The power

Às vezes gosto da sensação de partida, perceber o tempo se impondo à vida sem saber se há ou não uma passagem secreta. Dizem que acontece com os moribundos, àqueles que tiveram a experiência de quase morte ou quem quer que seja que tenha desistido de si mesmo.

Tenho tentado não fazer parte desses grupos, mas meu sucesso não é nem poderia ser absoluto. Magoei, me ressenti, invejei, desisti, estive por um triz e tremi entre as cordas, no lado errado do ringue. Essa, descubro ao longo dos dias, foi a parte boa. Pra mim, nada mais irritante do que o casal certinho, o sujeito perfeito, os druidas imunes às raiva, o fair play com hipócritas, quem dá a outra face. Eu não. Sou pacifista, terno e budista, mas não me pisa. Já dei carrinho pra pegar bola e adversário, já levantei os braços e disse que visei a bola, já fugi de peleia e não só beijei a lona quando o soco me pegou de cheio, como resolvi ficar lá, cão medroso, craque sob vaias, gênio de araque, bati muito em retirada. Mas não tente encontrar comigo a medalha odiosa de quem mereça desconfiança. Isso não, procure em si, aponte para as circunstâncias, culpe o governo, comigo não. Não escrevo para impressionar mocinhas, não finjo afeto ou desafeto, não milito calculando quem ganha, eu sou uma distração ambulante e mesmo com tudo ao contrário, se digo fico, estarei no local combinado. Essa coisa meio burra, meio cafajeste procure em outro lugar, é produto amplamente ofertado, mas que não tenho em meu estoque. Apenas não se engane também com isso, dispenso os apetrechos dos bem sucedidos em tempo integral. Tenho uma lista de defeitos traduzidos em 84 línguas.

Dito isso, lembrei de uma brincadeira filosófica, infantil mesmo. E, como tudo que vem da infância, muito útil. É um complete a frase: “o homem é o único animal que…”. Precisa ser uma frase, uma palavra, um atributo, algo que nos seja próprio, nos dentiguindo na natureza dos iguais.

Millôr, um outro Fernandes, completou assim ” o homem é o único animal que ri “. Sendo verdade, é uma boa unicidade.

Outra pessoa, que não lembro o nome, era alguém sério, tipo sei tudo, que completou a frase assim: “o homem é o único animal que pensa sobre a morte”.

Eu acho que o homem é o único animal que precisa saber que horas são. É o único animal que precisa ser guiado pelo Google para ir onde deseja. É o único animal que tem animais de estimação. A lista é longa, não entendo a dificuldade ou a popularidade da brincadeira entre marmanjos. A minha top mega blaster frase é essa:

“o homem é o único animal que acha que pode viver bem, quando longe de quem ama ou se distante do amor”.

Partir ou ficar geram prazeres e dores, como ensina Homero. Nossa Odisseia tem outros monstros, outra ilhas de paradas, portos diversos. Quando penso nisso, sempre me ocorre a ideia de resgate. Me dou conta que se trata de algo que  não pode ser feito em desacordo com a vontade alheia. Resgate tem que ser resgate, não sequestro. Tem que ser eu quero, senão vira eu aceito. Precisa ser é claro que sim, ou não será nem claro nem sim. A ideia de um resgate, portanto, pressupõe um perigo a ser enfrentado, um risco apesar do qual se avança. Não é por acaso que se diz que o preço da liberdade é a eterna vigilância. Muitos manuais de equipes táticas de combate em situações limite aconselham: todo cuidado com a Síndrome de Estocolmo. A simples possibilidade da felicidade (mesmo incompleta) pode provocar uma reação irreconhecível de quem habituou-se aos cativeiros.

Oscar Wilde era um frasista e tanto. Bom, ele era ótimo em tudo e mais um tanto. Olha que poder de síntese, de humor, inspiração e um bom peteleco na orelha:

Seja você mesmo. Os outros já existem

Não se trata de originalidade, mas de ser original, se entendo a que Wilde se refere. A curiosidade é o porto de chegada dos bem-aventurados que buscam por si mesmos.

Não te cutuca a pergunta sobre como seria? Não te puxa pelo vestido, nem te pega pela mão, não cochicha no ouvido, não te estremece as pernas, não palpita, não dá ordens, não te traz lembranças, não te toca em lugares desconhecidos? Não te deixa zureta, nem te fez chegar a mares nunca antes?

Será que não te faz falta de segunda a segunda, não te domina quando se deita? Não exige, não te faz nascer suspiros, ter filhos, cães, muro branco, emprego só a tarde porque nas manhãs estaríamos ocupados? E tudo que foi vivido, não está vívido agora mesmo?

Mas, se mesmo assim, a escolha é outra, a qual conclusão se chega? O homem é o único animal que se nega a si mesmo e por isso desconfia das verdades que lhe sejam alheias. Sim, estou com um humor do cão.

Não se trata de confiança, nem do merecimento disso. Se trata de saber que se o paraíso não existe, nos cabe construir um à nossa imagem e semelhança. Com defeitos, com impossibilidades, com gostos diferentes, com cozinhas azuis. Eu não suporto harpa, por exemplo.

Nossa conversa foi violenta outro dia, eu do outro lado do mundo, vc num mundo ao contrário. Precisando comprovar a inexistência do afeto que há, dos gestos que houveram e do amor que sempre haverá, duvidamos do concreto e do visto a olho nu ao longo da história. O homem é o único animal que cria sua trajetória e nega o evidente.

Então, entre bicicleta, praia, uma sobrinha pensa sou comunista e salvar o mundo, te digo que estou aqui. Franco, pronto e parindo o que amo e me faz contente. Junto contigo, parto no sempre.

Publicado por

Mariel

Vale o que está escrito