Primeiro

Olhando a foto, pareço estar num balanço. É uma boa imagem, não uma boa ideia. É o meu primeiro passeio em dias e dias. Ainda dói muito, a perda muscular é uma coisa, mas avanço. Nesse tempo, não houve hora sem esforço de melhora ou descrença quanto a isso. Chegar ali, onde o sol vai e volta, foi a glória olímpica do dia. Então, assim que cheguei, pensei algo como “eu precisava estar ali para te receber”. Sou dado à símbolos, fricotes, mesuras. Ao mesmo tempo, como frango com a mão. Com meu primeiro salário, comprei um violão. Gianinni, cordas de aço, grande erro, dão um calo enorme e o som não é suave e macio como o nylon garante. Meu primeiro tombo foi com Yara, joelho direito. A primeira moto, uma Honda CG 125. O primeiro carro, uma Brasília  codinome nojenta. Meu primeiro emprego foi de recepcionista odontológico. Já ganhei a vida preenchendo cheques, fazendo programas que ninguém ouvia. Meu primeiro show foi em Caxias do Sul. Meu primeiro prêmio foi uma corrida de costas. Meu primeiro festival de música foi um fiasco, mas gostei. Meu primeiro jogo de futebol foi um Grenal. Meu primeiro tênis, um Kichute. Meu primeiro ano longe, chorei todos os dias e não saia de casa. Meu primeiro título publicitário foi “Ponha sua ideia no lixo”, para um encontro sobre reciclagem. Meu primeiro amor foi você, nada de errado não ter amado antes. É um fato, sem perdão ou pecado. Meu primeiro sonho foi ser piloto de F1. Meu primeiro texto foi sobre um cachorro chamado Uau. Minha primeira palavra em inglês foi boi, mas era boy. Meu primeiro grupo religioso se chamava AJUDA (Associação de Jovens Unidos e Dedicados ao Amor), aff. Minha primeira canção era uma droga. Minha primeira canção para alguém foi para você, gravada em CD e tudo. Nunca compus para outra pessoa. Minha primeira dispensa foi por telefone. Minha primeira dor foi embora com tua vinda. Meu primeiro desejo é te ver feliz. Meu primeiro ego complementa: o que só pode ser ao meu lado. E mesmo com impedimentos de toda ordem, com silêncios, com frestas, com coisas duras de ouvir e de escolhas difíceis de aceitar, estive ali, pra te levar um presente e te receber no primeiro passeio ao ar livre, depois da queda. Há significados nisso tudo, não te parece? Nada heroico, nada perfeito, nada pronto e acabado. Nada orgulho de amor dado, mas alegria do amor trocado. Então, se vens, é inteira. Cheia. Plena. Pronta. Zonza de saudade. Cheia de notícia. Se dizendo. Aberta e feita de riso e abraços indisfarçáveis. Declarada. Planetária. Primeira em ti e em mim.  Irei assim, abrindo portas e lembrando de coisas que esqueces. Serei teu primeiro em tempo inteiro. Chegarei antes pra te receber. Estarei lá. Sempre estarei

