caipira day

Todos precisamos de dias calmos e inalterados. Que tenham um começo, meio e fim sem sustos e sobressaltos. Por favor não confunda isso com dias em que não acontece nada, onde até a monotonia se espreguiça e boceja. Falo de dias caipiras, desses que vêm do interior para te visitar ao som de Renato Teixeira. Chegam tão devagar, tão sem pressa que você acorda e nossa, ainda tem duas horas de cama antes de levantar. Quem já foi dono de duas horas a mais para dormir, sabe da sensação alegre que isso causa. Precisamos de dias com tempo pra nós.

Um dia estava tão cansado de tudo, exausto, com sono, irritado. Me deitar era a única necessidade real que havia. Uma cama, precisava daquilo como água para chocolate. Durante o banho, ainda ouvia as pessoas pedindo informações, orientações, fazendo comentários, os risos, os barulhos, ruídos e passos. Meu estado emocional era de alguém em frangalhos, seja lá o que isso queira dizer. Mads sei que exaustão te reduz a menor (e às vezes pior) parte de você mesmo. Eu não precisava de um milhão de dólares, a campanha que havia criado poderia ser aprovada ou não, tanto fazia, e o Inter que ganhasse o perdesse, não me importava. Todo o essencial da vida era uma cama. Quando me deitei, a experiência foi avassaladora. Estava ali uma pessoa cuja única e urgente necessidade estava atendida, a de deitar-se em uma cama e apagar as vozes. Estar espichado em uma cama, em conchinha comigo mesmo, a cama que me trazia um estado de descanso e relaxamento e aquela sensação quase me fez chorar de alegria. Foi algo tão emocionante e apaziguador que qualquer tentativa de descrever será inútil. Precisamos de dias que nos recebam de corpo e alma.

Comecei a lei um filósofo Coreano-Alemão (agora não sei se cometo um erro ao indicar alguém assim). Vamos começar de novo: estou lendo Han, um filósofo dos bons, nascido na Corea e com cidadania Alemã. Ele nos traz um conceito interessante, algo que dá o nome do seu livro, “A sociedade do Cansaço”. Até onde fui, é um material relativamente pequeno, ele indica que estamos tão fora de nós que precisamos que os outros nos confirmem a existência via likes, corações e carinhas felizes. Há regras não escritas no Instagram. Jovens que se patrulham para não postar mais de uma foto por dia, uma discrição digital, uma timidez pós moderna, seja lá o que isso queira dizer. Não h´á espaço para a tristeza e todos são implacavelmente sábios, felizes, modernos, resolvidos. Nesse labirinto chamado internet e redes sociais, fomos nos perdendo e sendo inapelavelmente devorados pela pergunta da Esfinge: quem somos nós? Como não sabemos, o preço a pagar seria esse processo que adultera valores essenciais. Seu ápice é uma inversão apocalíptica quase. Algo tão grotesco quanto profundo e assustador.

” É como se as marionetes comandassem o titeriteiro “

“Titeriteiro”, pra quem não sabe (eu não sabia) é quem manipula marionetes. A ideia de que pode estar ocorrendo justo ao contrário é forte e apavorante por ser real. Afinal, uma agenda só nos pertence se tiver a nossa letra, com os compromissos que escolhemos aceitar. Com inconsciência, somos presas fáceis na cadeia alimentar que dita tendências, impõe comportamentos, cria ídolos e estabelece modos narrativos próprios. Não quero a volta de um passado nostálgico de duvidosa existência. Um tempo editado e, por isso, lindo. Algo com cortes e inclusões o bastante para ser colocado em prateleiras como algo suave e que, provavelmente, não se deu da forma lembrada. Quero uma boa rota de fuga para o futuro em que o esse passado anuncia com um riso selfie. Desejo criar dias onde escolas ensinem trocas carinhosas com o mundo, o valor do afeto, economia criativa, ações solidárias, emoções, escrita, empatia e arte. Nunca tivemos aulas sobre o que sentimos. Chega de saber sobre os afluentes do Rio Amazonas, a fórmula de báscara e as histórias dos catetos triangulares. É urgente parir autoconhecimento, a única fonte possível para dias de mudança e amor. Precisamos de dias originais e sem medos.

