No princípio era opaco

As cores se auto conceberam, criadoras de si mesmas. 

Antes, tudo era incolor e coberto de uma densa camada do nada e sua ausência de cor. 

Então fez-se o verbo e, com ele, a senha das cores, era a vida disfarçada sob diversas gradiências. 

Antes, a cegueira. Agora, o infinito em interminável escala de nuances e experiências. Recém-criadas, as cores se tornaram universo em expansão permanente inventando deuses, crenças, histórias, explicações, amores, canções e tudo que não se pode tocar, mas ver. E vê-se o que é compreendido fora dos sentidos ou dentro das lógicas. Reinos têm cores e suas bandeiras pigmentadas a partir dos significados pichados em si ao longo da história. Perigos, sonhos, avisos, orientações, sensações, sentimentos, todas as lendas possuem cor. São geradas nelas e delas nascem para enfeitar os mundos que as reconheçam e seres que as cultuem. Apreço, amizade, horror, séquitos, segredos, mortes, adereços, métodos, conceitos, almas, corpos, manifestações de naturezas vivas e também as desaparecidas permanecem se experimentando em uma dimensão colorida. Sons são cores virando para que se ouça os dons da música, das buzinas, orquestras, discursos e declarações. Sim, declarações existem para serem feitas, ditas, sentidas e pintadas. Aço e sol, lança e pó, polar e centro, entre, fora, dentro, uno, trinas, múltiplas em aconchego e desconforto. Puras e transviadas, palatáveis e intragáveis, sem cheiro e aromáticas, elas deram cores aos profetas da luz e aos anunciadores das trevas. Então o mundo, em sua visão pequena e turva, pintou-se para o que conhecia de paz e para o que escureceu de guerras. Mães pariram meninos e meninas de cor, átomos têm todas as cores impregnadas de movimento intenso. Versões de universo surgem das cores cansadas do mesmo e que se reinventam momento a momento. Homens, santos, elementais, seres das florestas, santos, hinos, pontos, arcanjos, satanás, Barrabás, tangues, flores, junções, guias, aparições, visões, orquestras, inspirações, intuições, avisos, oceanos, bichos, formas obscenas, não linguagem, padrões, imagem, projeções, parasitas, poemas, Deus e todo encantamento, tudo é um mistério revelado do reino não habitável aos eunucos da vista. Cores são inteiras, aceitam o meio tom, mas coisas pelo meio, meia cor. Afetos nos roubam da estupidez furta-cor, é preciso cuidado a partir daqui. Afinal, com as mesmas cores do querer ficar se pintam as cores do querer partir. ***

lugar de cala

Silêncio é um tipo de falta, algo cuja ausência do som destaca. É a fala ao avesso, o som invertido, descontinuidade. Há momentos tão eloquentes que só o silêncio os traduz. 

Meu pai falava sempre sobre um desses instantes calados na alma da gente. Ele contava do acontecido, foi quando o Brasil perdeu o campeonato mundial de futebol para o Uruguai, em pleno Maracanã lotado de gente. O jogador uruguaio avança, a torcida vaia. Ele passa por um, a torcida grita. Passa por outro, a torcida se desagiganta. O cara chuta, a torcida geme. Milhares de pés fizeram um invisível movimento contra. Centenas de mãos sinalizaram a mesma intenção.  A bola passa, a torcida se contorce, num grito abafado, um lamento emudecido. É possível ouvir a bola viajando pela rede de nylon, a realidade baixa o volume de tudo e, gesto contínuo, começa um hiato, a falta absoluta de som, um silêncio que fala. Depois, se transforma em fantasma, o som do invisível, a descrição calada de um goleiro caído, da bola entrando, o campeonato indo, a alegria se esvaindo, o inacreditavelmente cego, surdo e mudo da perda. 

Existem milhares de coisas que nos deixam no quadrante extremo da quietude, o silêncio é um jeito de falar com a gente mesmo, de nos apresentar, de dizermos coisas impossíveis de serem moldadas no universo habitado pelos sons.

Lembro das apresentações do filho no Santa Maria. Eu sabia o que iria acontecer. Que a música seria canção específica do Roberto no Dia dos Pais, por anos a mesma. Então a pessoinha entrava no palco, olhava pra mim e cantava que tinha tanto pra me falar, que com palavras não sabia dizer como era grande o amor dele por mim.  Um silêncio intenso me invadia, era a sonoridade do afeto, a emoção de ser amado e de amar silenciosamente alguém. 