Roda de conexão

“Gosto dessa sensação”. Foi isso que pensei antes de entrar na sala branca, ainda lúcido, mas com aquele torpor típico se avizinhando, efeito da anestesia. Não tenho a menor ideia de como a coisa funciona para apagar desse jeito o cérebro, mas aquela engenhoca parecida com um conta gotas, aquilo é coisa de gênio. Não o líquido que vai, a engenhoca que dosa o tanto que vamos receber por vez, quem pensa nesse tipo de coisa deveria ser abraçado. A dor era das boas e foi passando, indo, o sono se impondo. Gostei do relaxamento, de estar embriagado de anestésico, não sentindo nada, um estado sonâmbulo, quase doce, percebi um pouco de frio e de cansaço. Estranhei a médica mexendo com a minha perna de um lado para o outro e falei algo como ?!!*&kndkk@2, a língua dos dopados, o idioma dos desconectados. Lembro que me ocorreu algo como “e se eu não voltar?”. Me diverti pensando como seria desnecessária uma cirurgia de joelho nesse caso. Pensei em você e um breve riso teu percorreu a sala alva, silenciosa, dormente. A ideia de não te ver mais me assustou, sempre me assombra. Moral da primeira parte dessa história: antes do sono induzido e profundo, estava contigo e não havia medo, só presença. A sensação de estar contigo tornou-se prazer de estar feliz. Figuras como eu têm uma certa facilidade em lidar, enfrentar, discutir, oferecer-se em sacrifício, culpar-se e sorrir. Há por certo um componente de alegria na alma. Mas felicidade é em outro andar, exatamente esse onde você trabalha. Quando não escrevo é porque tenho hoje a consciência que faço isso como uma conversa. São diálogos, preciso deles, a declaração em si, a entrega fácil e leve. Acho que as dores (mais intensas nas duas primeiras semanas e agora em estágio civilizado) ajudaram nisso. As figurinhas que achei foram uma forma de me contar sem precisar passar por processos de curadoria. Isso pode? Isso não pode? Esse trecho está ok, não está? Dá trabalho encontrar a Mafalda olhando pra lua e dizendo “pensando em ti”, porque é isso que faço, te amo em tempo integral. Dia desses, num desenho sobre felicidade (Se não houve amanhã, você foi feliz hoje?), veio uma pergunta tipo “Foi*”?. Aquelas 3 letrinhas tiveram um efeito espetacular e renderam um texto sobre não ser um sim completo. O ponto que tento tocar é que encontrei meu tesouro e meu coração está ali, onde ficará porque cheguei e chegando te encontro, é assim. Está pacificado em mim, acordado entre minhas partes, oferecido na alegria da oferta do que pertence ao outro. Não carece de aceite, é o que é. Entende a importância que tem?

Sonhei com você e sonho contigo. A saudade machuca porque lembra a falta que faz. Estou bem, acho. Amanhã fazem 21 dias só da queda. Quantos anos não te vejo? Não sei. Mas és em mim, estando ou não comigo. Tuas vindas nunca passam desapercebidas e confirmam que existimos. Tua existência me alegra e amo cada passo e passeio junto. Sim, ontem mais do que hoje. Sim, sempre. Um dia te conto tudo sobre os dias que esperei pra te contar tudo.

Qu ndo s m é i comp eto

Fiz esse filminho por um motivo singelo. Gosto de testar minhas habilidades baratas em edições simplinhas. Não há aqui qualquer tentativa de capturar elogios. É mesmo algo que faço com o coração de amador. Acho que sou um tipo esquisito de alma, sempre estive no estrangeiro dos clubes todos e está tudo bem que seja assim. Foi dessas escolhas feitas de olhos abertos e que hoje me trazem uma certa paz, quem sabe mesmo um pouco de orgulho. A ideia geral era fazer uma leitura visual em fast da nossa conversa a respeito do outro, sua importância, sua existência e sobre como o amor (que não tem como ser hierarquizado, você tem razão) atua em cada ser. Claro, é um argumento cheio de pretenção e a maior delas talvez seja a de tentar equalizar pensamentos distintos entre si. Mas que carregam a delícia de uma experiência indescritível que é conversar com alguém sem a preocupação de responder, apenas de ouvir, trocar e aprender. Diálogos reais, vida real, aconteceu comigo, ninguém me contou, nada de ouvi dizer. É possível é pode mudar vidas. A minha mudou e sou pleno de afeto e gratidão por isso. Senti tua falta uma existência. Então o teu amor me orientou. Se isso não me fizesse feliz, o que mais faria? Entenda: não se trata de certeza absoluta, apenas uma dúvida sanada, de um caos pacificado, de estar no meu lugar no cosmos.

