O lapso

Um dia nos pesquisarão, tenho certeza. E será um problema, porque em uma das transversais do tempo em que nos transmitimos, todos os arquivos de cada coisa do nosso instante terá sido extraviado. Nenhum backup, nuvem, pendrive, discos rígidos, documentário, nada. Restará a transmissão oral, feita por um velhinho que fala búlgaro, o conhecimento de uma época que chamarão cautelosamente de “o lapso”.

Um por um, os pensamentos serão fragmentos de lembranças, memórias lá longe, olhares idos. Sabe a roda que você vê em quase tudo, de carro a estações espaciais? Então. Isso já foi uma invenção história, de um mundo que desconhecemos, nem velhinhos que falem em búlgaro temos pra saber. Escrita, disquete, vacina, telégrafo, trincheiras, canhões, Oldisséia, relógios, luvas, aviões, Dumont, Drumond, Sigmund, anestesia, platão, Sartre. Brinco, nexo, prisão em 2ª instância, paraquedas, cavaquinho, vinil, Amazon, violão, garrafa, Berlim, Veríssimo, jardins suspensos da Babilônia, água tônica, Tônia Carreiro, 19 de fevereiro, peste negra, lápis de cor, apontador, mouse, lentes, closet, gripe espanhola, Rússia, pia, marcos de todas as naturezas, cubas, feiuras e belezas. Tudo que somos agora (que logo será tudo que fomos) precisa ser realmente tocante, tocável e emocionante. Não para que dure, mas para que exista em seu momento, para que não o tornemos resistentes e ausentes ao existente. Todos o homens e mulheres importantes, a Escola de Sagres, o que sei e o que sabes viaja no instantinho que é do tamanho impermanente de um olhar cruzado.

Se saibam

Ah, os existencialistas que esperam que a gente defina quem somos para que a própria humanidade descubra quem é. Não o que desejamos, o que sonhamos, mas o que fizemos. Nossas renúncias, textos, risos e falhas. Os vacilos, os brilhos, as mulheres, os maridos, os amores nos vãos criados para que permaneçam quentinhos. O melhor pedaço de um sanduba oferecido a um estranho, o melhor momento da juventude ofertada a um filho, Os sustos calados, o riso mantido, a coragem de gostar de si apesar de tanto a fazer. Se saber medida livre, régua perfeita no que há de humano, profano, profundo, estranho e mundano. Um dia nos pesquisarão, tenho certeza. Que o velhinho búlgaro diga aos perguntantes que fomos mais do que o bastante. Que trocamos de lugar para conhecer imenso do outro. Que muitas vezes não nos escolhemos e que choramos por isso. Que todos os dias nos amamos e celebramos a isso. Que ao viver, vivemos. Que nos protegemos um ao outro. Que nos vimos e que nos temos. Que no instante que somos, nos amamos e bebemos da água limpinha do sempre.

Publicado por

Mariel

Vale o que está escrito

6 comentários em “O lapso”

Os comentários estão encerrados.