Quando converso  com as pessoas, presto muita atenção no que aquelas criaturas calam e o significado dos seus gestos inabitados por sons. Mãos bailarinas. Arrumação constante de pestanas. Mandíbulas em movimento. Olhar. Não olhar. Há vácuos entre frases e falas. É neles que  se manifesta o que há de silenciado nas almas. O lugar de fala de tristezas ou alegrias dispensa palavras. É o riso. É o choro. Mãos na cintura. Cabeça para baixo. Braços erguidos em comemoração. Um segundo a mais no encontro entre olhares que se atraem por afetos. Raivas contidas em pequenas mordidas nos lábios. Textos. Acelerações musculares. Pensamentos. Decisões. Reconciliações. Partidas. Vindas. Experiências. Impressões. Entendimentos. Observações. Todos os silêncios são raios, existem muito antes dos trovões.

A meditação é a busca proposital de silêncio. E também o intuito de silenciar ruídos internos, rodízio de ideias, amores mancos, solavancos mentais. Meditando, é possível abrir o pacote das coisas definidas em palavras e seus sons, desembrulhar, ver o que há dentro, entender o que nos trazem e o que nos convidam a fazer, possibilitando escolhas. Há uma fonte de prazer no silêncio, que parece ter temperatura e possuir uma brisa ligeira e fresca, às vezes fria. Quando uma situação me magoa, aborrece ou entedia, percebo que vou baixando o tom da voz. Ela vai se perdendo em energia, fica baixinha, mingua, desafina, se conforma e me calo. Vejo que muito do silêncio que fica em mim é o silêncio que me leva embora.

`As vezes, de propósito ou por descuido, silenciamos coisas que deveriam ser expresssas. Uma beleza, o tom da voz, um gesto, uma saudade, um ressentimento, medos, uma necessidade, um pedido, uma admiração, uma característica ou habilidade, um reconhecimento, uma saudade, um traço, um determinado pedaço do corpo, o jeito de rir, um sentimento, o pertencimento ou a ausência disso. Não o elogio fácil e vazio, não. A demonstração sonora de que o outro é visto em suas silenciosas virtudes. Dizer é dar voz ao silêncio, oportunizando mudanças e tornando sentimentos bons em porta estandartes do que precisa ser dito e das coisas que escolhemos silenciar.

***

Somos nós os nós

É preciso uma coragem, eis o nosso tempo e sua respectiva exigência. Coragem para não congelar os sentidos, cegando os olhos para as traças sociais. Somos nós, reconhece? Estamos um pouco ali, no sinal de trânsito, dormindo na rua, vivendo num tempo com templos demais e parco de fé que remova as montanhas de desigualdades que ignoramos, como se não fôssemos um tanto autores disso. Somos.

É preciso coragem de assumir nossa obra, rasgá-la ao meio, jogá-la no rio, desova-la nas covas dos lugares comuns das conclusões com vista para a superficialidade. Uma vez vc me pediu para apontar um país onde o socialismo deu certo. Me pergunto onde o capitalismo deu. Imagino que os dois sistemas fracassaram por serem assinados por gente sem gente por dentro e é preciso muito disso para não resumir os dias em 24 horas de direita ou esquerda, ambas uma opinião parcial da jornada. 

Não me chame de isento, não sou. Nem de centro, onde não estou. As nossas posições políticas ajudam pouco quem está com um cartaz na mão, pedindo comida. Não deveria ser aceita como sociedade um grupo que apresenta conceitos como novo normal, que discute se a Anita deve ou não dar aula em Harvard, que problematiza as faixas de segurança (é preto no branco ou branco no preto?), que põe fogo em índio, que assiste MMA, que fotografa tudo, que cancela, que lacra, que considera votar no Bolsonaro para se livrar do Lula, depois elegemos o Lula para sumir com o Bolsonaro. Enquanto tudo isso acontece permitimos milícias, deixamos a Amazônia ardendo em brasa, definimos qual é o melhor técnico para o Flamengo, aceitamos o mais ou menos e vamos ter aula de excelência. 

Somos nós e lá fora é espelho, um reflexo nosso, essa coisa, esse troço com traços evidentes de troça. Somos nós e as certezas absolutas que acompanham a tropa. Estamos de turma, regamos a morte, negamos a vida e nosso perfume é da Adidas. 

