Simples


Para andar, bike
Para torcer, inter
Para viver, muque
Para matar, fome
Para esquentar, pé
Para olhar, filhos
Para leite, sucrilhos
Para sonho, coragem
Para inverno, lã
Para espirro, saúde
Para canções, alaúde
Para amaciar, doce
Para amar, você. 

Sou outro

A gente não se conhece. Podemos nos gostar, nos admirar por feitos ou desafetos, nos amar por encanto ou conveniência, mas conhecer alguém? Isso é quase impossível, somos outros o tempo todo. Reencarnamos diariamente nas células, emoções, pele, cabelo, sinapses, neuropercepç˜ões, reações. Isso junto com opiniões, alvoroços e, claro, os outros que somos ou que seremos.

Depois que volto de uma pedalada não sou mais o mesmo. O projeto aprovado causa metamorfoses. A saudade martiriza e você nem sempre quer partir para o sacrifício. A decepção nos modifica, você torna-se alguém que sofreu por alguma coisa. Qualquer elemento mutante (são milhões por segundo) nos reduz ou agiganta e, acima de tudo, muda. Sentimos raiva ou prazer. Temos desesperanças ou acreditamos que dessa vez, vai. Ao cabo disso, seremos nós, modificados por nós e outros tantos. Seremos outros, entretanto. Entre tantos, seremos outros. Não irreconhecíveis, não chega a esse espaço. Pelo contrário, parecemos os mesmos. Mas estamos levemente tocados, trocados, outros.

Temos demandas diferentes, mesmo quando olhamos para o mesmo ponto. É que somos outros. Somos outras vozes, focos outros, outros que se vão e outros que silenciam. Somos recheados de experiências cuja maior consequência é modificar os corpos e as almas dos quais somos feitos. Por isso, estar ao lado de alguém ou participar de algo é uma escolha diária. Não há decisão fácil, não sabemos nada do outro, o outro é o inesperado no escuro. Por isso é indispensável reconhecer as mudanças ocorridas os seremos inexistências ao lado de inexistentes. Ignorar isso é condenar o outro (e a nós mesmos) ao exílio daquilo que se é. Os grandes silêncios, são justificáveis para um, mas talvez. E não para um outro, por certo. Quem se rasga silenciando não é o mesmo que fica exposto ao silenciado. Os dois sofrerão pela mesma coisa, mas por outros motivos. Serão outros nessa jornada. Um pelo que perde. Outro pelo que não ganha. Todos pela despedida que ocorrerá se não se apercebemos disso.

A vida nos remodela. Medos nos reestruturam. O amor nos renova. Mas ao te olhar hoje, és tu hoje.  Ontem  eras outro ser, uma vivência que nem existe mais no tempo, ele mesmo o cerne das variações percebidas ou ignoradas, porque todas são vistas. És tu agora, viajante daquilo que te importa. O que há são esses momentos breves, moldados pelos nossos encontros, cada qual inédito em sua profundidade e protagonista nos afetos que nos convertem em outros o tempo todo. 

Poupar. Planejar. Precaver. Prevenir. A pretenciosa segurança que essas escolhas nos trazem é frágil. Não digo que não se deve fazer essas coisas, já que se deve. Mas também é necessário entender que é tudo por um triz, a poupança é confiscada. Já não aconteceu?. ´Basta um vírus e pluft, adeus planos, bem-vindos a novos destinos. Num zapt, lá se vai a precaução junto com uma chuva, um raio, um carro que anda rápido, uma pedra cai, um vento sopra, mudanças não pedem licença. Mudança é a vida se regeneranço e, às vezes, balança forte. Num zip, olha o inesperado do amor, da compaixão, do acolhimento, do riso que nos muda e do abraço que nos recebe.

Distraídos pela sensação de consistência que a rotina oferece mas não entrega, fingimos que não vemos que ela própria é formada por novidades compactadas umas nas outras. É prazer novinho em folha que é ver uma árvore dando folhas laranjas. Mudam a si mesmas e mudam os olhares que atraem, mudando quem vê. . Acontece com um segundo a mais que se mantenha na visão entre amantes. O pão de queijo daquela hora. O café naquele momento. A solução inédita. A demonstração nesse instante. A declaração ao vivo dos afetos e dos seres afetados. Só há isso para oferecer. Não havendo, não há nada para resistirmos ao desconhecimento dos conhecidos que nos cercam e que desconhecemos por completo.

