Saudade não ronca

Fiquei pensando quando e porque uma saudade ataca. Nem sempre é do tipo romântica, essa  falta da alma de alguém amado. Se bem que eu acho que não é do ser amado que vc sente falta, mas do ser amado amando a gente. Pensando nisso, percebi que há saudade para todos os gostos ou desgostos. 

Um time pode se tornar saudade, como a Seleção de 82. Não ganhou a Copa, mas que time! A elegância de Falcão, a genialidade do Sócrates. Sei, você não tem a menor ideia de quem estou falando, mas sinto falta desses atletas em ação. Será que aquele time deixou saudade porque faltou algo? A consagração não obtida, o que seria se tivesse sido, o quase lá?  Saudade é feita com fios de injustiça: a seleção de 82 era perfeita, claro. Mas a Itália, aquela tosca, acabou com a gente. Mas se éramos tão especiais, porque levamos 3 gols? E do mesmo cara, do mesmíssimo Paulo Rossi? A saudade pode desfocar as coisas, tornando o que aconteceu mais próximo do que não aconteceu. 

Bom mesmo era no tempo da ditadura militar. Bastou o Bolsonaro (um ex militar, montado num governo militarizado) perder e pronto, surgiram os democratas implorando um golpe de estado. Não sabem o que pedem, não têm a menor ideia com o que sonham. É o que acontece quando assassinos são anistiados: se abrem as espantosas portas do inferno das repetições. Essa gente esquece as centenas de pessoas mortas pelo desprezo com a vida, os desaparecidos, exilados e agredidos pelos milicos. 20 anos disso em nome do que? Da pátria, da família e da liberdade. Não pensam na Angel, cujo filho teve a boca ligada a uma mangueira que estava conectada ao escapamento de um Jipp. Coisas assim aconteciam o tempo todo e com qualquer um, inclusive os tais “cidadão de bem”. Essa turba não leu “Brasil nunca mais”, livro recheado de documentos e sangue produzido pelos militares. Ninguém foi preso. Ninguém foi acusado. Ninguém foi responsabilizado. Isso pariu uma saudade melancólica, a saudade encharcada de dor, uma saudade editada, o tempo perfeito que na verdade nunca existiu. Havia censura. E havia jiboias deixadas em salas escuras para torturar mulheres nuas. E gente anestesiada sendo atirada de aviões para que morressem por afogamento. Jovens foram desfigurados na porrada. Ninguém me contou isso, mas eu sei. Por ler, por pesquisar, por viver. Tudo isso foi anistiado, não poderia ficar assim, mas ficou. Apesar disso, centenas de pessoas estão na frente dos quarteis pedindo um golpe miliar, com saudade de um tempo horroroso e violento. Saudade pode ser feita do esquecimento pela dor alheia.  

Há saudades específicas. Eu tenho, pelo menos. É da galinha da mãe. O preparo (cebola, tomate, sal, alho, tudo picado até se chegar a um tamanho subatômico), o aroma saindo da panela grande, o vai pra lá vem pra cá dela, um verdadeiro balé na cozinha, a fumaça subindo, eu ganhando nacos de pão depois de mergulhados no molho, a fumaça subindo mais, o aroma invadindo a casa toda, o arroz ficando pronto no último momento. Aquele cheiro, o frango sendo colocado (pré temperado) vagarosamente na panela. Mexer a panela. Sair da frente da mãe em correria por toda a cozinha em busca de tempero, sal, o que seja. Mais pão com molho. Mais água na boca. Mais fome. Mais balé. Gente chegando para novos nacos de pão. Era assim mesmo? A fumaça, o naco de pão, o tictictic da faca cortando cebola, tomate, pimenta e alho? Talvez a saudade não seja disso, da galinha. E seja dela, a mãe ocupada e produzindo um aroma de afeto que alimenta. A saudade da perda, uma saudade enternecida consigo mesma. Ou talvez seja saudade de um naco de pão num molho de galinha.

Há milhares de saudades, essas faltas que temos pelos pedaços de vida que já se foram e que -insisto- possivelmente não aconteceram daquela maneira. Que não eram daquele jeito. Que não tinham aquele gosto. Que não falaram daquele jeito. Que não proporcionaram aquele prazer. Que não causaram exatamente aquilo que imaginamos. Será que é isso? Não sentimos saudade, mas imaginamos a saudade, a criamos. Editamos. Reescrevemos. Reorganizamos o cenário. Limpamos os cantos. Melhoramos a iluminação. Aperfeiçoamos as falas. Esquecemos o real de agora para vivermos no irreal do passado. É um jeito de ver. E de sentir. 

