Ao vivo

Não gosto de fios emaranhados, chaves que não entram, coisas que rangem, tropeços, dar com o dedão na quina de móveis, do jeitão das baratas e de pó sobre mesas onde se come. Preciso de uma certa ordem, um determinado grau de zelo, doses controladas de rotina, pão na chapa, goles de café, momentos pra absolutamente nada. Não muito, nem sempre. Não sei de onde veio isso, nem para que servem mesmo alguns cuidados, não os tive nem aprendi nada a respeito, sempre fui pra rua e dela vim. É mais recente essa vontade de casa, de poltronas comuns, planos conjuntos, hora de ler, o tempo de esperar longamente por uma cena onde está personificado o afeto. Nunca fui boêmio, bêbado, sambista, nem namorei tanto assim. Não é nem bom nem ruim, apenas não me aconteceu dessa forma, escolhi outros vícios quem sabe. Afinal, tenho aversões crônicas, como pisar em lodo com os pés descalços, ouvir certas palavras durante as refeições ou perceber dentes faltantes. Gosto do Walter Hugo Mãe, que fala coisas lindas como “meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo junto numa só”.  Ou “O que o meu avô valorizava em mim era o empenho em gostar de alguém. Toda a sabedoria devia resultar na pura capacidade de amar e cuidar de alguém”. Isso é um retrato da emoção, algo capturado tempos depois do ocorrido, mas com uma precisão de amante, com a alma da coisa faltante, esse avô que existe na alma, esse amor tatuado no pulso.

Então te escrevo uma pergunta: como faz para escrever isso? Ninguém inventa um amor assim? Um amor desses, só vivendo, só sendo, só tendo. É como conseguir desemaranhar fios, ter chaves que encaixam, obter silêncios equilibrantes, caminhar em linha reta, viver num abraço que não desabraça e comer em mesas limpinhas. Não há como sentir a presença sem ter vivido a presença e amado a experiência a ponto de repeti-la no sempre da vida, ou num texto em que escrevo infinito e sabemos que isso significa algo muito mais extenso. *** 

Um novo velhinho em folha 

O novo caminha em direção ao velho. Não há medo nem coragem que os aproxime ou afaste. Existe apenas um tranquilo conforto com o inevitável do encontro. Os dois se reconhecerão. O velho vem de longe no tempo e o novo corre na tarde que julga eterna.  Ao perceberem que tudo os aproxima e difere, um tem lembranças das histórias que o outro ainda interpreta.

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caipira day

Todos precisamos de dias calmos e inalterados. Que tenham um começo, meio e fim sem sustos e sobressaltos. Por favor não confunda isso com dias em que não acontece nada, onde até a monotonia se espreguiça e boceja. Falo de dias caipiras, desses que vêm do interior para te visitar ao som de Renato Teixeira. Chegam tão devagar, tão sem pressa que você acorda e nossa, ainda tem duas horas de cama antes de levantar. Quem já foi dono de duas horas a mais para dormir, sabe da sensação alegre que isso causa. Precisamos de dias com tempo pra nós.

Um dia estava tão cansado de tudo, exausto, com sono, irritado. Me deitar era a única necessidade real que havia. Uma cama, precisava daquilo como água para chocolate. Durante o banho, ainda ouvia as pessoas pedindo informações, orientações, fazendo comentários, os risos, os barulhos, ruídos e passos. Meu estado emocional era de alguém em frangalhos, seja lá o que isso queira dizer. Mads sei que exaustão te reduz a menor (e às vezes pior) parte de você mesmo. Eu não precisava de um milhão de dólares, a campanha que havia criado poderia ser aprovada ou não, tanto fazia, e o Inter que ganhasse o perdesse, não me importava. Todo o essencial da vida era uma cama. Quando me deitei, a experiência foi avassaladora. Estava ali uma pessoa cuja única e urgente necessidade estava atendida, a de deitar-se em uma cama e apagar as vozes. Estar espichado em uma cama, em conchinha comigo mesmo, a cama que me trazia um estado de descanso e relaxamento e aquela sensação quase me fez chorar de alegria. Foi algo tão emocionante e apaziguador que qualquer tentativa de descrever será inútil. Precisamos de dias que nos recebam de corpo e alma.