A boa notícia é que há sempre uma brecha, um descuido e um abraço surge entre amigos. Alguém desce do carro e oferece um par de meias. A Teto constrói 20 casas. Um senhor pede desculpas. Um garoto aceita. Surgem podcasts interessantes e a inteligência ressuscita. Entre montanhas de livros de auto ajuda, aparece um Tudo é Rio, o frio passa, o homem com o cartaz pedindo ajuda recebe algo. É ajuda. Resolve? Não resolve, mas ajuda. Acaba com a fome? Não acaba, mas ajuda. A violência é uma escolha. É hora de furar a bolha, agir em nós, arrumar a cama de manhã. E se levarmos um pãozinho extra para ofertar à fome alheia? Resolve nada, mas ali, naquela hora, para aquela pessoa, naquele instante e naquela fome fará. Depois, votar bem. Depois, agir bem. Depois compartilhar o possível. Mas agora, por agora, nessa hora aqui, um pãozinho não é nada, só um início. ***

Deus tem eu no meio

Fica boa sob tela: você é um unicórnio

Começou não sei bem como. Esqueci, tinha uns 3 minutos de vida, talvez menos. Não sou muito bom com lembranças. Mas penso aqui que o útero foi um lugar legal, porque gosto de espaços pequenos e quentinhos, falam muito isso dos ventres maternos. Depois, estava sozinho ali naquela água morninha e boa, dizem que é assim. O senso de observação e um certo gosto por estar à sós comigo mesmo veio depois. Talvez porque me esgueirava pelo bairro, evitando turmas. Talvez porque me escondesse em casa, ficando longe da confusão com 5 irmãos mais velhos. Embaixo da cama, então era bom. Na árvore japonesa, bem bom. Na escola, era o magrinho que gostava de correr e tinha o cabelo cortado tipo milico, o que me deixava parecido com um galho com topete. Dificilmente você é convidado para festanças com essas características. Minha primeira namorada foi a Juçara, assim, com ç. Depois descobri que a recíproca não era verdadeira. Era a minha namorada e de quem mais tivesse a habilidade de levá-la ao Cine Regente aos domingos. Quem soubesse respirar saberia também levantar os R$ 0,50 do ingresso. Juçara, Juçara. 

Não falo tudo isso porque tenha alguma conta a ajustar com o passado. Tenho, mas não se trata disso aqui. É mais para entender que fiz teatro (não exatamente fiz e não exatamente teatro, era mais um jeito de não estar nas coisas). Que me tornei um especialista em não falar e um doido para saber das pessoas. Me tornei um escutador de primeira, não por bondade ou outra virtude qualquer, mas por desejo de ser aceito. Eu aprendia os outros. Captava os sinais, um movimento minúsculo aqui, outro maiúsculo ali, os olhares, as senhas escondidas em palavras comuns, intensões e formatos de rosto. Persigo até hoje os roteiristas, tentando entender o que ele apronta antes dos personagens agirem. Se aquilo se torna fácil, perco o interesse. Mas se na última cena eu entendo que o garoto que vê gente morta estava o tempo todo falando com um morto, fico brigando comigo por não ter antecipado o truque. 

Quem não me conhece e me vê dirigindo, falando, conhecendo gente, comandando equipes, formando times, orientando pessoas ou sendo direcionado na criação de algo, não entenderá minha expansividade. E só os próximos entenderão que não se trata, exatamente, de alguém extremamente no centro do palco. Foi você quem entendeu que o centro do palco é o lugar do personagem, não do ator. Isso não me faz bom ou mal, melhor ou pior do que alguém outro. Não são menos verdadeiros os elogios ou insinceras as críticas. Afetos não finjo. O interesse é real, a ilusão é me imaginar liberado, fácil, compreensivo e são em tempo integral. É o contrário. Sou mega travado, complexo e em luta constante com as loucuras que assisto. Não é só divertido, mas é só. O que tento te contar é que não sei me contar direito, descrevo o que sou e o que subscrevo o que vejo. Me esqueço, me aqueço, estar é um zig zag entre o feliz e o padeço. O que conto é que contas em mim, adições diversas, somas totais, pouca diminuição, muito extrato, muito suco, muita goiaba enclausurada, muito infinito em fresta, muita festa em minutos, muitos assuntos, muita conversa, ser e não ser é a nossa questão, mas não do jeito que o escritor inglês pensou. Nunca é do jeito que os escritores pensam. Para escrever, penso, é precioso entender que no momento em que digo, é outra coisa no teu ouvido. Somos estranhos o tempo todo, portando, mutantes, amantes, silentes, vacilantes, humanos e às vezes você me põe louco. Ao mesmo tempo, a distância se torna um caminhar manco e quero te dizer que o Inter ganhou do Flamengo. Se estamos longe? Estamos longe de não nos amar. *** 8 deitado.