Não escrevia há um tempinho. Mas tuas vindas não me passam desapercebidas. São tão boas que comemoro em slow, sorvendo e colocando tudo na caixinha dos significados azuis. Têm sido dias cheios de leitura e preparação. Então sim, feliz por cada pequeno ou grande avanço. Tento não esperar nada de tudo. Não veja nisso algo semelhante a desânimo, não é. Trata-se do dia, apenas ele, sem monta ou guia, apenas o que me traga e o que faço disso. Respondendo a uma questão aberta: me interesso pela essência. Não a parte, mas o que me causa o todo, que vida é essa com o meu ou o teu nome. Como se entrelaçam, como o entendimento se dá, onde convergem, onde persistem, onde se abraçam, como ficam à vontade em companhia mútua.

Somos solos, acho. Muitos precisam ensaiar por horas e horas até que a harmonia aconteça ou não. Outros são sessões de jazz ou rock, ou sertanejo ou não devem ser catalogados por certo. O que sei é acreditava em canções parceiras. Então a ouvi, alma que amo. Então a ouvi.

O corte e a costura

É da natureza das coisas a possibilidade de parir seus contrários

Quando li isso ontem de manhã, imediatamente uma canção me veio à cabeça e me fez levantar. O dia inteiro a melodia me bicava, até que o teu recado me chegou como um barco que não descreve um arco e acalma corações que caminham no porto a espera de notícias, chegadas e partidas. É preciso interpretar o dito a partir do que a poesia afirma, a forma que é cantada, o tipo de arranjo que recebe. Essa música veio duas vezes, não é uma coisa a gente? O bilhete continha algo diferente da afirmação original do poema. Um acento e a reviravolta que ele (o acento) provoca na lógica do escrito. Eis a manga:

A vida é mesmo assim

Dia e noite, não é sim

Nelson Mota (autor da letra, que ganhou linda música e uma interpretação tipo uau do Lulu), escreveu “Dia e noite, não e sim”. Nota que o acento dá conotação diferente ao poema e o que ele passa a significar? Acho uma manga e tanto. Dia e noite não é sim. É um contrário nada sutil de Dia e noite, não e sim. Na primeira frase, é a afirmação da contrariedade, a negação cotidiana do desejado. Afinal, não é sim. Revela uma conformidade, quase uma a rendição às rotinas, mesmo indesejadas: a vida é mesmo assim, dia e noite, não é sim.

O poema é uma declaração de amor não declarado?Adormece o sentimento ou cala o que ele desperta? O fato de amar calado é, em si, uma demonstração de amor? Trata-se de uma constatação ou é biográfico? É um oferecimento direto do portal? Definitivamente, tenho algo a discutir com as sutilezas, o design das emoções. O amor nos tempos de corona precisa ser literal ou é a hora de lançar mãos de todos os simbolismos? Talvez as duas coisas. Mas sinto que algo me escapa, o cenário é incompleto, há muito escuro, olho o teto, tateio em busca da confirmação simples do pertencimento completo do afeto que me resgata tantas e tantas vezes, como agora mesmo. Lulu e Nelson te representam nessa canção? E porque? Mesmo que o outro saiba, é preciso dizer.

Eu não te amo calado. Mas ouço a sinfonia de silêncio.

Olha onde vou escavar, buscando significados. O ato de pensar não é um barato? Como diria Álvaro Campos (que não quer ter razão) e que se pergunta “pra que serve uma sensação se há uma razão externa para ela?” Que bom para quem pode revoltar-se em comício dentro da alma, em uma lucidez irritante, olha isso. Sim, é o Jô interpretando Pessoa.

Sou um vadio pedinte?

Outra canção cheia de significâncias é essa. “Ame-o ou Deixe-o” foi o slogan do Brasil entre 64 e 79, quando o bicho da irracionalidade e do desprezo rugiu. Era uma ameaça: você deveria amar seus pais (na verdade seus governantes) sem questionamentos. Ou isso ou seria mais saudável deixar-lo, ir-se, banir-se, tornar-se invisível. No caso da invisibilidade, ou você sumia ou os milicos fariam o serviço por você.