Comecei a lei um filósofo Coreano-Alemão (agora não sei se cometo um erro ao indicar alguém assim). Vamos começar de novo: estou lendo Han, um filósofo dos bons, nascido na Corea e com cidadania Alemã. Ele nos traz um conceito interessante, algo que dá o nome do seu livro, “A sociedade do Cansaço”. Até onde fui, é um material relativamente pequeno, ele indica que estamos tão fora de nós que precisamos que os outros nos confirmem a existência via likes, corações e carinhas felizes. Há regras não escritas no Instagram. Jovens que se patrulham para não postar mais de uma foto por dia, uma discrição digital, uma timidez pós moderna, seja lá o que isso queira dizer. Não h´á espaço para a tristeza e todos são implacavelmente sábios, felizes, modernos, resolvidos. Nesse labirinto chamado internet e redes sociais, fomos nos perdendo e sendo inapelavelmente devorados pela pergunta da Esfinge: quem somos nós? Como não sabemos, o preço a pagar seria esse processo que adultera valores essenciais. Seu ápice é uma inversão apocalíptica quase. Algo tão grotesco quanto profundo e assustador.

” É como se as marionetes comandassem o titeriteiro “

“Titeriteiro”, pra quem não sabe (eu não sabia) é quem manipula marionetes. A ideia de que pode estar ocorrendo justo ao contrário é forte e apavorante por ser real. Afinal, uma agenda só nos pertence se tiver a nossa letra, com os compromissos que escolhemos aceitar. Com inconsciência, somos presas fáceis na cadeia alimentar que dita tendências, impõe comportamentos, cria ídolos e estabelece modos narrativos próprios. Não quero a volta de um passado nostálgico de duvidosa existência. Um tempo editado e, por isso, lindo. Algo com cortes e inclusões o bastante para ser colocado em prateleiras como algo suave e que, provavelmente, não se deu da forma lembrada. Quero uma boa rota de fuga para o futuro em que o esse passado anuncia com um riso selfie. Desejo criar dias onde escolas ensinem trocas carinhosas com o mundo, o valor do afeto, economia criativa, ações solidárias, emoções, escrita, empatia e arte. Nunca tivemos aulas sobre o que sentimos. Chega de saber sobre os afluentes do Rio Amazonas, a fórmula de báscara e as histórias dos catetos triangulares. É urgente parir autoconhecimento, a única fonte possível para dias de mudança e amor. Precisamos de dias originais e sem medos.

A tecnologia é encantadora. Posso falar com gente da Rússia, tenho amigos em Portugal, me comunico com pessoas da Inglaterra. Não falo inglês. Meu drusso e meu português quase ninguém entende. Mesmo assim, me viabilizo via incríveis ferramentas feitas por desenvolvedores de facilidades. Mas graças ao desvirtuamento da inteligência natural, a inteligência artificial criou e agora seguimos robot influencers. Um exemplo é a Lu, host digital da Maganize Luísa. Ela tem mais de 25 milhões de seguidores, 5 milhões só no Insta. 5 milhões!, assim, com exclamação. A personagem aparece em baladas, na praia, surfando, fazendo compras e o que acontece? Interagimos com ela, como se houvesse uma ela! E porque? Por que, aparentemente, abrimos mão de nós. Toda ciência é bem-vinda, toda filosofia, toda tecnologia. Carecemos de espaços de conversa capazes de nos fazer arregalar os olhos diante de uma sensação boa, de um momento em paz, de um pensamento cuja razão de existir seja a liberdade de surgir como afirmação inconteste do nosso prazer de gera-lo. Um direito que alegremente dispensamos em nome do tudo pronto que vem do Google. É urgente a construção de dias artesanais.

Dias mansos, fáceis e domésticos são, como todos os outros dias, resultado de escolhas. Exigem parada, reflexão e atitudes. Dias caipiras não evitam dias agitados, pedreiras e tarefas duras de engolir. Mesmo assim, esses dias precisam ser criados -e por nós. Não pelo governo, não pelo guru, não pelo par, pelo casamento, pelo emprego, pela Alexa, mas por nós, de carne, Rivotril e osso. Nos dias caipiras, poderemos experimentar um olhar mais vagaroso para a vida, que nos corresponderá em um determinado tempo, não no tempo instantâneo das receitinhas prontas. Então tomaremos uma boa garrafa de água gelada, ou uma Coca acompanhada de quiche. Comeremos algo, conversaremos muito, nos conectaremos com o grandioso que é estar ali nos compreendendo. Serão dias em que saberemos a diferença entre vontade e desejo.