A tecnologia é encantadora. Posso falar com gente da Rússia, tenho amigos em Portugal, me comunico com pessoas da Inglaterra. Não falo inglês. Meu drusso e meu português quase ninguém entende. Mesmo assim, me viabilizo via incríveis ferramentas feitas por desenvolvedores de facilidades. Mas graças ao desvirtuamento da inteligência natural, a inteligência artificial criou e agora seguimos robot influencers. Um exemplo é a Lu, host digital da Maganize Luísa. Ela tem mais de 25 milhões de seguidores, 5 milhões só no Insta. 5 milhões!, assim, com exclamação. A personagem aparece em baladas, na praia, surfando, fazendo compras e o que acontece? Interagimos com ela, como se houvesse uma ela! E porque? Por que, aparentemente, abrimos mão de nós. Toda ciência é bem-vinda, toda filosofia, toda tecnologia. Carecemos de espaços de conversa capazes de nos fazer arregalar os olhos diante de uma sensação boa, de um momento em paz, de um pensamento cuja razão de existir seja a liberdade de surgir como afirmação inconteste do nosso prazer de gera-lo. Um direito que alegremente dispensamos em nome do tudo pronto que vem do Google. É urgente a construção de dias artesanais.

Dias mansos, fáceis e domésticos são, como todos os outros dias, resultado de escolhas. Exigem parada, reflexão e atitudes. Dias caipiras não evitam dias agitados, pedreiras e tarefas duras de engolir. Mesmo assim, esses dias precisam ser criados -e por nós. Não pelo governo, não pelo guru, não pelo par, pelo casamento, pelo emprego, pela Alexa, mas por nós, de carne, Rivotril e osso. Nos dias caipiras, poderemos experimentar um olhar mais vagaroso para a vida, que nos corresponderá em um determinado tempo, não no tempo instantâneo das receitinhas prontas. Então tomaremos uma boa garrafa de água gelada, ou uma Coca acompanhada de quiche. Comeremos algo, conversaremos muito, nos conectaremos com o grandioso que é estar ali nos compreendendo. Serão dias em que saberemos a diferença entre vontade e desejo.

Dias caipiras não se fazem sozinhos. Temos que atraí-los dormindo melhor, comendo com qualidade, trazendo pra dentro de casa rotinas miúdas e boas e, principalmente, sentindo mais do que pensando. Pode ser uma meditação, uma água com limão, um Fernando Pessoa antes de dormir. Tenho tomado mais água. Tenho comido mais frutas e salada. A carne vermelha será retirada por completo e já está bem rara nos meus pratos. Se vai dar certo, seja lá o que isso queira dizer? Não sei. Mas se vierem, pelo menos às vezes, dias caipiras como o que vivi hoje, nossa, porque não comecei antes?

***

Aprendi a falar a tua lingua entendendo os ditos que saem da minha boca. Não pelo que se traduz, mas através dos apelos que trazem. Somos nossa vida predileta, entre tantas existências possíveis de se olhar ou viver. Diante de mim, há o Atlântico nesse momento inexato que acontece entre outros tempos acessíveis. E se fosse bombeiro, pediatra, dono de padaria, astronauta ou piloto de Fórmula 1? E se ficasse numa ilha cercada de amar a única você que existe? E se fosse escritor de contos infantis, soldadinho de chumbo, voluntário da pátria? E caso você fosse pediatra, projetista de ambientes, escultora de gente, dona daquelas tabacarias cheias de aromas incríveis, gostos sem fim, temperos e especiarias?