Então veio Caetano e tira a máscara violenta daquele amor-medo da ditadura. O baiano ressignifica aquela dor e nos presenteia com uma anistia que reencaminha o engano tentado pelos farsantes. O amor, ali, abandona o condicional, “amar ou deixar” e encarna seu contrário. Com a troca de uma letra, acontece então o “amar e deixar”. Novamente, uma letra e a perspectiva ganha novos rumos. Receber uma música assim é um pedido? Deixe que o amor siga? Não transtorne seu caminho? Ame-o e deixe-o livre para amar é uma constatação do que acontece, ou uma oração para que isso se dê? Que meu amor intenso sempre liberte teu melhor.

Que meu amor sempre liberte o melhor do outro.

A foto lá em cima e essa aqui mostram a transformação que une arte e uma dupla de artistas. Eram velhas máquinas. Não costuravam, nem alinhavavam mais nada. Sem chance de bordados, nem o tuc, tuc, tuc, tuc tão característico das suas ferragens, engrenagens e mecanismos. A obra de arte é um achado pelo encontro das retas e curvas, a beleza da releitura, o objetivo revivido e que contraria a condenação ao ferro velho dos esquecimentos. Não somos máquinas, claro. Mas somos medo e desejo, luz e sombra, sim e não. Eu te amo calado? Também.

Estava tão cansado ontem que dormi com Friends, numa época em que Mônica não consegue fazer isso porque luta contra uma separação afetiva. Tenta de tudo, até que tem notícias do seu amado, quando enfim Morfeu a recebe e a descansa. Se foi bom? Se é Friends é bom.

Canções transformadas em significados e formas de resistência. Poemas que exorcizam perdas e autorizam revoltas. Obras de arte que exploram as novas possibilidades para cortes e costuras. Séries antigas que nos oferecem o vazio aconchegante para o sono. Tudo isso, de alguma forma, lembra da importância de estarmos juntos. Sendo e deixando ser, sempre dizendo presença, entoando carinhos, alinhavando o amor que serze e serve a “saudade de tu, do teu abraço gostoso, de passear no teu céu. Quando estou com você, estou nos braços da paz”.

Que o teu afeto sorridente, misturado à minha intensidade, nos transforme em nós, comunhão de dois, encontro de familia, a gente de volta pra casa. É sim, é sempre.

In vel

“ Eu posso ficar invisível! Isso transcenderia a mágica.
E contemplei, dissipadas as dúvidas mais nebulosas, uma visão magnífica de tudo o que a invisibilidade poderia significar para um homem: o mistério, o poder, a liberdade.”

A frase lá em cima é do “O Homem Invisível”. Sempre que eu penso em um poder que gostaria de ter, esse ganha de longe. Não sei se seria sábio ao usá-lo, possivelmente não. Mas me divertiria muito, nossa. E teria que me acostumar a andar nú. Afinal, o invisível sou eu, não minha roupa. E estar peladão diante da Rainha Elizabeth pode ser libertador. Depois, só você saberia da minha presença, pela bagunça, queda de coisas, tapas injustos. Porque disso? Por que o beliscão leve na bunda de alguém seria culpa do sujeito logo atrás da pessoa beliscada, imagina o rolo. Eu sei, ser invisível é uma responsabilidade e tanto, mas posso ser digno depois? Agora vou ser tolo e assustar o Bolsonaro que vai pensar que ouve vozes dizendo que o Mourão gosta dele de um jeitinho diferente. Imagina a cara da Delamaris vendo uma goiaba correndo atras dela, rio de pensar. Teria acesso livres a segredos de estado, reuniões importantes, espaços vips, momentos solenes, assinatura de tratados e quer saber? Usaria boa parte do meu tempo vendo escritores fazendo seus originais, atores e atrizes ensaiando, observandoa Oprap preparando um ovo quente. Porque o invisível de tudo, o como se viaja, o alegre e o ranzinza de tudo que é feliz, tudo que existe de não visto parece mágico e poderoso. O incrível do que há de invisível é justamente poder se mostrar. É surpreendente a força de uma lembrança e o que é isso? É o invisível presente. Toca Romaria e Elis não está mais lá, mas posso vê-la, ela existe. Como resiste no perene do sempre a risada do pai, as canções da mãe, o barulho da fritura, o chip chip chip chip do esfregão no chão. Posso te ouvir agora mesmo, no invisível que nos pertence e não há nada nesse dia que seja mais resgatante. Posso te vestir de tantas formas, todas reais porque foram vividas e permanecem vívidas. Te abraço e te peço, rego o que começamos juntos há tantos (e invsíveis) anos. É diferente ser invisível e não ser visto, entendo agora. Como há muitas formas de contar que amamos, muitas linguagens para o entendimento, o norte, o sul e o centro são servem de nada se nos dizem apenas onde estamos. A função invisível das referências é que a gente conte pra gente para onde não vamos.