Dias caipiras não se fazem sozinhos. Temos que atraí-los dormindo melhor, comendo com qualidade, trazendo pra dentro de casa rotinas miúdas e boas e, principalmente, sentindo mais do que pensando. Pode ser uma meditação, uma água com limão, um Fernando Pessoa antes de dormir. Tenho tomado mais água. Tenho comido mais frutas e salada. A carne vermelha será retirada por completo e já está bem rara nos meus pratos. Se vai dar certo, seja lá o que isso queira dizer? Não sei. Mas se vierem, pelo menos às vezes, dias caipiras como o que vivi hoje, nossa, porque não comecei antes?

***

Aprendi a falar a tua lingua entendendo os ditos que saem da minha boca. Não pelo que se traduz, mas através dos apelos que trazem. Somos nossa vida predileta, entre tantas existências possíveis de se olhar ou viver. Diante de mim, há o Atlântico nesse momento inexato que acontece entre outros tempos acessíveis. E se fosse bombeiro, pediatra, dono de padaria, astronauta ou piloto de Fórmula 1? E se ficasse numa ilha cercada de amar a única você que existe? E se fosse escritor de contos infantis, soldadinho de chumbo, voluntário da pátria? E caso você fosse pediatra, projetista de ambientes, escultora de gente, dona daquelas tabacarias cheias de aromas incríveis, gostos sem fim, temperos e especiarias?

O destino das coisas não é o que tinha que ser. Nada é o que tinha que ser. Não há uma sina, um ponto final, um somos assim e pronto, um eu sou o que sou. Abrimos portas, fechamos janelas, podemos chegar e decidir não ficar sem o nosso par em Ithaca. Permanecemos -nem sempre serenos- entre o infinito do sempre e a beleza de tudo que nos faz perenes. Família, parceiro, filhos, primos distantes, tias chatas, mãe ausente, entorno, contornos, moldes, modelos, natais frustrados, gente que não veio, filmes não vistos, livros e pedidos de casamento. Vivemos cercados de momentos e portinholas da jornada. Ali, o design, dois filhos. Aqui, pesquisadores do fundo oceânico, 4 golfinhos. Noutra, decoração interior ou comercio exterior, 6 pontes de safena, uma casa pequena e 2 gatos siameses. Em um outro real, entendimento, muro baixo, asterisco e cherie latindo e manhosos, planos, sonhos e realizações, além imperfeições da vida, desejos atendidos e férias em lugares calmos. Jogador do Inter, pesquisador de aranhas, especialista em montanhas, marinheiro, cowboy, ilustrador, fundador do Green Peace, roteirista em Amsterdã.

Diante de tantas possibilidades, desconfiamos do que nos seja novo de fato. Então, finalmente resgatados, muitos se deixarão ficar nas ilhas dos seus fantasmas conhecidos, agarrados a sequestradores ou mesmo se juntando ao bando.

Nada mais triste do que a beleza renunciada. Viver se duvidando, desabitar-se, importunar o sossego. Nada é mais assustador do que estar do lado de fora dos risos, não se saber amando. No entanto, eis um segredo terrível. Eis um aviso que deveria apavorar tudo que vive num lugar no cosmos que não lhe pertença. Muito cuidado, porque é assustadoramente possível. ***

Tradução

Sempre me intriga as conversas que temos. É como se elas fossem atalhos luxuosos para o entendimento, algo sempre tão urgente para n´ós e subdimensionado para tanta gente. Continuamente me surpreendo como escutadores aceitam e são mantidos nesse papel, como se suas vidas fossem planícies encantadas e seus estados de alma cantassem Don’t worry o dia inteiro. Escutadores perdem seu direito à lugar de fala, do desabafo puro e simples, aquela sensação de ahuhhhfffss depois de dividir o peso das horas com alguém de confiança.