O destino das coisas não é o que tinha que ser. Nada é o que tinha que ser. Não há uma sina, um ponto final, um somos assim e pronto, um eu sou o que sou. Abrimos portas, fechamos janelas, podemos chegar e decidir não ficar sem o nosso par em Ithaca. Permanecemos -nem sempre serenos- entre o infinito do sempre e a beleza de tudo que nos faz perenes. Família, parceiro, filhos, primos distantes, tias chatas, mãe ausente, entorno, contornos, moldes, modelos, natais frustrados, gente que não veio, filmes não vistos, livros e pedidos de casamento. Vivemos cercados de momentos e portinholas da jornada. Ali, o design, dois filhos. Aqui, pesquisadores do fundo oceânico, 4 golfinhos. Noutra, decoração interior ou comercio exterior, 6 pontes de safena, uma casa pequena e 2 gatos siameses. Em um outro real, entendimento, muro baixo, asterisco e cherie latindo e manhosos, planos, sonhos e realizações, além imperfeições da vida, desejos atendidos e férias em lugares calmos. Jogador do Inter, pesquisador de aranhas, especialista em montanhas, marinheiro, cowboy, ilustrador, fundador do Green Peace, roteirista em Amsterdã.

Diante de tantas possibilidades, desconfiamos do que nos seja novo de fato. Então, finalmente resgatados, muitos se deixarão ficar nas ilhas dos seus fantasmas conhecidos, agarrados a sequestradores ou mesmo se juntando ao bando.

Nada mais triste do que a beleza renunciada. Viver se duvidando, desabitar-se, importunar o sossego. Nada é mais assustador do que estar do lado de fora dos risos, não se saber amando. No entanto, eis um segredo terrível. Eis um aviso que deveria apavorar tudo que vive num lugar no cosmos que não lhe pertença. Muito cuidado, porque é assustadoramente possível. ***

Bons amigos

Fico pensando sobre quando nasce um amigo, a possibilidade da amizade, o momento inaugural, quando ela inicia, quem corta a faixa inaugural daquele afeto sem afetação, de sentimento neutro, um ser com ouvido, ombro e sem sexo definido. Um bom amigo não tem olhos para os peitos, não desliza por eles, nem os deseja. Escuta, neutro, sobre o casamento? Escuta. E dá conselhos a respeito do melhor caminho a seguir para manter a relação rija e forte. Amigo é para as horas de apuros, desprovido de ciúmes, pau para quase toda obra e que aparece ou é chamado de vez em quando. Chega dizendo “há quanto tempo!”, e pronto, tudo certo. Amigo de fé e de fato é um bunker, a pessoa pra quem se liga às 3 da matina pra contar que conheceu alguém. Que perdeu alguém. Que perdeu-se da verdade que é amar alguém a ponto de não pensar -por absurdo- em lhe pedir em amizade. Amigo bamba diz na lata coisas que só amantes de um amor que abarca amizade são capazes de ofertar. Mas uma coisa é o amigo. E outra coisa é outra coisa. Porque amigo não se elege, é uma construção, uma narrativa. Ele surge depois que retiram do amante seu acervo de cantadas, arrancam qualquer faísca erótica que tenha, extirpam da boca os beijos e anulam seus objetos penetrantes, como a intimidade e o conhecimento sobre tudo que torna o outro um desigual, um raro, um absurdo inevitável, um alguém de quem não se quer ser amigo, mesmo que seja um bunker. Amigo de verdade tem amizade de sobra, inclusive aos fins de semana. E se vc não liga, ele não nota. Um amigo vai lhe apoiar em caso saúde em risco, lucidez em falta, perspectiva torta, hálito ruim, olho cansado, brotoeja, testemunhas de Jeová, cansaço generalizado, inapetência, incompetências, desajustes, juízo prejudicado. Um dos grandes baratos do amigo nato é que você não precisa pedir a pessoa em amizade, ela acontece, é bicho solto. E se precisa, tem algo que o prezado ou a prezada leitor ou leitura não entendeu como deveria. Quer ser meu amigo? Isso não é uma pergunta. É uma definição macro afetiva. A proposta pode ser ofensiva, caso haja um sujeito homem que ame a sujeita mulher, caso a sujeita mulher ame o sujeito homem ou os dois sujeitos tenham amor um pelo outro. Talvez a amizade resista depois do amor, não sei. Mas reconheço que amizade é um afeto fantástico. Como amigo, não aconselharia tentar ficar no setor amizade com alguém que se ama. Seria dar um prezo menor ao afeto entregue, uma consolação cruel. No fim, no calabouço dos grandes enganos, aprendemos a viver uns sem os outros, como crianças aprendem a parar de chorar: por desistência e alguma falta de ar. Um amigo não resolve isso. Acho que é o que me desabilita.

