O corte e a costura

É da natureza das coisas a possibilidade de parir seus contrários

Quando li isso ontem de manhã, imediatamente uma canção me veio à cabeça e me fez levantar. O dia inteiro a melodia me bicava, até que o teu recado me chegou como um barco que não descreve um arco e acalma corações que caminham no porto a espera de notícias, chegadas e partidas. É preciso interpretar o dito a partir do que a poesia afirma, a forma que é cantada, o tipo de arranjo que recebe. Essa música veio duas vezes, não é uma coisa a gente? O bilhete continha algo diferente da afirmação original do poema. Um acento e a reviravolta que ele (o acento) provoca na lógica do escrito. Eis a manga:

A vida é mesmo assim

Dia e noite, não é sim

Nelson Mota (autor da letra, que ganhou linda música e uma interpretação tipo uau do Lulu), escreveu “Dia e noite, não e sim”. Nota que o acento dá conotação diferente ao poema e o que ele passa a significar? Acho uma manga e tanto. Dia e noite não é sim. É um contrário nada sutil de Dia e noite, não e sim. Na primeira frase, é a afirmação da contrariedade, a negação cotidiana do desejado. Afinal, não é sim. Revela uma conformidade, quase uma a rendição às rotinas, mesmo indesejadas: a vida é mesmo assim, dia e noite, não é sim.

O poema é uma declaração de amor não declarado?Adormece o sentimento ou cala o que ele desperta? O fato de amar calado é, em si, uma demonstração de amor? Trata-se de uma constatação ou é biográfico? É um oferecimento direto do portal? Definitivamente, tenho algo a discutir com as sutilezas, o design das emoções. O amor nos tempos de corona precisa ser literal ou é a hora de lançar mãos de todos os simbolismos? Talvez as duas coisas. Mas sinto que algo me escapa, o cenário é incompleto, há muito escuro, olho o teto, tateio em busca da confirmação simples do pertencimento completo do afeto que me resgata tantas e tantas vezes, como agora mesmo. Lulu e Nelson te representam nessa canção? E porque? Mesmo que o outro saiba, é preciso dizer.

Eu não te amo calado. Mas ouço a sinfonia de silêncio.

Olha onde vou escavar, buscando significados. O ato de pensar não é um barato? Como diria Álvaro Campos (que não quer ter razão) e que se pergunta “pra que serve uma sensação se há uma razão externa para ela?” Que bom para quem pode revoltar-se em comício dentro da alma, em uma lucidez irritante, olha isso. Sim, é o Jô interpretando Pessoa.

Sou um vadio pedinte?

Outra canção cheia de significâncias é essa. “Ame-o ou Deixe-o” foi o slogan do Brasil entre 64 e 79, quando o bicho da irracionalidade e do desprezo rugiu. Era uma ameaça: você deveria amar seus pais (na verdade seus governantes) sem questionamentos. Ou isso ou seria mais saudável deixar-lo, ir-se, banir-se, tornar-se invisível. No caso da invisibilidade, ou você sumia ou os milicos fariam o serviço por você.

Então veio Caetano e tira a máscara violenta daquele amor-medo da ditadura. O baiano ressignifica aquela dor e nos presenteia com uma anistia que reencaminha o engano tentado pelos farsantes. O amor, ali, abandona o condicional, “amar ou deixar” e encarna seu contrário. Com a troca de uma letra, acontece então o “amar e deixar”. Novamente, uma letra e a perspectiva ganha novos rumos. Receber uma música assim é um pedido? Deixe que o amor siga? Não transtorne seu caminho? Ame-o e deixe-o livre para amar é uma constatação do que acontece, ou uma oração para que isso se dê? Que meu amor intenso sempre liberte teu melhor.

Que meu amor sempre liberte o melhor do outro.

A foto lá em cima e essa aqui mostram a transformação que une arte e uma dupla de artistas. Eram velhas máquinas. Não costuravam, nem alinhavavam mais nada. Sem chance de bordados, nem o tuc, tuc, tuc, tuc tão característico das suas ferragens, engrenagens e mecanismos. A obra de arte é um achado pelo encontro das retas e curvas, a beleza da releitura, o objetivo revivido e que contraria a condenação ao ferro velho dos esquecimentos. Não somos máquinas, claro. Mas somos medo e desejo, luz e sombra, sim e não. Eu te amo calado? Também.

Estava tão cansado ontem que dormi com Friends, numa época em que Mônica não consegue fazer isso porque luta contra uma separação afetiva. Tenta de tudo, até que tem notícias do seu amado, quando enfim Morfeu a recebe e a descansa. Se foi bom? Se é Friends é bom.

Canções transformadas em significados e formas de resistência. Poemas que exorcizam perdas e autorizam revoltas. Obras de arte que exploram as novas possibilidades para cortes e costuras. Séries antigas que nos oferecem o vazio aconchegante para o sono. Tudo isso, de alguma forma, lembra da importância de estarmos juntos. Sendo e deixando ser, sempre dizendo presença, entoando carinhos, alinhavando o amor que serze e serve a “saudade de tu, do teu abraço gostoso, de passear no teu céu. Quando estou com você, estou nos braços da paz”.

Que o teu afeto sorridente, misturado à minha intensidade, nos transforme em nós, comunhão de dois, encontro de familia, a gente de volta pra casa. É sim, é sempre.

Publicado por

Mariel

Vale o que está escrito

2 comentários em “O corte e a costura”

  1. Quando jovem, ávido por poesia, muito pobre, não conseguia comprar livros. Eu os encontrava nos didáticos. E nas canções maravilhosas do quilate de Caetano, Aldyr, Djavan. Gil, Belchior e os antigos como Lupicínio, Ary Barroso e outros tantos, maravilhosos. Cantávamos lindos poemas…

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    1. Olha que experiência linda você teve. Fiquei tocado com a tua lembrança e com a força que mora na vontade de encontrar respostas que a vida mostra

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