Todo escutador contumaz parece mandar um recado ao mundo, o de não precisar falar, está tudo bem. E se aquietam por dentro. Alguns deixam de ter sono, incapazes que se tornam de sonhar. Talvez por isso deem tanta importância aos gestos que expressam seus desejos, precisam ser adivinhados, vistos, olhados, escutados naquilo que isso de significa de ´íntimo e de intimidade. Se não dispõem desse espaço, duvidam de aproximações reais, daquelas que tiram o fôlego porque são fala e escuta ao mesmo tempo. Então passam a tentar controles impossíveis, arrumam a mesa e retiram a louça, aquecem o chá, viram uma solidão bem arrumada, solícita e perfeitamente enquadrada nos sonhos alheios.

Penso que o que descrevo é a pior forma de exílio, quando você passa a ser ex-você mesmo. E escuta a empregada, do filho, marido, esposa, namorada, colégio, trabalho, dos prazos, da praia, da barriga, da briga, da reconciliação, do perdão, da dívida, dos créditos, do futuro, dos planos, do chefe, do amor. Acontece que toda fala é essencial porque nos humaniza. Servir de ouvinte, apenas, tira nuances importantes de uma conversa, algo que na base é troca de experiências e experimentações. Retire isso de um diálogo e estaremos falando de desentendimento, menos valia e uma certa dose de frustração.

Encontros entre iguais são uma roda de conversa. Permutamos então bobagens diversas, nossos caminhos secretos, confiamos sentimentos, discordamos, acendemos fogueiras aos afetos, contamos com o outro e para o outro o que somos naquele momento, o que nos falta e do que estamos plenos.

Escutar nos traduz. Falar nos representa. Declarar nos reproduz. Agir nos orienta. Nós, as pessoas, só existimos sem os nós que nos prendam. Nos somos melhores sem nós. E o que nos desata é a troca de uma boa conversa.

Recebi alguns pedidos a respeito da minha opinião sobre a letra de Mistérios, do Renato Teixeira. Vou dizer o que ela me conta. Se está certo ou não, quem sou eu? Renato é uma coisa de bom. Tenho ouvido muito sua obra nesses dias e encontro respostas em muitas das suas canções, como Mistério.

O poeta caipira fala que “o maior mistérios é ver mistérios”, como se não entendesse muito o motivo para tanta complexidade que observa no pensamento da nossa raça. Isso é reforçado pelo “ai de mim senhora natureza humana”, como quem lamenta tamanha vocação para o complicado.

O músico não diz que “eles” são assim. Reconhece que ele mesmo tem dificuldade no assunto quando mostra que gostaria de “olhar as coisas como são, quem dera”. E termina o verso com a continuação de um do desejo de “apreciar o simples que de tudo emana”, transformando a simplicidade na essência de todas as coisas.

No refrão (Nem tanto pelo encanto da palavra, mas pela beleza de se ter a fala), a profundidade do artista permanece intacta. No poema, a palavra é reconhecida como algo encantador, brilhante, inestimável. Mas falar, ah falar, poder se comunicar com o outro, isso é o simples do belo.

É por isso que te digo sempre. É um dizer não perfeito, mas é o que tenho a declarar.

Tuas palavras calam

Há gente que não precisa, ou necessita menos dos ditos. Eu gosto deles, que te aproximam e afastam, independente do significado que se dá aos gestos. Talvez porque a palavra expressa tenha o condão do pensei nisso e isso é o que sinto depois do pensado, o tal dito. Quem sabe seja porque é bom de ouvir, no tom de quem a gente quer bem, a palavra vinda. A não ser que seja algo desconfortável, aí todo som é ruído. No timbre da voz e no texto que ela porta, há tudo que se toma ou se teme, que se deseja ou precisamos evitar. Sei, às vezes precisamos evitar justamente o que se deseja, mas isso outro solo, para outras colheitas. Fico com o bem dito que são os dias vindos. O tempo encontrado. A coragem entonada. Todas as palavras são iguais. O que as transforma em especiais é a essência de quem emite, os encontros paridos, as palavras ditas são sentidas ou gemidas, omitidas ou geridas. São ninho onde crescem, sendo maternadas com carinho. Se expressam verdades. Porque se King discursasse “acho que tenho um sonho”, Seria diferente. Mas não, ele disse “eu tenho um sonho” para contar. E fez história com isso. Palavras existem para plantar dúvidas, semear conversas, discordar, declarar, duvidar, exigir, abrigar, pedir, perguntar, confirmar. Elas são uma demonstração inequívoca do que se pensa, sente, deseja, ressente, perdoa, alivia, contraria, emociona ou ama. Quando é você quem diz, quando eu escuto ou digo, palavra é um abrigo. Melhor, é vão. ***