Tradução

Sempre me intriga as conversas que temos. É como se elas fossem atalhos luxuosos para o entendimento, algo sempre tão urgente para n´ós e subdimensionado para tanta gente. Continuamente me surpreendo como escutadores aceitam e são mantidos nesse papel, como se suas vidas fossem planícies encantadas e seus estados de alma cantassem Don’t worry o dia inteiro. Escutadores perdem seu direito à lugar de fala, do desabafo puro e simples, aquela sensação de ahuhhhfffss depois de dividir o peso das horas com alguém de confiança.

Todo escutador contumaz parece mandar um recado ao mundo, o de não precisar falar, está tudo bem. E se aquietam por dentro. Alguns deixam de ter sono, incapazes que se tornam de sonhar. Talvez por isso deem tanta importância aos gestos que expressam seus desejos, precisam ser adivinhados, vistos, olhados, escutados naquilo que isso de significa de ´íntimo e de intimidade. Se não dispõem desse espaço, duvidam de aproximações reais, daquelas que tiram o fôlego porque são fala e escuta ao mesmo tempo. Então passam a tentar controles impossíveis, arrumam a mesa e retiram a louça, aquecem o chá, viram uma solidão bem arrumada, solícita e perfeitamente enquadrada nos sonhos alheios.

Penso que o que descrevo é a pior forma de exílio, quando você passa a ser ex-você mesmo. E escuta a empregada, do filho, marido, esposa, namorada, colégio, trabalho, dos prazos, da praia, da barriga, da briga, da reconciliação, do perdão, da dívida, dos créditos, do futuro, dos planos, do chefe, do amor. Acontece que toda fala é essencial porque nos humaniza. Servir de ouvinte, apenas, tira nuances importantes de uma conversa, algo que na base é troca de experiências e experimentações. Retire isso de um diálogo e estaremos falando de desentendimento, menos valia e uma certa dose de frustração.

Encontros entre iguais são uma roda de conversa. Permutamos então bobagens diversas, nossos caminhos secretos, confiamos sentimentos, discordamos, acendemos fogueiras aos afetos, contamos com o outro e para o outro o que somos naquele momento, o que nos falta e do que estamos plenos.

Escutar nos traduz. Falar nos representa. Declarar nos reproduz. Agir nos orienta. Nós, as pessoas, só existimos sem os nós que nos prendam. Nos somos melhores sem nós. E o que nos desata é a troca de uma boa conversa.

Recebi alguns pedidos a respeito da minha opinião sobre a letra de Mistérios, do Renato Teixeira. Vou dizer o que ela me conta. Se está certo ou não, quem sou eu? Renato é uma coisa de bom. Tenho ouvido muito sua obra nesses dias e encontro respostas em muitas das suas canções, como Mistério.

O poeta caipira fala que “o maior mistérios é ver mistérios”, como se não entendesse muito o motivo para tanta complexidade que observa no pensamento da nossa raça. Isso é reforçado pelo “ai de mim senhora natureza humana”, como quem lamenta tamanha vocação para o complicado.

O músico não diz que “eles” são assim. Reconhece que ele mesmo tem dificuldade no assunto quando mostra que gostaria de “olhar as coisas como são, quem dera”. E termina o verso com a continuação de um do desejo de “apreciar o simples que de tudo emana”, transformando a simplicidade na essência de todas as coisas.