Tivesse o poder, um manto de invisibilidade, invadiria muitas igrejas de mil pastores. E cochicharia em seus ouvidos pouco cristãos que estavam escutando Jesus. E que lhes ordenava devolver todo dizimo, qualquer benfeitoria, favores indevidos, verdades escondidas, carros, casas e esperanças furtadas de um rebanho indefeso. E se não fizessem isso, coisas estranhas nasceriam em seus órgãos escondidos, teriam bafo horroroso ou pioraria muito o já existente. Entraria no quarto de Trump, ah isso seria bom. Riria um riso estranho, acenderia luzes e escreveria stop with wall onde fosse possível, gritando te enviaré a la pared ao mesmo tempo.

Crianças me veriam. Lembro de uma que andou de bicicleta comigo, verdadeira estrelinha. Elas sempre olham o que não vemos. São capazes de definições que para nós eram invisíveis até que nos mostram:

Acho que nós, adultos, tornamos invisíveis as crianças que fomos. O que é uma pena. São elas que fazem carrinhos de corrida, soltam pipas e dizem “não sei” quando as perguntam o que querem ser quando crescerem. Eu quero ser invisível e puxar tua saia. E te contar que estou bem, mas que às vezes é duro. Se você sentir um calorzinho, sou eu te abraçando. E os sinais de beijo, você vendo ou não havendo, sou eu que te deixo. Vamos fazer uma algazarra, gazeando aulas, guerra de água, chuva de sonhos, você não me verá, mas estou ali, juntinho. Abrindo portas (não se assuste), em frente da garagem para que entres sem risco, um cachorro imaginário chamado asterisco vai te lamber os sonhos e cantaremos juntos tua playlist preferida.

O invisível é impressionante, alma que amo. Se trata de um espaço multitarefa, salva o mundo toda vez que age. Agora vejo tudo que se movimenta em silêncio, os anjos da guarda, inspirações, ideias, encontros. Acalma, sabe? Falo de você, com quem converso e digo de modo indivisível o meu amor por quem és, minha gratidão pelas vindas tão plenificadas de ti e tua presença encantadora. Eu sei que me dirias que fazes por ti. O invisível disso é se trata de uma verdade inexata, mas que não importa. Ao teu homem invisível interessa marinar teus dias e servir o que te nutra sem as pressas das datas.

nonino

Era outubro e ele estava em New York, vivia lá. Então chega a notícia da morte do seu pai. Dias depois, o falecimento de Nonino inspiraria uma das canções mais lindas já feita por alguém. O que há nessa peça? Um tango é muitas coisas ao mesmo tempo. Une o imprevisível e o provável, dança e imobilidade, humor e tragédia, além de sensualidade e caricatura. Dizem que é uma mistura com tantos rituais que só poderia, mesmo, acontecer na Argentina. O piazinho Piazolla ganhou de su papá o primeiro bandolion. Foi o seu Vicente (nonino) quem mantinha a vitrola ligada com tangos, muitos tangos, durante a infância de Ástor. Viviam onde? Em New York. Seu pai era amigo de Carlos Gardel. Apresentados, o garoto e o cantor se tornaram amigos na hora. Isso a ponto de Gardel o convidar para acompanhar sua turnê. Onde a primeira parada? Medellin, mas houve um problema: Nonino não deixou que o garoto fosse, imagina a frustração. Gardel seguiu viagem, num voo que terminou com todos mortos em uma queda perto do destino.