O maior mistério é ver mistérios
Ai de mim senhora natureza humana
Olhar as coisas como são quem dera
E apreciar o simples que de tudo emana

Nem tanto pelo encanto da palavra
Mas pela beleza de se ter a fala

(Renato Teixeira)

Quando

Nada é mais longe do que amantes separados. Por trabalho, bobagem ou um impedimento qualquer, algo nada natural acontece. E aparece ali, nas entrelinhas do dia, um estranho cuja resistência depende do riso que está fora do alcance. Um calor externo, algo tão seu quando não seu pertencente, o outro e suas outrices.

Estive longe uma longa vida e o tempo inteiro estive exilado em mim. Quando penso em presentes, acho que é pra recompensar a presença, aquietar ausências e explorar quem sou. E sou quem leva sopas ou aguarda lá fora, que erra o tempo, que anda devagar por que já teve a pressa de te encontrar.

Habitar o prestes a um encontro é uma bagunça sem fim, alma que amo. É a nave entrando na órbita, essa mistura de fogo e gelo, o velho desconhecido e o novo já visto.

Será que é hoje, será que acontece, será que entendeu o que disse e será que será será como já falou Caetano, o baiano que tem tanto a declarar?

Nunca escrevo para concluir. Não me atrevo, só penso o que vivo e dentro de um senso que me vista com a essência daquilo que acredito, até que isso se revista de insumo para outras coisas pensantes. E de outros sentidos unindo o agora com um pouquinho de antes. ***

Não é tudo, mas é muita coisa

Quem faz o que eu faço precisa ter um compromisso com o que é preciso. É essencial, por exemplo, que a precisão seja entendida em uma de suas funções, a exatidão, nem mais nem menos, precisamente aquilo. Drummond de Andrade disse isso sobre o seu ofício:

Escrever é cortar palavras “.

Mas nem tudo é concisão, corte e certeza. Viver é mais Odisséia e menos Aurélio, há gradiências importantes. Na escala dos encontros com o mundo, qual é a a régua aplicável, o mínimo e o máximo multiplicador comum? Em um recorte da existência, o outro não poderia significar o ápice de um desejo? Não representar tudo o que se quer da vida, o que seria um fardo. Mas ser tudo o que se quer daquele aspecto da vida, um ângulo do sonho, não o sonho todo. Acho que somos feitos de outros, temos outros por dentro. Outro amores, outro colegas de trabalho. Outro motorista de Uber, outro marido. Outro mulher. Outro jogador do Uberlândia Futebol Clube. Outro filho. Outro embaixador na Índia. Outro artista preferido. Outro autor da hora. Outro filme que toca, ou cena que diz, escrita por outro desconhecido e interpretada por outro famoso. Como a Terra, que é quase toda água e mesmo assim chamamos de Terra, somos feitos do que nos causam e do que causamos, há outros elementos projetados, necessidades, sonhos, pontos de observação do mundo, diferenças, uns e outros.

Nessas conexões, há lapsos de vontade, desníveis no tempo, diversidade, cultura, essência. E se um encontro pode se transformar em jornalismo, ciência, conversa, design, literatura, amizade, filme, ideia, movimento, filho, carreira, vocação ou caminhada, porque não poderia ser romance? E sendo isso também, não diria que o outro não pode ser tudo. Isso o aprisiona ao que ele não pode ser e o outro -qualquer que seja- existe na grandiosidade da sua existência, expressão e consciência, inclusive no que nos escapa em compreensão ou concordância. Talvez a gente não queira ter uma determinada importância na jornada do outro. Ou não possa. Ou existam necessidades maiores do que aquela. Acho que você já faz isso, eu preciso treinar, mas cada vez mais tento ver nas vidas que se cruzam com a minha as especificidades que as tornam o que são. Deixo claro que não se trata aqui de olhar o outro, mas a mim mesmo, às respostas que dou às perguntas que faço.