No refrão (Nem tanto pelo encanto da palavra, mas pela beleza de se ter a fala), a profundidade do artista permanece intacta. No poema, a palavra é reconhecida como algo encantador, brilhante, inestimável. Mas falar, ah falar, poder se comunicar com o outro, isso é o simples do belo.

É por isso que te digo sempre. É um dizer não perfeito, mas é o que tenho a declarar.

Tuas palavras calam

Há gente que não precisa, ou necessita menos dos ditos. Eu gosto deles, que te aproximam e afastam, independente do significado que se dá aos gestos. Talvez porque a palavra expressa tenha o condão do pensei nisso e isso é o que sinto depois do pensado, o tal dito. Quem sabe seja porque é bom de ouvir, no tom de quem a gente quer bem, a palavra vinda. A não ser que seja algo desconfortável, aí todo som é ruído. No timbre da voz e no texto que ela porta, há tudo que se toma ou se teme, que se deseja ou precisamos evitar. Sei, às vezes precisamos evitar justamente o que se deseja, mas isso outro solo, para outras colheitas. Fico com o bem dito que são os dias vindos. O tempo encontrado. A coragem entonada. Todas as palavras são iguais. O que as transforma em especiais é a essência de quem emite, os encontros paridos, as palavras ditas são sentidas ou gemidas, omitidas ou geridas. São ninho onde crescem, sendo maternadas com carinho. Se expressam verdades. Porque se King discursasse “acho que tenho um sonho”, Seria diferente. Mas não, ele disse “eu tenho um sonho” para contar. E fez história com isso. Palavras existem para plantar dúvidas, semear conversas, discordar, declarar, duvidar, exigir, abrigar, pedir, perguntar, confirmar. Elas são uma demonstração inequívoca do que se pensa, sente, deseja, ressente, perdoa, alivia, contraria, emociona ou ama. Quando é você quem diz, quando eu escuto ou digo, palavra é um abrigo. Melhor, é vão. ***

O maior mistério é ver mistérios
Ai de mim senhora natureza humana
Olhar as coisas como são quem dera
E apreciar o simples que de tudo emana

Nem tanto pelo encanto da palavra
Mas pela beleza de se ter a fala

(Renato Teixeira)

Como saber se não digo?

Deve existir (ou deveria) existir uma porta no tempo onde está escrito “entre sem bater”. Ela dá acesso à Sala dos Esquecimentos, uma espécie de achados e perdidos da memória. A única condição para pertencerem à esse lugar é que os objetos, sensações, sentimentos, frases, qualquer coisa que seja viva, tenham sido levados

até ali pelas mãos da inocência. Depois que chegam e se acostumam com a luz em penumbra, passeiam por esse espaço não linear, contanto uns para os outros as suas jornadas, às vezes se consolando. Noutras, simplesmente escutando.

Não são histórias editáveis, como no mundo denso dos corpos, onde a vida é dublada, os diálogos são falas que vivem de aparências e mesmo as recordações se maquiam antes de entrar em cena. Entendo que posso pensar nisso motivado por mágoas, ego ou síndrome de abstinência. Sem problemas: reconheço que julgo decisões que me excluíram, ainda que saiba que todas as escolhas são legítimas, que não há peso absoluto, que definir é descartar todo o restante. Penso que um lugar pode ser lindo quando se está degredado. Ainda assim, mesmo que exuberante, é um exílio. Pronto, civilidade restaurada.