Existe um tipo de saudade que começa uns 15 minutos antes de uma despedida. Instantes antes da partida. Segundos antes de virar saudade, esse tipo de saudade já é saudade antes de chegar. E que depois que chega, ervilha o coração de saudade. Que depois que cresce, arde. É a saudade produzida pelo amor presente, que surpreende pela prática (não a projeção) do afeto. Uma saudade que bica, que te sorri e te olha um segundo a mais. Então a saudade é o lugar de fala da perda real, não é uma sensação de saudade, o vazio que ela tem, a realidade da falta que provoca e até aflige. É uma saudade que viaja sem você e com alguém bonito ao lado. É a ausência do que se quer presente e não está. É quase uma saudade andando de bicicleta sem precisar de você para que o passeio seja perfeito. (***) 

PS: Saudade não ronca porque será? Porque esquecemos os defeitos de qualquer coisa ou de qualquer pessoa (inclusive seus roncos) sob o efeito da saudade.  

Resistência

Algumas palavras têm outras por dentro. Deus, por exemplo. Tem eu no meio, notou? Amarelo conta que amar é um elo. São palavras-filosofia, que escondem nelas mesmas significados profundos. Deus ter “eu” renderia várias boas discussões semânticas. 

Por outro lado, há palavras que carecem de explicação ou clareamento. Quando escrevo “sorriso”, vc pode ver (nitidamente, o que deixa algo nítido na mente) alguém em atitude sorridente, palavra que mistura sorriso e dente. Mas quando digo “resistência”, é possível notar de cara que se trata de uma palavra manca. Pode dizer manca atualmente? A atualidade mente. Ela precisa de uma explicação. Resistir a que? Trata-se de uma resistência (física, emocional, política) ou resistência (um componente eletrônico)? E pra que existe a tal? Pode ser para se contrapor ao autoritarismo, como a Resistência Francesa contra os nazistas. Ou resistência à ditaduras, como o MR8, grupo de guerrilha que combateu os militares brasileiros, autores do golpe de 64. Quase todos morreram, depois de torturados, ou em combates desproporcionais, mas o fato é que resistiram. Resistir também pode ser associada ao atletismo, indicando que os competidores precisam dessa virtude (no sentido de folego e músculos) para uma prova de 42 km. Resistência também pode ser um componente elétrico, comuns em chuveiros, por exemplo. Como dá pra ver, trata-se de uma palavra oca, já que precisa ganhar recheios para ficar completa. 

Resistência é uma atitude. Resistimos ao novo e nos transformamos em reacionários. Resistimos ao sábio e fazemos escolhas estranhas. Resistimos à possibilidade da não reciprocidade e amamos. Nem toda a resistência é bonitinha. Pode significar uma certa impermeabilidade às mudanças, esses ciclos necessários para o desenvolvimento coletivo ou individual. 

Ainda assim, resistir à vida ou à morte parece estar no gene de tudo que é vivo. Durante nossas jornadas, resistimos. Ao desamor (aparente ou não) de pais, tutores ou criadores, seguimos em resistência. Às dores do crescimento físico e emocional. Aos amores vãos. Aos políticos e aos gremistas. Resistimos em escolas, hospitais e estradas. Em relacionamentos, em empregos, nos grupos sociais, nas redes. Não resistimos a ficar anos fumando. A estar em toxidades diversas. A comprar um Iphone por 13 mil (não, eu não comprei. Não precisei resistir. 13 mil…). Nos tornamos seres resistentes a quase tudo, do luto às comemorações. Resistir é esperar que a resistência nos purifique, nos justifique e nos acolha. Resistir é uma escolha, muitas vezes pragmática, quando a alternativa é ainda pior. Estamos aqui há muitos séculos por resistirmos às intempéries, aos fascistas em geral e ao Bolsonaro (acho que vc perigosamente minimiza o que esse cara é capaz de causar) no particular, aos mercadores de esperança no geral e ao Lula em particular, aos de direita, aos de esquerda, aos que nos impõe pertencer a um dos grupos. É preciso resistir à tentação de estamos absolutamente certos. De ficarmos perto do que nos aborrece, emburrece ou que torna invisível um olhar generoso ao mundo. Afinal, olhares generosos um para outro é a marca registrada dos amantes. Vai que tudo seja influenciado por quem resiste à indiferença e ama a humanidade. Que ama o outro como se fosse ele mesmo. Que ama e dá vexame. Que ama e espera, resistindo à evasiva fácil de ir-se. ***