Me atrevo a dizer que esse pai pariu o músico e inspirou sua música. Algo aliás debatido pelos argentinos, já que muitos achavam que piazolla era rebuscado, difícil, excessivo. “Adios Nonino” acaba com qualquer discussão e todos se reúnem em volta dela para ama-la. Quando a ouço, é um exército chegando, o inevitável vindo, a invasão da notícia indesejada. Os primeiros acordes são brincadeiras, correrias pelo apartamento, a rotina, o inacreditável nascendo. E um filho todo só pra si.

Até que chega, e chegando, aquela morte passa de pai pra filho, desaquece uma vida. Tem o lamento da alma perdida e o sentimento profundo da gratidão, num solo em que até o bandolion chora. Não há letra nesse tango, mas tudo fala eu amo você. É uma canção de despida que diz que sinto muito mais que sua falta. É uma melodia sentida, que afirma que tenho tua presença. Há dissonâncias, repetições, algo estremece, geme, entristece, ouça o violino. O perceba em seu dueto perfeito, exlclamando o que sempre seremos.

É um menino pedindo pelo pai, não se vá. Fique, que te obedeço. Me aqueça, que permaneço. Não morra em mim.

É como se nonino dissesse como é possível, filho? Que ideia é essa de vida? Entre nós não há despedida, toque um tango pra que eu te ouça, diga assim que me amas pra que eu saiba. Fique pequenino, polegar, beleza de filho, som de filho, amor de tudo que é infinito meu, toque um tango pra mim.

Dias ausentes

Tenho uma canção cujo som revela que é possível às palavras se tornarem o som e o sentido ao mesmo tempo. Fala de Marte, de espaço, de luzes que se alcançam. Mas dizem outra coisa, é um portal sonoro, amantes entenderão. Ela existe pelas verdades que formam sua composição. Não escrevo poesia, não me importam métricas, nosso sentimento vive se vestindo pra casar. Se arruma. Se perfuma. Fica diante da janela, esperando algum movimento. Vai ao super. Vem de longe. Ri do tempo. Chora de tristeza. Então, estando ou não estando na árvore do encontro. Vindo ou não vindo na sacada, algo confirma, é a seiva da conexão que não teme nem precisa se angustiar. Não se angustie, portanto. E me alegro pelo teu afeto que me mantém bem e desperto. Há Marte, sempre haverá. É ali que eu vivo, me entende? No espaço do colo, na língua, no dialeto, no concreto das dores que enfrentam as almas exiladas entre si, no entendimento da conversa transformada em espaço legítimo de troca. Tem saudade que arde. Há dias desafinados. Frustração? Tem sim senhor. Mas é nos dias ausentes que os amores não se reconhecem distantes, não se admitem faltantes e se fazem presentes com significado.

O presente de hoje é o presente de sempre

InQuantum

Quantum é só uma medida. Não tente aplicar lógica ao que há de infinito

Um amigo foi visitar o Grand Canyon. Antes desse passeio, ele me veio com uma dúvida divertida: “Mariel”, disse entre intrigado e curioso, “quanto tempo é educado ficar olhando aquele nada enorme pra poder, finalmente, ir ao shopping de uma vez?”. Entendi ali que tudo que for desejado mas mantido como secreto, emudecido, tudo que obrigamos ao calado, o que banimos para o subterrâneo das almas, nada disso se dilui. Algo ali se mantém resistente, indestrutível, feliz ou infeliz. Que não será possível submete-lo ao invisível, nem condena-lo ao ostracismo. Meu amigo pode achar chatinho o Grand Ganyon ou insignificante um grão de areia. O que não vai conseguir é impedir que ambos existam.