Na Sala dos Esquecimentos lembranças verdadeiras perdem a pressa, vivem fora do perigo da inexistência, da aceitação do menos, estão à salvo de silêncios cortantes, de febres estranhas, de queimaduras no deserto a que foram expostas. Mesmo que tenham sido tratados como inapropriados, inconvenientes, errados, feios ou inviáveis, tudo que existe na Sala dos Esquecimentos tem a alma das lembranças puras. O nome do lugar não esse porque vivem ali as coisas vivas que merecem permanecer existentes, mas lhes foi negado isso. Chama-se Sala dos Esquecimentos porque é onde esquecerão suas machucaduras, eliminações, desaparecimentos e abandonos. Um dia, quando prontos e restaurados dessas dores, reencarnam sob o anonimato do acaso, um acho que te conheço, uma pergunta sobre ilhas, esbarrões que dão início a uma conversa, presentes fora de hora, aromas, interesses, trocas, encontros, intensidades, admiração, amizade, confiança, cores, planos, sonhos, afetos, vocação, escolhas. Serão queridas de uma forma tão intensa que se tornarão escolhidas como valor, identidade ou propósito.

Quase tudo da minha arquitetura pessoal veio abaixo nos últimos tempos. Perdi referências importantes, gente que se foi. Projetos, planos e sonhos essenciais não encontram a terra prometida, tudo com minha assinatura, autorização e autoria. Não trato disso aqui para qualquer ação de consolo, coisa que de fato não quero. Primeiro porque não há consolo. Depois porque não há vítimas, nem o caminho fácil do vitimismo. Finalmente, porque se abriu uma cratera tão grande em mim que mais parece um leito de rio, um caminho aberto à força. Encontro, entre surpreso e assustado, um pedaço de uma casa com janela azul e lugar especial para leitura. Há livros espalhados em cima de uma poltrona de couro que parecia ser bem aconchegante. Cartões de embarque para viagens diversas. Certificados de cursos. Agendas de compromissos em comum. Resumos de anotações sobre filmes e séries, entendimento de livros, trechos de entrevistas, podcasts. Encontrei um quadro todo branco, simbolizando o futuro em construção. Restos de bilhetes. Tateio, entre insensibilizado e confuso, o semblante de estátuas aos cães que mais amei. Choro meus mortos e me conforto sem me conformar. Contorno escombros e quase tudo é automático, do acordar ao acordar, entre tantos desacordos. No entanto, estou aqui, vivo e apto. Algo pulsa e não é o coração, nem começará aqui um texto motivacional. O que acontece é de outra monta, outra natureza, outra coisa. Não se trata de otimismo ou esperança, é diverso disso. Tem sons, são músicas conhecidas, minha play list. São perguntas como já disse hoje? São sinais asterísticos, calendários próprios, textos do Mãe, mãos bailarinas, cheiro de terra molhada, parque das águas, bosque do Papa, abraços, pedaços de riso, gozo multiplicado, Natal fora de hora, entendimento, é tudo muito misturado, tudo muito real, tudo muito inocente. É quando durmo que encontro esse portal. Há uma porta de cores fortes, entre azul e amarelo, onde está escrito “entre sem bater”. Eu não bato e entro. E fico ali, conversando com as lembranças que vivem na Sala dos Esquecimentos. ***

Algo

Entendi algo que me intrigava a tempos. Não o algo todo, não o algo por completo. Uma parte do algo. Algo no grande algo que me embestava. Algo que causava algo em mim. Uma sutileza curiosa. Um riso distribuído. Algo.

Quando alguém ou alguma coisa produz algo, há algo ali. Pesquise, procure, leve no bolso, pense. Te enternece, te movimenta, resiste, orienta, é algo à prova d’água. É porque é algo diferente ou bom. Quando é algo bom. Quando algo não é, não é algo. É coisa. Não confundir com coiso, que pode ser qualquer coisa ou algo.

Algo te fala, conta, aponta, trata-se de um algoritmo, intuição. Forma, formato, recorte, hiato, classe, atitude saborosa que salgo. Não é o tamanho, é o porte que importa. São as notas amadeiradas, os vinhos tomados, as cocas geladas, a forma de algo que você sabe o nome, mas não consegue explicar, como o macio do algodão.

É um jeito, um gesto, o interesse real, uma verdade vivida, algo que galgo. Teu segredo não é secreto, não há nele mistérios, fábulas ou metáforas. É um carinho exato, um puro sangue que cavalgo entre asteriscos, meias palavras, frestas, rabo de olho, presença e distanciamento. Acho que seja o amor que não se torna algoz.