Não é naufrágio só porque afunda

Escrevo para ser visto ou, pelo menos, escutado. Escrevo auscultando tudo que vive e os motivo das muitas mortes que tive. Escrevo porque a urgência me acalma. Para falar do invisível que vejo. Escrever me gasta. É o que me faz desgastar os fatos, os encaixando na cama preguiçosa do imaginário. Desgosto e escrevo o que não mostro. Desprezo e escrevo (ao mesmo tempo) tudo o que me exaurindo, me vê partindo em mil pedaços. Sou parto e barco, porto se despedindo. Quando encerro, me fecho e não me queixo. Deixo que escorra em mim a borra do desencanto. Não me pergunte dos risos que não dei. Das riquezas extraviadas. Não é que não queira falar. Apenas não sei. Me fujo e me sujo em letras desencarnadas. Puno o que não lido. É um azar não me ler, mesmo a mim, porque descrevo o que te vejo. Agora percebo um certo desprazer, um incômodo, a decepção borbulhante entre silente e calma. Não escrevo, delato. Não escrevo, arremesso. Não escrevo. Me atrevo. Não escrevo. Não escrevo. Não escrevo. (   )

Ciclos

As mortes são o horário nobre da vida. Sem o falecimento do que não é mais, como haveria a encarnação de uma nova experiência e toda a jornada que ela precisa cumprir? Marcas morrem. Relações chegam ao fim. Impérios acabam. Ditaduras sucumbem ao sol dos dias. A maldade se vai. O mesmo fim será o destino dos maldosos, assim como dos gentis. A diferença entre um e outro é o legado que deixam, as lembranças que promovem e o futuro que semeiam. Mais dia menos dia, os dias do amanhã irão embora, tudo passará.  

Não há Itaipu sem que Guaíra acabe. No fim do trigo, o pão. Viver é cíclico, há nas coisas algo que as leva. Se arrastam, mas são coisas. Gemem, as coisas. Tremem de medo do inevitável e o evitam em desespero. A meta do para sempre é o congelamento das experiências espontâneas. “Felizes para sempre” não é um objetivo, mas um castigo, aprendi. 

Mas se tudo acaba, que razão há para a capela, o estádio, o foguete, o fracasso, o sucesso, o casamento, a amizade, as cidades? Pela necessidade da fé. Pelo espetáculo. Pela descoberta. Pela experiência. Pelo aprendizado. Pelo amor da gente. Pelo amor das gentes. Pelo pertencimento. Entregar-se a uma relação, doar a alma num ideal. Viver pelo bem coletivo. Tornar-se parte. Qual o propósito disso tudo? Acho que é o amor. 

Amar alguém é a única coisa que nos faz imortais e mesmo isso impõe condições. Um homem, uma filha, uma mulher, um filho, um ser. Um país. Um cão. Um riacho. A sensação de entrar em um rio de água doce, tomar um chá, 15 minutos de conversa. Existe amor no cheiro de terra molhada e se você fizer um pacto, árvores te amarão. Mesmo as que tenham espinhos, como os limoeiros. Mesmo as que não tenham e vivam em um parque.

Conversas amáveis nos curam da escuridão. Gente é lume e farol. E se olharmos um para o outro nos sabendo um e outro, estaremos prontos para quando chegar o quando. 

Quando morarmos juntos. Quando entrar na faculdade. Quando conseguir aquele emprego. Quando puder te contar o dia e contar contigo todos os dias. Quando chover ou esfriar. 

Quase tudo irá embora, é certo. Mas poderemos resistir (felizes). Poderemos existir na segurança extrema que respira, invencível, na confiança que construímos, na coragem que inspiramos, no amor que nos abriga. 

Simples


Para andar, bike
Para torcer, inter
Para viver, muque
Para matar, fome
Para esquentar, pé
Para olhar, filhos
Para leite, sucrilhos
Para sonho, coragem
Para inverno, lã
Para espirro, saúde
Para canções, alaúde
Para amaciar, doce
Para amar, você. 