Eu acredito que o tempo é infinito e imóvel para todos os lados. Como percebo, o que se movimenta são as inúmeras manifestações da vida, o que abrange da semente de mostarda à montanha de milagres invisíveis e necessários para que germine. O tempo é uma linha sem fim, imóvel e formada por trilhas intermináveis onde nos movemos. Nessas trilhas, os acontecimentos com os quais aprendemos o exercício contínuo de ser e de estar. Somos nós entrelaçados, somos nós refeitos, reconhecidos em si pela existência do outro, que existe a partir daquilo que fomos capazes de ver.

Moram no tempo cada uma das suas alternativas, as coisas que lhe são assemelhadas, os portais e o que existe no sempre. Nada nele é repentino, abrupto, desvirtuado de sentido. Senhor de si mesmo, construtor de destinos, juiz das certezas, um deus não imutável, certamente um deus imp rfeito, um gigante, um clarão, o eterno instante de te ver. E se vens, seremos atemporais. Se não vens, ainda assim teremos sido o que haveria de ser.

Não te pergunto ressentimentos. Em mim, sempre é tempo de você.

Ao dia

Entre outras coisas, sou publicitário e todo publicitário se acha bom demais no que faz, fez ou ou fará. Todos os outros publicitários são questionáveis, menos o (aqui o publicitário em questão coloca o nominho). Na maioria dos profissionais da publicidade, principalmente os de criação como eu, todo o espaço é ocupado em confirmar a essencialidade da sua existência, mesmo que isso não seja mesmo necessário: obviamente, a importância está previamente confirmada por nós mesmos.

A Filosofia, por outro lado, fica na margem de lá da publicidade. Mas ela não é exatamente na academia, na estrutura, no plano de aula, no tipo de discussão que se tem, ou nos livros que se lê para que o próximo ano aconteça, nos desafiando para outras provocações, sutilezas, ideias em expansão. Ali se aprende as técnicas, os métodos, a ciência que rege o pensar sobre o bom, o belo e o justo. Refletir à respeito de algo te propicia a surpresa, o olhar encantado do homem que viu pela primeira vez a primeira labareda que trouxe a primeira fogueira, precursora do primeiro rodízio de assados na floresta. Filosofia é, fundamentalmente, um modo de vida. Você escolhe o modelo que te habilita a encontrar respostas, não certezas. Coisas que mudarão, à medida que a tua régua mostre que um terreno (portanto os pontos de vista) são verdadeiros e falsos ao mesmo tempo. Você passa a olhar por cima do mundo e tenta a entender o que rege as coisas por dentro. É algo diferente da propaganda, que tenta convencer, valorando o que existe por fora de tudo. Então, uma vez escolhido e aplicado o método pessoal de viver, o aplicamos com os talentos que nos são natos e as imperfeições que são tantas. Mas pode acontecer de mudarmos de bússula por conveniências, circunstâncias, crenças ou necessidades existenciais. Quando e se isso ocorrer, é boa providência avisar. Se você não disser, como vão saber?

Receber o Dia é um conceito de uma escola do pensamento que conheci há muitos anos, andando de bicicleta, matutando sobre um campanha cuja ideia brincava de se esconder comigo. Receber o Dia é aceita-lo em seus diferentes enfoques, nem todos na temperatura certa, a maioria em desordem e a minoria feitos a mão, por artesões delicados. e com tempo de sobra. É um exercício que exige alguma meditação. Afinal, ninguém chega aos portais do sempre sem passar pelos portões de casa.

Receber o Dia é um tipo de call to action, aqueles comandos mentais que colocamos em quase toda peça criada. Ninguém gosta, mas todo mundo põe. Faça, venha, corra, ande, olhe, passe, fique, as possibilidades são intermináveis. No entanto, Receber o Dia tem outra missão. A de nos neuropreparar para um encontro que é tão inevitável quanto gigantesco, chamado agora. Nele, imutavelmente, tudo será novo e reinaugurado. Em algumas horas, caminho do trabalho, milhões de células recém saídas da necessidade de existir, absolutamente tudo é outro, ultranovidade, nada é o que existia nesse exato instante. A maioria não nota. Mas não estamos falando de maioria, estamos? A maioria votou em, bom você sabe em quem.

