
Fiquei pensando quando e porque uma saudade ataca. Nem sempre é do tipo romântica, essa falta da alma de alguém amado. Se bem que eu acho que não é do ser amado que vc sente falta, mas do ser amado amando a gente. Pensando nisso, percebi que há saudade para todos os gostos ou desgostos.
Um time pode se tornar saudade, como a Seleção de 82. Não ganhou a Copa, mas que time! A elegância de Falcão, a genialidade do Sócrates. Sei, você não tem a menor ideia de quem estou falando, mas sinto falta desses atletas em ação. Será que aquele time deixou saudade porque faltou algo? A consagração não obtida, o que seria se tivesse sido, o quase lá? Saudade é feita com fios de injustiça: a seleção de 82 era perfeita, claro. Mas a Itália, aquela tosca, acabou com a gente. Mas se éramos tão especiais, porque levamos 3 gols? E do mesmo cara, do mesmíssimo Paulo Rossi? A saudade pode desfocar as coisas, tornando o que aconteceu mais próximo do que não aconteceu.
Bom mesmo era no tempo da ditadura militar. Bastou o Bolsonaro (um ex militar, montado num governo militarizado) perder e pronto, surgiram os democratas implorando um golpe de estado. Não sabem o que pedem, não têm a menor ideia com o que sonham. É o que acontece quando assassinos são anistiados: se abrem as espantosas portas do inferno das repetições. Essa gente esquece as centenas de pessoas mortas pelo desprezo com a vida, os desaparecidos, exilados e agredidos pelos milicos. 20 anos disso em nome do que? Da pátria, da família e da liberdade. Não pensam na Angel, cujo filho teve a boca ligada a uma mangueira que estava conectada ao escapamento de um Jipp. Coisas assim aconteciam o tempo todo e com qualquer um, inclusive os tais “cidadão de bem”. Essa turba não leu “Brasil nunca mais”, livro recheado de documentos e sangue produzido pelos militares. Ninguém foi preso. Ninguém foi acusado. Ninguém foi responsabilizado. Isso pariu uma saudade melancólica, a saudade encharcada de dor, uma saudade editada, o tempo perfeito que na verdade nunca existiu. Havia censura. E havia jiboias deixadas em salas escuras para torturar mulheres nuas. E gente anestesiada sendo atirada de aviões para que morressem por afogamento. Jovens foram desfigurados na porrada. Ninguém me contou isso, mas eu sei. Por ler, por pesquisar, por viver. Tudo isso foi anistiado, não poderia ficar assim, mas ficou. Apesar disso, centenas de pessoas estão na frente dos quarteis pedindo um golpe miliar, com saudade de um tempo horroroso e violento. Saudade pode ser feita do esquecimento pela dor alheia.
Há saudades específicas. Eu tenho, pelo menos. É da galinha da mãe. O preparo (cebola, tomate, sal, alho, tudo picado até se chegar a um tamanho subatômico), o aroma saindo da panela grande, o vai pra lá vem pra cá dela, um verdadeiro balé na cozinha, a fumaça subindo, eu ganhando nacos de pão depois de mergulhados no molho, a fumaça subindo mais, o aroma invadindo a casa toda, o arroz ficando pronto no último momento. Aquele cheiro, o frango sendo colocado (pré temperado) vagarosamente na panela. Mexer a panela. Sair da frente da mãe em correria por toda a cozinha em busca de tempero, sal, o que seja. Mais pão com molho. Mais água na boca. Mais fome. Mais balé. Gente chegando para novos nacos de pão. Era assim mesmo? A fumaça, o naco de pão, o tictictic da faca cortando cebola, tomate, pimenta e alho? Talvez a saudade não seja disso, da galinha. E seja dela, a mãe ocupada e produzindo um aroma de afeto que alimenta. A saudade da perda, uma saudade enternecida consigo mesma. Ou talvez seja saudade de um naco de pão num molho de galinha.
Há milhares de saudades, essas faltas que temos pelos pedaços de vida que já se foram e que -insisto- possivelmente não aconteceram daquela maneira. Que não eram daquele jeito. Que não tinham aquele gosto. Que não falaram daquele jeito. Que não proporcionaram aquele prazer. Que não causaram exatamente aquilo que imaginamos. Será que é isso? Não sentimos saudade, mas imaginamos a saudade, a criamos. Editamos. Reescrevemos. Reorganizamos o cenário. Limpamos os cantos. Melhoramos a iluminação. Aperfeiçoamos as falas. Esquecemos o real de agora para vivermos no irreal do passado. É um jeito de ver. E de sentir.
Existe um tipo de saudade que começa uns 15 minutos antes de uma despedida. Instantes antes da partida. Segundos antes de virar saudade, esse tipo de saudade já é saudade antes de chegar. E que depois que chega, ervilha o coração de saudade. Que depois que cresce, arde. É a saudade produzida pelo amor presente, que surpreende pela prática (não a projeção) do afeto. Uma saudade que bica, que te sorri e te olha um segundo a mais. Então a saudade é o lugar de fala da perda real, não é uma sensação de saudade, o vazio que ela tem, a realidade da falta que provoca e até aflige. É uma saudade que viaja sem você e com alguém bonito ao lado. É a ausência do que se quer presente e não está. É quase uma saudade andando de bicicleta sem precisar de você para que o passeio seja perfeito. (***)
PS: Saudade não ronca porque será? Porque esquecemos os defeitos de qualquer coisa ou de qualquer pessoa (inclusive seus roncos) sob o efeito da saudade.