 

Diante

Estar diante do que se quer é bonança com direito à deslocamento de ar carinhoso, suave e bom. Chamam de brisa. Batizam de aragem, esse prazer em forma de movimento. É assim que é ver o que se quer dali pra frente na hora, no dia, no mês ou na vida. Em nome de tantas coisas e seus significados, os encantados entre si resistem até a eles mesmos, às vezes por anos. É um exercício continuo da busca pelo entendimento, um espaço de afetos incondicionais, lugar de perseveranças e descansos. O tom das vozes se alteram pouco e quando isso acontece, cortam pelo costume pelo pacificado. Mas estar diante do que se quer é  gerar conversas, não discussões. As discordâncias estão ligadas à tonalidade  satisfatória de azul nas coisas, o ritmo mais confortável de uma canção, quantas luminárias são necessárias para o conforto das leituras em dupla. Não é a felicidade margarina. É a felicidade de carne e osso. Ver a chegada do que ser quer é compreender algo juntos, mas não qualquer coisa. São sentimentos ligados ao sossegar no colo confiante e confiável que se impõe em sinais, avisos, intuições e confirmações. Nem sempre se observa o acaso agindo, pensamos em algo, percebemos uma imagem no fundo, passamos diante um do outro, um texto lembra o que amamos e muitos chamam isso de coincidências. Nos distraímos intensamente em busca de colocação, de futuro, de aceitação, dos fios soltos nas rotinas. Mas o que vale no fim do dia é se estivemos ou estaremos diante do que se quer. E para entender a importância disso, é inseparável um questionamento. Ele vai nos perguntar se sabemos o que queremos, pois só assim é realizável o equilíbrio necessário para estar diante do que se quer. Caso contrário, poderemos estar diante do que se quer e não reconhecer seu jeito de andar, um modo de ser, um molde de pensar, o retalho com o qual se veste. 

Não há nada oneroso para se estar diante do que se quer. Talvez tenha sido providenciado um contrato, onde (em uma das suas cláusulas) diga claramente que caso seja necessário o deslocamento para estar diante do que se quer, um meio deve ser imediatamente providenciado. Ou máquinas param. Reuniões são adiadas. Se alguém quer algo e está diante do que se quer, nada é realmente longe, pesado ou inseguro. O que se quer é o seu lugar no cosmos. E se você está diante disso, alegre-se, quase ninguém consegue essa proeza por toda a jornada. Homens e mulheres põe o pé na lua, inventam coisas, criam vacinas, comandam exércitos, desistem de reinos, conquistam territórios, manejam letras, atuam, transformam, viajam mil léguas submarinas, suportam 100 anos de solidão, enfrentam a si mesmos, renascem, tudo por um instante diante do que se quer. São esses instantes que valem a eternidade, qualquer eternidade. 

Você não cria despesas, não se preocupe com isso. Foram tantas as colinas subidas e descidas que o viajante sabe em que curva há o perigo, não subestime a capacidade de avaliação e resposta que não sejam usuais, que as prioridades se mostrem outras. Há uma lógica nisso que talvez não esteja sendo suficientemente considerada, valorizada ou mesmo vista.  

Entenda: toda segurança é frágil. Estar diante do que se quer exige mil cuidados e todos eles são pouco confiáveis. Não há truques nos deslocamentos. Não existe a mágica do desaparecimento, somente o silencio completo e irrestrito assegura a calma requerida. Evidente que isso não justifica qualquer jeito desorganizado ou improvisos desajeitados. Mas risco zero não há, nem existe um formato a ser escolhido, a ideia de um cardápio de escolhas é ilusão: ou é uma coisa ou é outra. Não confunda isso com imposição, é uma observação elementar, a de estar ou não diante do que se quer. Se não estamos, não estamos. Mas se estivermos, será preciso um plano, caso exista vida afetiva depois da toca. 

