
Não sou de semear ressentimento, eu vivo esquecendo, ainda que não viva de esquecimentos. Também não me parece que recordar seja viver, isso me sugere uma paixão pelo lembrado e isso não é, via de regra, o vivenciado de fato. Já falei disso por aqui, mas veja, esqueci o argumento. Eu entendo que reviver algo ou alguém, uma circunstância, quem sabe uma lembrança, talvez essa experiência pertença a uma outra categoria.
Posso me ver agora ganhando Yara. Dizer hoje que se trata de uma bicicleta de outro planeta é lembrar. Tocar no cromado do guidão, ouvir o tststs da garrafa de refri sendo aberta em comemoração, perder o fôlego pela pintura azul e branca, subir nela (que tinha um pezinho solado direito, freio no pedal que era preto como o banco que vinha com a inscrição “Monark” em branco) e perguntar “é minha mesmo?”, confirmando a propriedade. Isso é reviver.
Lembro se ter ido mil vezes ao Lami com ela, embora eu não tenha ido mil vezes a lugar algum na vida. Lembro de fugir de índios, marcianos tentaram sequestra-la, mas não deixei. Lembro de entrar na igreja em seu lombo, de fugir de quadrilhas mulambas, de chegar à África e de cruzar a Amazônia em dois dias se pedal. Lembrar é um pouco mentir, molda-se detalhes, os atores ficam mais bonitinhos, o cenário melhora a cada momento, lembrar acontece lá fora, como recordar acontece dentro.
Recordo da lixa que passei em toda ela. E de pinta-la de cinza cromado, pra ficar igualzinha a Lótus do Emerson Fitipaldi. Lembro que ficou linda. Revivendo a cena e o resultado final, ficou horrorosa. Engraxei cada engrenagem, passei escova elo por elo da corrente, tudo uns dias antes de a perder no Lami, o garoto revive e chora até hoje.
Acho que a gente lembra do que passou e revive o que não passa. Consciência, nesse sentido, seria saber o que vai pra qual gaveta, o que não queremos que se perca e o que, uma vez extraviado, pode ficar ali, sendo passado.
Mães lembram da formatura, da textura de pele, do formato da boca. Mães só têm filhos lindos. Mães revivem partos, de pintar quarto, ficar na espera, um aguardo a sós com elas e seus filhotes. Homens lembram de cenas esparsas. Revivem o jogo do Barça, somos muito ruins como companhia.
Então, havendo sorte e uma pitada de destino, a pessoa viaja. Na volta ouve uma pergunta que não entende. Como é lá? Como foi seu dia? O que você aprendeu hoje? Quem te seria insuportável em uma ilha deserta? Vamos dividir a coberta? É preciso lembrar tudo o que te aconteceu. E reviver só o melhor de cada acontecido, como quem escolhe o que deseja sentir se novo, mas sem ressentimentos. Já disse hoje? A resposta é grandão assim, revivido em seu extremo.
Outro dia estava conversando sobre isso. Por que nos lembramos de algumas coisas e outras não. Eu lembro de quase tudo negativo q passei, por exemplo. Olho p fotos e esforço-me em relembrar o momento
Minha primeira bicicleta tbm foi Monark verde claro.
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Eu confesso que esqueço. Nem é uma vantagem, acho. Falo das coisas negativas e mesmo das que considero positivas. Vivo esquecendo. Somos xarás de bike então.
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