Sou outro

A gente não se conhece. Podemos nos gostar, nos admirar por feitos ou desafetos, nos amar por encanto ou conveniência, mas conhecer alguém? Isso é quase impossível, somos outros o tempo todo. Reencarnamos diariamente nas células, emoções, pele, cabelo, sinapses, neuropercepç˜ões, reações. Isso junto com opiniões, alvoroços e, claro, os outros que somos ou que seremos.

Depois que volto de uma pedalada não sou mais o mesmo. O projeto aprovado causa metamorfoses. A saudade martiriza e você nem sempre quer partir para o sacrifício. A decepção nos modifica, você torna-se alguém que sofreu por alguma coisa. Qualquer elemento mutante (são milhões por segundo) nos reduz ou agiganta e, acima de tudo, muda. Sentimos raiva ou prazer. Temos desesperanças ou acreditamos que dessa vez, vai. Ao cabo disso, seremos nós, modificados por nós e outros tantos. Seremos outros, entretanto. Entre tantos, seremos outros. Não irreconhecíveis, não chega a esse espaço. Pelo contrário, parecemos os mesmos. Mas estamos levemente tocados, trocados, outros.

Temos demandas diferentes, mesmo quando olhamos para o mesmo ponto. É que somos outros. Somos outras vozes, focos outros, outros que se vão e outros que silenciam. Somos recheados de experiências cuja maior consequência é modificar os corpos e as almas dos quais somos feitos. Por isso, estar ao lado de alguém ou participar de algo é uma escolha diária. Não há decisão fácil, não sabemos nada do outro, o outro é o inesperado no escuro. Por isso é indispensável reconhecer as mudanças ocorridas os seremos inexistências ao lado de inexistentes. Ignorar isso é condenar o outro (e a nós mesmos) ao exílio daquilo que se é. Os grandes silêncios, são justificáveis para um, mas talvez. E não para um outro, por certo. Quem se rasga silenciando não é o mesmo que fica exposto ao silenciado. Os dois sofrerão pela mesma coisa, mas por outros motivos. Serão outros nessa jornada. Um pelo que perde. Outro pelo que não ganha. Todos pela despedida que ocorrerá se não se apercebemos disso.

A vida nos remodela. Medos nos reestruturam. O amor nos renova. Mas ao te olhar hoje, és tu hoje.  Ontem  eras outro ser, uma vivência que nem existe mais no tempo, ele mesmo o cerne das variações percebidas ou ignoradas, porque todas são vistas. És tu agora, viajante daquilo que te importa. O que há são esses momentos breves, moldados pelos nossos encontros, cada qual inédito em sua profundidade e protagonista nos afetos que nos convertem em outros o tempo todo. 

Poupar. Planejar. Precaver. Prevenir. A pretenciosa segurança que essas escolhas nos trazem é frágil. Não digo que não se deve fazer essas coisas, já que se deve. Mas também é necessário entender que é tudo por um triz, a poupança é confiscada. Já não aconteceu?. ´Basta um vírus e pluft, adeus planos, bem-vindos a novos destinos. Num zapt, lá se vai a precaução junto com uma chuva, um raio, um carro que anda rápido, uma pedra cai, um vento sopra, mudanças não pedem licença. Mudança é a vida se regeneranço e, às vezes, balança forte. Num zip, olha o inesperado do amor, da compaixão, do acolhimento, do riso que nos muda e do abraço que nos recebe.

Distraídos pela sensação de consistência que a rotina oferece mas não entrega, fingimos que não vemos que ela própria é formada por novidades compactadas umas nas outras. É prazer novinho em folha que é ver uma árvore dando folhas laranjas. Mudam a si mesmas e mudam os olhares que atraem, mudando quem vê. . Acontece com um segundo a mais que se mantenha na visão entre amantes. O pão de queijo daquela hora. O café naquele momento. A solução inédita. A demonstração nesse instante. A declaração ao vivo dos afetos e dos seres afetados. Só há isso para oferecer. Não havendo, não há nada para resistirmos ao desconhecimento dos conhecidos que nos cercam e que desconhecemos por completo.