Aster

Estrelas do mar parecem asteriscos. As estrelas do céu também. Gosto desse sinal pelo grafismo que tem, pelo mistério que carrega em seus significados. Asteriscos são reticências bem sucedidas. Chegaram ao estrelato. Brilham como um texto do Mãe que aparece sem ser esperado, mas que é muito bem-vindo. Fala de estações e me pergunto se é um desejo ou uma certeza, o jogo de palavras. Em mim, o “vocês verão”, é uma sentença definitiva e que deixa espaço nenhum para dúvidas: esses dois tostarão ao sol juntos, mesmo que a leitura não seja direta assim. Mas Catarão caramujos enquanto caminham olhando o horizonte, trocando coisas sobre o trabalho, projetarão (enquanto caminham) os novos trechos da vida. E quando isso for pouco, encontrarão formas de contornarem suas imperfeições, porque o amor é líquido. Não serão projeções que oscilam a partir da incidência e do humor dos raios de sol. Permanecerão afetos e afetuosos na concretização da excelência, entendida como produzir e oferecer o que há de melhor neles mesmos. Todas as estações têm maravilhas e talvez seja esse rodízio perene entre elas que as façam tão esperadas. Um dia, depois de dias e dias, chega o tempo do inverno ou da primavera, ou do outono ou do verão. Sempre chega, é da ordem do tempo e de tudo que existe nele, fora ou ao seu redor. Acontece o mesmo com os encontros formidáveis, com as vindas que não passam desapercebidas e nos dias de espera. Há um motivo que mantém aquecidos aqueles que acreditam no verão, mesmo que o inverno jure que será eterno em seu rigor. O motivo é maior do que o entendimento que se possa ter disso. Basta ver uma estrela do mar ou no céu as associar a asteriscos. Não são asteriscos. São sentimentos. São convicções. São respostas. ***

Não passa desapercebido

Resumindo, fico feliz. Mas ficar feliz é isso, um resumo. E, como tudo que se resume, não conta tudo. Fica abafado o movimento do olho que se arregala, porque uma surpresa desejada, finalmente, ocorre. Um sub riso se instalada. Não se percebe bem, mas ele está ali, rindo. Suspiros? Tem sim senhor. Acho que é o mesmo sentimento que se apropria de um atleta que sabe que acaba de fazer algo formidável. É um suspiro, mas também é um alivio. É isso e também uma euforia, mas não termina aí. Se mostra um contentamento, que não para nisso. É mais do que um gol do Inter. Mais do que um gol do Inter no grêmio. Mais do que um gol do Inter no grêmio e que decreta que o grêmio vai para a série b. É mais do que muita coisa, portanto. 

Para te dar uma ideia melhor, também pensei em metáforas. Coisas simples, mas boas como imagem. Algo que envolvesse cor (azul, amarelo?), horizonte e navio singrando os mares, mas não. Isso é muito ui ui ui. Fiquei explorando, mas nada era (de fato), apropriado. Não queria algo grandioso, sabe? Não que não seja, mas é que não se trata disso. Queria contar das pequenas reações em cadeia. Não sei se você lembra dos programas de pergunta e resposta. Quem foi o imperador autoproclamado da França? A câmera fecha no rosto do participante, que está pesquisando em fichas internas a resposta que garante mais mil reais. Você diz na lata “Napoleão!”. O sujeito, suando frio, diz um titubeante Napoleão. O âncora pergunta se o cara tem certeza da resposta, veja lá. Você diz “sim, sim”. Ele, reticente, afirma um sim com menor certeza. 

Momentos de silêncio, sob uma música de tensão fake. Então o apresentador decreta um “certa, a resposta”. Vê-se o alívio no sujeito que respondeu. Mas o que falo aqui é da sensação que toma o telespectador que também acertou. É um tranquilo “eu sabia”, uma satisfação pelo conhecimento. É disso que falo. É uma satisfação. 

Mas é que satisfação parece um fico feliz. Um resumo, possivelmente um resumo ainda mais hermético. Então, quero contar que me faz desejar que o Grêmio empate o jogo. Que não seja rebaixado. Que os cortadores de grama me fazem lembrar você.  Que é como um navio amarelo de bandeira azul surgisse no horizonte de uma ilha deserta onde mora um náufrago de nome Napoleão, que será resgatado. Que tenho certeza das respostas que daria sobre a nossa história. É, como tento demonstrar, uma mistura farta, confirmando a conexão. 