Teu algo se transforma em afeto indispensável. Olhe bem. Tem algo nas palavras lago, gola, Olga ou galo. Em todas elas há algo. Então penso que não temos algo em comum, mas algo incomum, raro, vindo de lugar algum, feito à mão com o dom dos talentos.

O que me intriga é ao contrário de me tirar o sono, o tempo ou o fôlego. Se chama interesse curioso pelo que o outro faz, o que sente, porque age, onde mente. É feito desses algos imateriais as tuas vindas. As tintas usadas, as palavras novas, os aromas sugeridos, a vontade declarada. É como Clarisse, outra com outras por dentro. Diz algo, mas o não dito, só o que precisa ser escrito. Combate o ego e se dispõe a ver a verdade da vida assim, sem certezas e cheia de uaus, de ohhhs, de poxas. É a parte que vi, de tantas artes insinuadas. És minha surpresa. Sou teu fidalgo. ***

Quando

Nada é mais longe do que amantes separados. Por trabalho, bobagem ou um impedimento qualquer, algo nada natural acontece. E aparece ali, nas entrelinhas do dia, um estranho cuja resistência depende do riso que está fora do alcance. Um calor externo, algo tão seu quando não seu pertencente, o outro e suas outrices.

Estive longe uma longa vida e o tempo inteiro estive exilado em mim. Quando penso em presentes, acho que é pra recompensar a presença, aquietar ausências e explorar quem sou. E sou quem leva sopas ou aguarda lá fora, que erra o tempo, que anda devagar por que já teve a pressa de te encontrar.

Habitar o prestes a um encontro é uma bagunça sem fim, alma que amo. É a nave entrando na órbita, essa mistura de fogo e gelo, o velho desconhecido e o novo já visto.

Será que é hoje, será que acontece, será que entendeu o que disse e será que será será como já falou Caetano, o baiano que tem tanto a declarar?

Nunca escrevo para concluir. Não me atrevo, só penso o que vivo e dentro de um senso que me vista com a essência daquilo que acredito, até que isso se revista de insumo para outras coisas pensantes. E de outros sentidos unindo o agora com um pouquinho de antes. ***

Portal?

Às vezes sinto falta de uma certa inocência, soluções tipo “eu Tarzan, você Jane”. Resoluções sem desvios e sub textos. Não o complexo com manual de instrução, ter um mapa não torna o caminho fácil. Desejo o que seja confortável como um bocejo, seguido de espreguiçamento. Hoje é sexta. Por conta de algumas questões paralelas, não é o meu preferido na semana. Uma sexta, acho, é como um shopping. Muita expectativa e pouca perspectiva. Como diria meu velho lobo do mar, sou um senhor desde os 12. Tenho inocências de outro quilate. Basicamente, acho que as coisas se arrumam se eu não atrapalhar muito. Porto, portanto, um tipo de pensamento mágico que acredita no pensamento mágico de algo maior, como portais, signos, sinais, senhas, linguagens paralelas, conversas amenas, olhares conjuntos, almas confortáveis umas com as outras. E em obras dentro de si mesmas. Amenas, olha que palavra linda. Amenidade serena. É quase um sono leve, uma certeza boa, uma nota de 50 no casaco, teu abraço. Foi uma semana daquelas. Mas teve aquarela, gol do Inter, salada de fruta, nega maluca, saudade quentinha, vontade alegre, alegria feliz, felicidade madura, maturidade tranquila, tranquilidade agitada, vida e falta. Somos espaço e preenchimento, não te parece? Estamos, vamos, prosseguimos. Nos rimos. Nos vimos. Nos temos. Nos encontramos porque nos percorremos. Somos porque nos tatuamos, almas disfarçadas. Viver não é uma briga entre o tudo e o nada. É uma torcida, um ohhhhh, uma canelada, um ganhei na loteria, um eu te amo, um em te chamo, um eu te acho, um boa sexta. Um bom dia. Um eu queria estar contigo agora. Então, vivo fuçando na esperança, chegam as criaturas que me falam. Ditam sobre o universo em desencanto. E o desencanto é bom porque se trata de um espaço desencantado, sem felizes para sempre, um lugar desilusionado, sem perdão porque o pecado é uma versão feia do passado sombrio. Quem nunca? Quem 100% qualquer coisa? Eu sinto muito por por estar aqui. Muito amor. Gratidão. Sinto muito pela falta. Sinto muito a presença. Sinto e é muito. O que você precisa? O que devo levar de meu? O que faremos juntos nessa sexta quase Goiânia de tão quente? Ah, o melhor não esta por vir. O melhor é o que já construímos. Não nos encontraremos amanhã, amanhã não existe ainda. Mas o passado, ah ele, esse existiu. Posso pega-lo, editar um pouco para que fique mais brilhante, emoldurar um instante, esticar as pernas, e mirar a lua que nasce, enquanto dormes ao meu lado. Não é criação, nem algo que os monges do Tibet precisem entoar por mim. Me trouxestes inteiro assim. Estás ali, onde descanso, a luz se apaga e o som diminuiu. Não pense que tuas ausências me passam desapercebidas. E se acontecer, o código é a palavra sempre. Isso abre qualquer porta, em qualquer universo não importa o que aconteça. Viva o melhor em você, de sexta a sexta.

