Pixaim

Já postei essa foto por aqui. O garoto parece entediado, mas preciso dizer que não lembro disso. Uma festa tipo Natal, quem sabe. 15 anos? Não tenho a menor ideia do motivo que reuniu essas 9 vidas para um registro fotográfico. Uma formatura, talvez. O bico da mesa revela uma toalha de renda branca. Lembro das linhas ásperas daquele tecido. Posso sentir seu peso agora. Se fechar os olhos, minha mão vai tatear estrelinhas e outras formas, tramas típicas do crochet. Estão todos metidos em paletós e espetados em gravatas. Nita está dentro de um vestido de gala. Guinha, no colo do pai, não tem ideia do que acontece. Nel é o milico típico, sem motivos para risos e em missão permanente. Ariel, o diferente de todos. Fernandes, como Onofre preferia ser chamado, tira onda do clique, posando para a posteridade com seu desdém para o futuro. Zico parece conter o riso e faz cara de galã latino. Com toda essa pompa, aquela deveria ser a minha melhor roupa. Tenho uma pequena recordação do bolso da camisa e da sua cor, branquinha. Lembro que não conseguia me imaginar com 60 anos. Para aquela criança, era impossível chegar aos sessenta. Leva-se muito tempo para reunir 6 décadas e até já passei um pouco disso. Tempo suficiente para deixar de prever as coisas, tentar moldar acontecimentos, pessoas ou circunstâncias. Me tornei um homem grato, usei gravata umas três vezes e fui ficando mais quieto, como quem vigia os dias vindo lá longe. Gosto de Eduardo Galeano, Cecília Meireles, Inter e Suassuna. Eles têm cada história linda, não? Mas ninguém dessa turma nos colocaria no papel, descrevendo detalhes de vidas que se traduzem. É muito a compor, não acha? E convenhamos, tem uma beleza são silente quanto calma. Aquele garoto não me esperava, nem te sonhava. Quem sabe esse seja o motivo do suposto tédio que vejo. Esperar cansa, ainda mais sem saber direito. Hoje eu pensei em contar algo diferente de fotos de família. Que estive olhando tua janela, pronto pra te levar pra casa. Não falo de um sequestro teórico. Não seria sequestro, nem teoria. Estava simplesmente pronto pra te levar pra casa. Abriria a porta e te levaria pra casa porque ir pra casa é um acontecimento raro. É um lugar sagrado, feito por muitas mãos. Lembranças, gripe, mudança, um canto de ler, uma cozinha onde se prepara conversas. A cama, sem pressa. A chave no trinco. Os cães. Alguma bagunça. Falhas e reparos. Uma casa é um Concerto à Rotina. Ou é pra onde se volta, ou para onde se vai. É sala, quarto, talher, lugar de fala. Ponto de encontro, por isso se diz “nos encontramos em casa” é uma promessa, uma escolha e um desejo. Por isso se afirma sobre alguém próximo que “esse é de casa”. Trata-se de intimidade e confiança. O grupo na foto tinha uma casa que os protegia. Ali havia assobios, quadros, letras, canções, bifes, brigas, quintal, galinhas, um muro, um pé de limão e uma árvore de uvas japonesas. Havia um porão e uma oficina. Era uma casa de família, a que pertenci e pertenço. A que me amou e a que reconheço. O garoto não está mais ali. Vim inteiro, décadas depois da festa, te dizer que acho que olhavam pra ti naquela foto. Fui te dizer isso e te levar pra casa, a casa da nossa família.

Publicado por

Mariel

Vale o que está escrito

6 comentários em “Pixaim”

  1. Mariel, como sempre, você faz o convite, nos pega pela mão e nos leva por caminhos literários, poéticos de um cotidiano onde nos identificamos e sentimos verdadeiramente “em casa”. Obrigada!

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  2. Sempre me deixa encantada 👏🏻👏🏻 Agora é tempo de encher o coração de otimismo, esperança e sonhos, é tempo de recomeçar e renovar, pois um novo ano vai começar e devemos vivê-lo e aproveitá-lo ao máximo. Desejos de um feliz Natal e um próspero Ano Novo!

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    1. Bia, que mensagem animadora! Estou fazendo exatamente isso. Me abastecendo, vendo, vivendo. Muito bom contar com tua companhia por aqui o ano todo. Mega Natal e super ano pra vocês sabem.

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