Em resumo, fico feliz, mas isso não diz tudo. ***

Já te disse hoje?

Essa foto esperava por mim (e por ti) numa calçada da cidade, como quem diz “a luz não reflete, ela existe”.

Quando o silêncio envolve e o gélido se acerca da cidade portal, ocorre algo além do que se espera do frio intenso: é o som do rio que resiste abaixo do gelo, destemido, rindo tua vinda. Tudo é falta de som e esquecimento, mas ele corre, alimentando canais, igarapés, nascentes, num leito feito de vida, líquido e certo como rir ou vir. Árvores não são desimportantes. Asteriscos estão em seus postos. O cheiro da terra molhada, as águas do parque, o chá, os sinais, o entendimento, o assentar, o consentir, tudo converge. Símbolos miúdos travam guerra contra o desânimo e o mesmo tempo que traz essa sede constante e essa rotina áspera virá de mãos dadas com a estação do possível. Nada está inerte, tudo clama e a insônia reclama é por falta de sonhos que se sonham juntos.

Às vezes olho no telefone, a que horas virá o sono? Pintar um quadro no seco, hálito quente, minguas e frestas, nada há de suave. No entanto, lembro o tom da voz, um riso oculto, a sobrancelha, uma frase, um emprego que pode caber na busca. Recordo das mil noites em claro, do foguetório em cada chegada, no significado das coisas e no declarar sereno de tudo que para se entender é preciso prestar atenção na linguagem soprada, sugerida, apontada.

Tudo em nós é amor em estado de encontro.  É o que se move em mim nesses dias imóveis. E te diria agora a frase de sempre, minha frase no sempre, o sempre dito. Não para dizê-la, mas porque é a expressão e o sentido da verdade. ***

Ao vivo

Não gosto de fios emaranhados, chaves que não entram, coisas que rangem, tropeços, dar com o dedão na quina de móveis, do jeitão das baratas e de pó sobre mesas onde se come. Preciso de uma certa ordem, um determinado grau de zelo, doses controladas de rotina, pão na chapa, goles de café, momentos pra absolutamente nada. Não muito, nem sempre. Não sei de onde veio isso, nem para que servem mesmo alguns cuidados, não os tive nem aprendi nada a respeito, sempre fui pra rua e dela vim. É mais recente essa vontade de casa, de poltronas comuns, planos conjuntos, hora de ler, o tempo de esperar longamente por uma cena onde está personificado o afeto. Nunca fui boêmio, bêbado, sambista, nem namorei tanto assim. Não é nem bom nem ruim, apenas não me aconteceu dessa forma, escolhi outros vícios quem sabe. Afinal, tenho aversões crônicas, como pisar em lodo com os pés descalços, ouvir certas palavras durante as refeições ou perceber dentes faltantes. Gosto do Walter Hugo Mãe, que fala coisas lindas como “meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo junto numa só”.  Ou “O que o meu avô valorizava em mim era o empenho em gostar de alguém. Toda a sabedoria devia resultar na pura capacidade de amar e cuidar de alguém”. Isso é um retrato da emoção, algo capturado tempos depois do ocorrido, mas com uma precisão de amante, com a alma da coisa faltante, esse avô que existe na alma, esse amor tatuado no pulso.

Então te escrevo uma pergunta: como faz para escrever isso? Ninguém inventa um amor assim? Um amor desses, só vivendo, só sendo, só tendo. É como conseguir desemaranhar fios, ter chaves que encaixam, obter silêncios equilibrantes, caminhar em linha reta, viver num abraço que não desabraça e comer em mesas limpinhas. Não há como sentir a presença sem ter vivido a presença e amado a experiência a ponto de repeti-la no sempre da vida, ou num texto em que escrevo infinito e sabemos que isso significa algo muito mais extenso. *** 

Um novo velhinho em folha 

O novo caminha em direção ao velho. Não há medo nem coragem que os aproxime ou afaste. Existe apenas um tranquilo conforto com o inevitável do encontro. Os dois se reconhecerão. O velho vem de longe no tempo e o novo corre na tarde que julga eterna.  Ao perceberem que tudo os aproxima e difere, um tem lembranças das histórias que o outro ainda interpreta.

Clique aqui para conhecer a crônica completa no YouTube. Aguardo você por lá!