Conviver é um equilíbrio em construção. Retira-se o excesso da pedra e surge o que ela veio trazer. É bonito de dizer, mas também significa pó, tempo empregado, calo, poeira, nem sempre fica como se quer ou ganha as formas que imaginamos. Certo ou torto, o resultado nunca é singular, mas sempre no plural. Nossos encontros o mundo são esculturas à muitas mãos e se nota que são pela medição que vai do grotesco ao belo, ainda que haja coisa e outra ao longo do processo. Não há como ou porque escapar do outro, desde sempre estivemos entrelaçados. A diferença é que aos poucos vamos traduzindo quanto do outro queremos receber e quanto conseguimos dar. Trata-se de um processo artesanal, exige tato e contato, causa alguma frustração, doses de alegria e entendimento, saudade e escolhas. Seja para casar ou parir, orientar ou pedir, negar ou consentir, o outro tem parte de você e você não seria igual sem essa presença. Todo encontro apresenta em si a semente do que seremos depois desse acontecimento. O que inspiramos uns nos outros importa porque somos isso, um recomeçar interminável. Você é o meu melhor outro, alma que amo. Teu gesto me afeta e teu afeto me faz bem.

Tons

Nota

Música é um mistério pra mim. Se bem que a tampinha da BIC também é. São fã dos inventores de coisas como a tomada T. Há uma simplicidade naquilo que me deixa de boca aberta e com o coração feliz. Já assino há um tempo um serviço de streaming de música, então não venha, sou moderno. Mas ainda não entendo como funciona uma Fita K-7, segredo dos segredos.

Desafinados

Aos poucos, a vida vai passando e me sinto mais conservador do que nunca. Não a ponto de achar que o Bolsonaro pense algo à respeito de alguma coisa. Ou de tentar uma atitude empática com ele, seus ministros, governo, pensamento, apoiadores, modo de vida, fala, jeito, modos, métodos, nada. Como vejo, perdemos anos de avanços em direção à civilidade, aos direitos fundamentais ou a inteligência social, maquevá. Falava que me torno docilmente um conservador ou moderado. Mas antes disso, do jeito que me pareceu correto, minha energia era à esquerda do capitalismo. Tentei doma-lo, o tornando mais gentil e vetor de progressos para todos, mesmo que em proporções diferentes. Ao lado disso, estive ao lado da igualdade de gênero, da discussão pública sobre ensino, saúde, prioridades coletivas. Desejei e agi pela diminuição da pobreza espiritual, financeira e filosófica. Sonhei em colocar o conhecimento (e as oportunidades) à disposição da vida. Por isso, me assombra que tantos jovens possam mesmo querer mudar o mundo a partir de uma direita extrema, tacanha e violenta. Incapaz de uma compreensão sistêmica do mundo, os extremistas não olham escutam ou falam com o outro, apenas desejam sua eliminação. O espirito solto da juventude sempre esteve do outro lado disso. Pelo menos os jovens deveriam ser à prova de ideias e gente cafajeste, incapaz de chorar pela Beirute explodida, mas capaz de se vestir de um discurso vazio de lucidez, infeccionado pela mentira e obtuso de qualquer ponto de vista. É de doer ver que gente jovem e tecnicamente esclarecida se sinta representada pelo que há de retrógrado, velhaco e indecente no mundo.

Não me passa

Não me passa desapercebida a tua vida, nem tuas vindas. É como se o diálogo não cessasse um instante, me trazendo o que trazes, alegria. Perceber teus movimentos, sempre tão recheados de carinho e atenção, é uma esperança para o que há de amável em mim. Algo lentamente se acalma nos dias, uma sensação apaziguada e boa se acerca e sinto os sinais. Recebo com um seja bem-vinda. Sempre bem-vinda e certa de que isso não é um treinamento.

Repouso

A lua pra mim é mansa, no sentido de suave. Lembro da sua pedra, da bandeira americana fincada e do que me contaram sobre seu mar, chamado Tranquilidade. Toda rua é dela, todo escrito é teu, toda lua é cheia e me apresenta o riso que ilumina a sacada. Não vejo romances nela, gosto mesmo das fases, um lembrete do tempo que migra não porque passa, mas porque se vai de mim e, assim, me torno minguante.

Tuas vindas nunca passam desapercebidas. Isso não é um treinamento.