Não é que você não me conheça. É que você não conhece ninguém. E que, basicamente, tudo que respira não sabe de quem somos e porque corremos o risco de dar a mão ao desconhecido. Esse é o milagre que existe entre nós, o eterno novo e o perene das infinitas novidades. Lutamos com força contra o que nos modifica, e tudo nos transforma em uma escala estupenda. Então temos que encarar que não conseguimos desvendar o outro. Que só podemos aceita-lo, sendo o outro o que é, o antigo do que segue adiante do Nando Reis. A mudança vencerá porque o contrário disso é a inaniç˜ão das águas paradas: não saciam, qualquer que seja a sede. O bom dia que você dá hoje é completamente diverso do oferecido ontem. O tom. A intenção. A energia. O corpo. A expressão. A forma e, dentro dela, a alma. Mudou quem disse. Quem escuta é outro. Para seguir amando ou seguir adiante, será preciso aceitar que momento a momento o desconhecimento. Assim, viver é será um apresentar-se sempre, sem medo de nós, nem de sermos outros. ***    

Quando, onde, porque

A vida é impar. Viver é outra coisa.

Não é quando. Nem de onde. Pra que não representa. Porque não responde. É que simplesmente não importa. Não é o que fazermos. Não é tão divertido estar na praia. É irrelevante um sempre teremos Paris. A vida é de fatos, tirando a parte dos sonhos. Mas mesmo esses, se não realizados, vão para a coluna de débitos, do que faltou, do não aferido, do nem tentado, do exilado, do nem havido.

Viver é ato. Mesmo que seja muito o que poderia ter sido, fazer é um feito. Mesmo repreensível, imperfeito, cheio de desníveis, impedimentos e sustos. Mas não sozinho, no ermo das coisas. Vale, claro, saber do aniversário ou que horas são na Dinamarca. Afinal, é uma referência, uma forma de não expiar, espiando. Mas não há nada como o estando, a presença, o presente, a pedra jogada no rio, o riso atirado no ar, o Inter entrando em campo. Veja, não é o time, mas as lembranças que traz. Justo por que, juntos, nos tornamos histórias, viradas, vitórias inesquecíveis e vexames que machucaram. Nada é completamente vivido se trouxer, vívido em si, o excluído. O fluxo acontece no convívio, na permuta permanente das rotinas domesticadas. São ruas descobertas, lembranças trocadas, passeios, boletos, bicicletadas. Tem pipoca no sofá. A fé em algo. Buscar alguém lá longe. Café. Coca no bico e o indecifrável mistério do asterisco. É risco de não vir e chover. E assim sendo, continuar chovendo dentro. É platéia para artistas. É leitores para quem escreve. É atenção para família. É seguidor para influencers. É mãe para filhos. É um para o outro.

Não é quando, nem onde, nem porque. Nem longe, nem pra que, nem nada em zoom, nem tudo além. A vida que vale é com quem. ***

Aromas do caminho

Li não sei onde, a informação me surpreendeu muito. Dizia que os cães não sabem que estamos chegando. O que eles percebem é o tempo que estivemos fora. Isso acontece à medida em que os aromas associados a nós vão desaparecendo no ambiente. 

E se acontecer o mesmo entre os humanos, mas de um jeito um pouco diferente? Os aromas seriam as ausências. A falta de presença. O desaparecimento das essências que garantiam sentido a uma jornada, os esforços e renúncias. O laço que unia, as diferenças que aproximavam, o jeito de entrar e sair do carro.

Claro, pessoas mudam. Se interessam por outras coisas. Nos deixam. Vão. Se perdem. Se encontram. Lutas ou se rendem. Vivem. É nesse movimento, tão natural quanto imprevisível, que somos outros no dia seguinte aos dias que seguem, aquele tanto que que poderia ter sido. Deixamos para trás muita coisa quando seguimos em frente. Isso gera algo menor do que saudade, maior do que lembrança. É na fricção entre o real e o sonhado que nos alteramos, amadurecemos, olhamos para outra direção ou deixamos de ser a direção para a qual se olha. Entender isso, quem sabe, explique a alegria dos cães ao nos ver voltar. É uma comemoração. Não pela reestreia de um aroma que se foi, mas que agora está de volta. Trata-se da confirmação de uma confiança no aroma que há na certeza dos retornos. Entre os humanos não tem como ser igual. O que partiu, se vai. O que fica, parte-se em contorcionismos para vencer ausências. Se alimenta da felicidade imaginada, dos encontros não idos, das festas inacessíveis àquela vida. Não divide o sol se pondo. Não conta do filme visto. Não comenta o livro riscado em suas partes mais exaltadas. Não toca. Não presencia, silencia. Ao mesmo tempo, lembra. Reinicia. Se concilia, remenda e caminha. Estar no mundo é perder-se em seus encontros. ***