Nos telefonamos, nos encontramos e nos colocamos frente à frente uns dos outros como se as horas fossem uma continuação rotineira e sonolenta de mais horas, formando blocos corriqueiros de acontecimentos em repetição. Não são. Não há nada garantido, nem eterno, não falamos com os mesmos filhos, pais, amores, amigos, caminhantes que encontramos outro dia. Esses não existem mais. Se voltamos a nos ver, o encontro estabelece inéditas e completamente diferentes condições de temperatura e pressão. Éramos outros, todo encontro é outro encontro, não há próximo assegurado.

Isso é Receber o Dia: transformar gestos em mais e mais capacidade de entendimento e surpresa, uma especialidade da publicidade, olha ela ganhando valor.

“Como se fosse a primeira vez” é um dos poucos filmes que gosto com o Adam Sandler. Nele, o protagonista precisa se apresentar todos os dias para a mulher que ama, já que ela foi acometida de amnésia e sua memória dura apenas 24 horas. A película estreou dia 13 de fevereiro de 2004 e, quase incrivelmente, a história foi baseada em fatos. Forte, não? É a vida citando ela mesma como exemplo. Ou como lição, depende de caso.

Quem deseja manter-se alguém cujo valor se renova e o prazer do convívio resista ao tempo não pode cometer um engano: substimar a força da inércia, mãe de toda rotina. Ela é uma correnteza, te cerca, tem poder hipnótico, acabará vencendo se não for combatida. Transforma o homem da sua vida num mané, um desconhecido a ignorar. A mulher estupenda ganha algo estranho em suas ruelas, becos, avenidas, urbes, ninguénsabe ir. Faz de você um arremedo, testemunha de fracos, de fracassos e de fracassados.

Receber o Dia não é antídoto contra o veneno de processos que, ainda que necessários, são repetições tediosas sobre o passar das horas, do continuo em sono profundo, o esquecimento de si. Receber o Dia é o exercício de quem olha para o lado e se vê montando seu destino, senhor de si mesmo e sujeito capaz de tornar-se o melhor que poderia ser.

O presente de hoje é um pedacinho do filme, 4 minutos. Dublados, mas esqueça isso e não esqueça de lembrar do que é importante.

Outro

Todo mundo é ao contrário, feito ao avesso, uma distopia, de ponta cabeça, diferentão, tem outro por dentro. Falamos sobre isso, encontramos um ponto, o elo perdido entre o que vemos e o que achamos que entendemos. Passamos desapercebidos e talvez os que se amem se olhem e ao se olharem, se tornem melhores. Quem sabe por isso se chame encontro. Ficamos melhores quando nos encontramos. Ganha-se um poder, acho. Entendemos outra lingua, tateamos outro corpo, criamos um idioma, definimos sinais. Só se pode gostar de alguém havendo alguém ali. Pai, mãe, tio, prima, marido, um amigo chamado Olavo. Uma pessoa que não sei. Alma que não sabemos nem nunca estaremos no lugar, um espaço dela, dele, esse outro que coletivizamos, coletamos, reduzimos e julgamos. É um outro de conveniência, o outro que precisamos. O de verdade é o que é, tem marido, meia, barriga, mulher. Negocia com o Itau, torce para o Santos, conhece São Sebastião do Caí. Reconhecer o outro é inevitável, porque somos o tempo todo outro. Anjos tortos. Santos do Pau Oco, Mayas, miragens, vertigens, dotes. Ao olhar para você enxergo outro ou uma projeção entristecida do que não sou capaz de ser. Essa é a essência de um julgamento: eu sei, tenho certezas. E você? é um outro que não sabe, um rosto, um fato de estimação, ação indevida, opinião contrária, audácia vivida, fraqueza a corrigir. Admiro isso em você, que vê no outro o que ele traz, o que foi capaz, a história escondida, a curiosidade estendida, tapete macio onde o outro se deita e descansa de um dia longo e cheio. Me enriquece isso em você, me torna maior, resgata o humano, essa ideia maluca que à medida que cresce, nos torna únicos e lindamente desiguais.