujo nome é uelyngton. Deu tudo errado, certo? Errado e certos são abstrações filosóficas, imprecisão existencial, manobras do pensamento católico apostólico romano, que inventou a culpa pra te vender o céu, onde não tem Uuuullll. Lá no Beira Rio tem. E começa a soprar diferente num furinho da sua camiseta da sorte. A matéria prima da saudade é importada inteiramente das sobras universais do Uuuullll. Dói, congela, persegue, atrapalha, você mal consegue respirar. Tenho um cacoete pela alegria e nunca gostei de açaí, talvez sejam fatos quânticos que estejam interligadas, vai saber. O ponto é que às vezes tenho saudade de coisas que sei que poderia ter vivido e que vividas, exercidas e experenciadas fariam bem ao planeta, ou pelo menos a nós, que fazemos parte dele. Quando me sinto excluido, cansado, longe do teu colo-casa, dando trabalho, ofegante, distante, não sabendo direito como agir, procurando na memória, tentando afastar o Natal, quando o remédio expõe que a cura é longa, saudade é isso, uma mistura. Uma geleira que derrete no calor dos amantes que vivem em lugares diferentes vidas distantes do sim que deveriam dar. Então lembro do Minuano. Às vezes ele venta dentro de mim.

Publicado por

Mariel

Vale o que está escrito

5 comentários em “Mim”

  1. Mariel, bom dia!

    Quero comentar suas publicações, mas não estou conseguindo.

    Será que tem algo nas suas configurações impedindo os meus comentários? Logo eu, sua fã de carteirinha? 😰

    Um abraço!

    Ana Teixeira Celular: 9.7962-3050

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