
Ninguém que pede um minuto da tua atenção gasta os 60 segundos solicitados, é sempre mais. Eu evito contato visual com essa gente, é um risco de cunho permanente, ainda mais em tempos de pandemia. Sei que será preciso enfrentar perdigotos, pequenos apertões no braço, cacoetes linguísticos de transição (“então em peguei e…”) O que ele teve de pegar e? Qual é o motivo para pegar e? “eu peguei e falei”. Eu peguei e fui. Eu peguei e perguntei. Aff!
Quem começa uma conversa com “quero dizer uma ou duas palavrinhas”, normalmente usa muito mais de cem, imagina metáforas ruins e citará algo da Bíblia. Estaremos cercados por um discurso de sumo duvidoso e, de modo geral, nem raso, nem largo, nem profundo, mais ou menos como Matrix 3 e 4. Corro disso como quem foge do Bolsonaro. É como se estivesse concentrado em viver o dia, um presente intenso e -ao mesmo tempo- leve e denso.
Em busca de paz, tenho suprimido carne do cardápio e ouvido muita música de artistas que chamo de artesanais. Aqueles que têm coisas pra dizer porque olham nos olhos da vida e resolveram dividir a experiência. Lupicínio Rodrigues foi pioneiro em sofrência e tem alguns clássicos no cartel. Em 1974, Lupi (um gaúcho boêmio, que aos fins de semana não saía de casa) foi gravado por Caetano. O autor do hino do Grêmio (ninguém é perfeito) trabalhou na Carris, a companhia de transporte municipal, antes da fama chegar. Você já cantarolou uma música dele? Que tal essa? Ele tem muito a dizer sobre o valor da inocência e os perigos da sua perda.
Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque eu sei que a falsidade não vigora
Cartola, Catullo da Paixão Cearence, Geraldo Azevedo, Renato Teixeira, Pena Branca, Sueli Costa, Violeta Parra, Quinteto Armorial (que foi idealizado pelo Ariano Suassuna no seu movimento de cultura Armorial, que ligava o popular e o erudito em busca de uma arte tipicamente brasileira), Nelson Mota, Moreira da Silva, uma enxurrada de gente talentosa que cantava, escrevia, atuava, bebia, imaginava e que marcou a cultura original do Brasil. Eram artistas do simples, a arte mais complexa de se fazer porque é resultado de uma conexão sem intermediários, salamaleques e quetais com o sentimentos que embalam o mistério humano, como Sueli fez.
Só uma coisa me entristece
O beijo de amor que não roubei
A jura secreta que não fiz
A briga de amor que não causei
Nada do que posso me alucina
Tanto quanto o que não fiz
Nada do que eu quero me suprime
De que por não saber inda dão quis
Uia, não? Não se pode apreciar as coisas que não nos permitimos experimentar com o tempo e a profundidade necessárias. A canção Alma, do verso acima, termina lindo, verdadeiro e profundo assim:
só uma palavra me devora
Aquela que meu coração não diz
Sol que me cega
O que me faz infeliz
É o brilho do olhar
Que não sofri.
Eu estou tentando fazer um Rap e não quero algo pastel, como é o que penso que o Gabriel (o pensador) cria, terceirizado que é da realidade de onde vem um rap que mereça o nome. Pretendia algo preto, quebrada, coisa que o Emicida por ser quem é e viver o que viveu pode e consegue. É dele que vem uma afirmação intrigante, a que a serenidade é revolucionária. E não bastasse isso, ensina onde quer chegar com esse conceito.
A serenidade é a capacidade de criar em si o ambiente de calma necessário para refletir e escolher o melhor caminho a seguir
Não é não comer carne, nem praticar maindfulness, olhar docemente para as pessoas e falar “gratidão”, é outra coisa. Talvez seja estar sem perspectiva, sem grana, sem emprego, sem pai nem mãe, sem dormir, sem se sentir bem o tempo todo, mas ainda assim procurar o ambiente de calma necessário para refletir e escolher, escolhendo o riso possível, ainda que faça frio e a paisagem lembre Porto Alegre, uma cidade sombria. Isso custa caro, principalmente se o melhor caminho a seguir é isso, seguir fazendo o caminho. Então é claro que eu não vou parir um rap dos bons. Para ele nascer, é preciso transitar por experiências e estados de alma que não visitei. Como fazer, se não sei? Como expressar se não estive lá? Como construir algo sem a oportunidade de fato? Não é vitimização, prometo. É a estupefação diante do estupendo, o reconhecimento de que vidas conectadas ´são, em si e por conta disso, uma construção fora do comum. Quero dizer é que avançamos como quase ninguém seria capaz, construindo um reino que não está no passado, mas aqui e agora, vívido e forte. Quero comemorar isso porque se trata de reconhecer o óbvio do vivido, essa coisa gigante. Diante do tanto que é, daquilo que existe e do que evoluiu, apesar de tudo contra. É dessa forma que se faz a conta. Tentei entender para explicar isso quando Isabel Allende (que é peruana, não chilena de nascimento) me conta o que quero dizer.
“Todos nós temos demônios nos cantos escuros da alma, mas se os trouxermos à luz, os demônios encolherão, enfraquecerão, calarão a boca e finalmente nos deixarão sozinhos”.
( A ilha sob o mar)
É preciso receber os demônios, reconhece-los, conversar com eles, entender porque existem e porque nos assombram, integra-los. É um trabalho que ninguém pode fazer por nós. E que se não o realizarmos seremos as escolhas dos outros, o brilho de tristezas que não nos cabem e responsáveis por vidas que não nos pertencem. ***
Que bom poder passar aqui e ler. Só entre nós, mas acredito que acalma também os demônios. Sim quando sintonizamos outros pensares e ainda com direto a recheios deliciosos de nossa verdadeira veia de cultura, acalma os demônios. Penso eu, eles devem gostar do cotidiano, monotuo, sem tempero. Mais enfim, muito bom e desejado e fica daqui meu obrigado.😉
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Definitivamente vc é um querido. Estava pensando que escrevo desde há muito tempo, acho que vivo disso tem uns 30. O blog nasceu para ser um canal de conversas, falas e entendimento. Vem cumprindo nesses anos todos (o blog nasceu em 2012) esse desejo de contato, essa vontade de conexão. Que delicado o que vc me escreveu, te agradeço por isso.
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E aquela do Lupicínio…. esses moços, pobre moços, ah se soubessem o que sei,….
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Não passavam por tudo que eu já passei. (esse gaúcho era dos bons)
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Ah, Mariel… Perdi o sono e aqui estou feliz por te ler. Que delícia de leitura. Interessante porque tudo o que li aqui é tão real quanto a lua, e andava lendo ‘pouco’ ultimamente. Pouco e bom. O lance com os demônios, precisa mesmo de Luz, e como!
Vou salvar este site, é precioso demais, tipo um bom amigo, daqueles que não tem horário, toda hora é importante.
Valeu.
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Diego, que coisa especial uma mensagem com tanto carinho e gentileza. Acho que o nosso tempo anda precisando disso e foi, de coração, muito emocionante receber o teu. Muito valeu!
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