Sempre será uma escolha

O inaceitável é como chegar na fronteira de um país. A não ser que você seja o Brasil, não dá para ir entrando, como se aquele lugar fosse seu. Não funciona assim. Você precisa ser aceito. É essencial ser bem-vindo. Isso inclui existir. Documentos são verificados. Os motivos daquela viagem também. Coisas são ditas. Melhor não tentar entrar com 2 quilos de maconha no bolso. Nem pense em levar um pacotinho de Maizena na bagagem, você vai ser impedido de entrar. Não por tráfico, mas por transporte ilegal de piada ruim. Em alguns lugares, a falta de passaporte é inaceitável, você volta. 

A questão, claro, não se limita a visitas ao estrangeiro. O aceitável e o inaceitável têm uma flexibilidade impressionante. Aceitar, às vezes, é uma questão de compreensão da diversidade ou mudanças de valores, a impossibilidade reinante em determinadas situações. Não aceitar, às vezes, é impedir que a mesmíssima diversidade obrigue a pessoa a se comportar contrariando seus valores essenciais. 

No limite, deixar para dizer não na cerimônia de casamento é inaceitável. Mas se isso aconteceu porque a pessoa, a um instante do sim, olhou para alguém e se apaixonou? Eu disse que era no limite, não que se tratava de um acontecimento real. Mas e se fosse, aquele sincero e verdadeiro não o que seria? Aceitável? Inaceitável? Mas é a verdade, quem sabe. Mas era um casamento. Você define. Quando o inaceitável se torna um peso? Em que momento não é mais aceitável o que aceitávamos até ali?

Desconfio que a resposta seja “quando deixamos de aceitar que nossos desejos são algo que nos define. É quando passamos a aceitar menos do que é preciso para a gente ser e estar ok por dentro”.  Salários, relações, coisas, objetos, tratamentos, situações, tudo pode ser a) aceitável ou b) inaceitável. Não há gradiencia, não existe o mais ou menos. Ou é mais ou é menos. Ambos podem ser a) aceitáveis b) inaceitáveis. Lembrei de uma música muito muito, triste, eternizada pela Elis. Uma parte da canção diz algo que agarra o ouvinte pela alma, arranha e dói

A barra do amor é que ele é meio ermo
A barra da morte é que ela não tem meio-termo

Continuo e digo que muita coisa pode ser inaceitável, inclusive na saúde. Depois de um acontecimento tipo ou vai ou fica, tive medo de quase tudo. Caminhar era assustador. Subir uma escada, que suplício interminável. Conclusão de alguns momentos: talvez viver não tivesse sido a melhor decisão. Mas aquilo tornou-se uma situação, era preciso fazer algo, afinal eu havia dispensado a conversa derradeira com o maioral. Quando meu médico disse que a recuperação iria demorar um ano inteiro, achei aquilo inaceitável. E tratei de ficar bom. Bem, o processo  de me tornar eu mesmo outra vez demorou 2 anos e meio. Moral dessa história: o inaceitável tem que ser combinado com a realidade, que se impõe, aceitável ou não. 

O ponto aqui é que aceitamos de bom grado o inaceitável como um atributo da gestão existencial. Acontece que saber disso não torna aceitáveis as centenas de coisas que estão em nosso catálogo com o carimbo de não aceitáveis. Se você permanece aceitando o inaceitável, algo sussurra no ouvido da tua alma. E se você não ouve, o corpo explica a situação de um jeito que você entenda. A saudade, a distância, a falta, o excesso, o amor, a amizade, o trabalho, a espera. Para tudo existe uma medida que é sua, nem bom nem ruim. Apenas sua. Nem melhor nem pior do que ninguém. Simplesmente você e seus aceitáveis limites e inaceitáveis rompimentos com eles. Seus aceitáveis desejos e sonhos e os inaceitáveis boicotes a eles. Você escolhendo aceitavelmente você mesmo. Ou você que deixa de existir por doença, tristeza, saudade, amores, pessoas. É inaceitável não estar plenamente feliz, quando isso é possível. ***