
Não deve ser do teu tempo. Para falar a verdade, não sei se é do meu. Tive 6 irmãos mais velhos, herdei muita lembrança, além de todas as calças e alguns brinquedos. Ter muitos irmãos mais velhos oferece algumas vantagens. Vc tem sempre reforços nos confrontos que acontecem entre a sua casa e o colégio. Também apanha por conta de ser irmão de alguém. E se vc tem 6 irmãos, você é muito irmão de alguém e todos, não há erro nisso, arrumam confusão em tempo integral. Mas a grande desvantagem não é essa, mas os bifes. Se você for eu, você vai devorar a salada e tudo mais que for amargo primeiro. Depois, o arroz e o feijão. Finalmente, chegará a hora do bife e com ela os seus 6 irmãos. Uma família enorme como a minha de origem é uma usina de boas lembranças. Esquinas, futebol na rua, pequenas encrencas, rotinas afetivas. Toda hora alguém aniversariava. Ou tinha um motivo besta para comemorar. A cozinha de casa era uma exposição de arte, com um caos envolvendo pessoas que nunca havia visto na minha vida, gente tocando violão, cartazes de shows, cantorias gerais, alguns sujeitos mais pobres do que a gente filando uma boia, fumaça e panelas, a mãe numa dança só dela entre molhos, pequenas conspirações, pano de louça no ombro e todos indo e vindo entre as coisas da casa. Crescer no Partenon foi uma das melhores coisas que me aconteceram na vida. Todos tinham um apelido estranho. O meu era fúria. É que na época, o Zezinho (garoto de ouro da rua, o único a ter um fusca) observou que eu eu corria o tempo todo, não caminhava, corria. E eu fazia isso porque gostava de correr, corri até uns 14 anos acho. Na época, passava na TV do Zezinho (uma das poucas famílias a ter tv nas imediações) um seriado chamado Fúria. Tratava-se de um cavalo herói, que alcançada qualquer coisa por sua velocidade, bastando que o animal ouvisse “fúria!”, gritado pelo seu dono. Antes de começar a correr eu berrava isso também, um dia o Zezinho viu e caiu na gargalhada. Pronto, o apelido pegou. Foi um tempo fácil, no sentido de não haver espaço para digressões, tudo era tem ou não tem. Havendo, que bom. Não havendo, estava resolvido. Uma vida sem gradiências pode ser feliz, lembro aqui. E recordo porque a diversão principal era ir ao centro ver as coisas. Ver, apenas isso. Os carros, as vitrines, comprar válvulas para consertos gerais, observar as outras pessoas que iam ao centro, ir ao centro era um acontecimento.
Foi num Natal sem grana que trocamos os melhores presentes. Tudo embrulhado, a mãe na função peru o dia inteiro. A casa uma confusão, séquitos estranhos, aromas suspeitos, acompanhados de fumaça. Dentro das caixas, um bilhete com o que seria o presente a ser recebido. E mesmo com todas as possibilidades abertas (afinal era apenas algo escrito), o mimo era direcionado. Um violão para o Fernandes. Um Kichute para o Fúria. Um cachimbo pro Zico. Um namorado para Nita, um navio só para o pai. Uma nacionalidade para a mãe. Depois teve a brincadeira do recebo aberto ou fechado, que envolvia um código corporal e uma tesoura, um dia mostro.
Quando ganhei um Natal Fora de Hora, as possibilidades natalinas se expandiram muito, junto com o afeto ecoando no eterno e gerando o próprio tempo. A capacidade de entender, o desejo de pertencer, o vetor que movimenta alguém pode variar grandemente de uma pessoa para outra. Não há iguais, somos diferenças, tudo é aprendizado.
Hoje eu grito “asterisco!” e o portal se abre. É uma caixa de presente. Dentro, depois de abrir um envelope escrito à mão com tua letra caprichosa, leio teu nome. E isso basta para me fazer sorrir. ***