Leve

Faz quase a idade da alma que amo o tanto que ando de bicicleta. Por poucos anos, competi naquela que é a menor escuderia do mundo. E a mais multifuncional, já que piloto, mecânico, motorista de apoio e torcida são a mesma pessoa. Sei um pouco de montagem, de estratégia, de terreno, de pilotagem e qual tipo de equipamento usar nas várias pistas existentes. Minha melhor colocação foi um segundo lugar. Normalmente, rodava entre os 20, dos 40/45 competidores. Junto com algumas vacinas e o ar-condicionado, a bicicleta figura entre as invenções que amo. Mas abro espaço para o canivete suíço, o olho mágico, o espelho retrovisor e a tampa do desodorante spray. Fico horas imaginando o sujeito inventor. Eu quando olho um cavalo, vejo o animal. O inventor enxerga a sela. Do fundo do escuro um cara pensa vela. A massa de tomate, aquela caixa do engraxate, o abençoado que pensando em mim, desenvolveu a camiseta não slim. O saquinho de balas sortidas, o símbolo do Inter, o picolé de palito e o interfone. Isso é inacreditável: aperto o 32 e meu filho abre a porta do apartamento num comando mágico e invisível. São milagres da modernidade, como a máquina de moer carne, o sabão líquido, o botijão de gás, a mochila e o elástico. Tem travessa de plástico, tem carvão pra churrasco e minha invenção preferida pro Grêmio, o fiasco.

Toda santa vez que vou tomar banho penso em quem pensou no encanamento de estanho. No Passaporte, na bússola, na colher e no tirador de caroço da azeitona. Experimentei das duas formas e está decidido. Respeito a versão em papel, mas Leite Moça na lata é mais gostoso. Chuleta é melhor sem osso e é muito legal um bom queijo com salaminho, sempre acompanhado de cerveja ou vinho.

Quem imaginou no CEP, o jogo de damas, a cama, guardanapos, a toalha e o próprio banho. O perfume, o vagalume, a ficha telefônica, a meia, a pinça, o saleiro. Quem nasceu antes, o sapato ou o sapateiro. O teu riso aberto, o olhar profundo, a tua cara linda, a estrelinha e o por de sol. O balanço e as crianças nele. A rede, a sede que nem é de água, nosso tempo sem mágoas, limpo, temperado, o equilíbrio em 4 pernas e um assento. E porque toda criação me encanta, te recreio e te ofereço o que há mim com e o que a em nós sem medo.