Não é que você não me conheça. É que você não conhece ninguém. E que, basicamente, tudo que respira não sabe de quem somos e porque corremos o risco de dar a mão ao desconhecido. Esse é o milagre que existe entre nós, o eterno novo e o perene das infinitas novidades. Lutamos com força contra o que nos modifica, e tudo nos transforma em uma escala estupenda. Então temos que encarar que não conseguimos desvendar o outro. Que só podemos aceita-lo, sendo o outro o que é, o antigo do que segue adiante do Nando Reis. A mudança vencerá porque o contrário disso é a inaniç˜ão das águas paradas: não saciam, qualquer que seja a sede. O bom dia que você dá hoje é completamente diverso do oferecido ontem. O tom. A intenção. A energia. O corpo. A expressão. A forma e, dentro dela, a alma. Mudou quem disse. Quem escuta é outro. Para seguir amando ou seguir adiante, será preciso aceitar que momento a momento o desconhecimento. Assim, viver é será um apresentar-se sempre, sem medo de nós, nem de sermos outros. ***    

Deus tem eu no meio

Fica boa sob tela: você é um unicórnio

Começou não sei bem como. Esqueci, tinha uns 3 minutos de vida, talvez menos. Não sou muito bom com lembranças. Mas penso aqui que o útero foi um lugar legal, porque gosto de espaços pequenos e quentinhos, falam muito isso dos ventres maternos. Depois, estava sozinho ali naquela água morninha e boa, dizem que é assim. O senso de observação e um certo gosto por estar à sós comigo mesmo veio depois. Talvez porque me esgueirava pelo bairro, evitando turmas. Talvez porque me escondesse em casa, ficando longe da confusão com 5 irmãos mais velhos. Embaixo da cama, então era bom. Na árvore japonesa, bem bom. Na escola, era o magrinho que gostava de correr e tinha o cabelo cortado tipo milico, o que me deixava parecido com um galho com topete. Dificilmente você é convidado para festanças com essas características. Minha primeira namorada foi a Juçara, assim, com ç. Depois descobri que a recíproca não era verdadeira. Era a minha namorada e de quem mais tivesse a habilidade de levá-la ao Cine Regente aos domingos. Quem soubesse respirar saberia também levantar os R$ 0,50 do ingresso. Juçara, Juçara. 

Não falo tudo isso porque tenha alguma conta a ajustar com o passado. Tenho, mas não se trata disso aqui. É mais para entender que fiz teatro (não exatamente fiz e não exatamente teatro, era mais um jeito de não estar nas coisas). Que me tornei um especialista em não falar e um doido para saber das pessoas. Me tornei um escutador de primeira, não por bondade ou outra virtude qualquer, mas por desejo de ser aceito. Eu aprendia os outros. Captava os sinais, um movimento minúsculo aqui, outro maiúsculo ali, os olhares, as senhas escondidas em palavras comuns, intensões e formatos de rosto. Persigo até hoje os roteiristas, tentando entender o que ele apronta antes dos personagens agirem. Se aquilo se torna fácil, perco o interesse. Mas se na última cena eu entendo que o garoto que vê gente morta estava o tempo todo falando com um morto, fico brigando comigo por não ter antecipado o truque. 

Quem não me conhece e me vê dirigindo, falando, conhecendo gente, comandando equipes, formando times, orientando pessoas ou sendo direcionado na criação de algo, não entenderá minha expansividade. E só os próximos entenderão que não se trata, exatamente, de alguém extremamente no centro do palco. Foi você quem entendeu que o centro do palco é o lugar do personagem, não do ator. Isso não me faz bom ou mal, melhor ou pior do que alguém outro. Não são menos verdadeiros os elogios ou insinceras as críticas. Afetos não finjo. O interesse é real, a ilusão é me imaginar liberado, fácil, compreensivo e são em tempo integral. É o contrário. Sou mega travado, complexo e em luta constante com as loucuras que assisto. Não é só divertido, mas é só. O que tento te contar é que não sei me contar direito, descrevo o que sou e o que subscrevo o que vejo. Me esqueço, me aqueço, estar é um zig zag entre o feliz e o padeço. O que conto é que contas em mim, adições diversas, somas totais, pouca diminuição, muito extrato, muito suco, muita goiaba enclausurada, muito infinito em fresta, muita festa em minutos, muitos assuntos, muita conversa, ser e não ser é a nossa questão, mas não do jeito que o escritor inglês pensou. Nunca é do jeito que os escritores pensam. Para escrever, penso, é precioso entender que no momento em que digo, é outra coisa no teu ouvido. Somos estranhos o tempo todo, portando, mutantes, amantes, silentes, vacilantes, humanos e às vezes você me põe louco. Ao mesmo tempo, a distância se torna um caminhar manco e quero te dizer que o Inter ganhou do Flamengo. Se estamos longe? Estamos longe de não nos amar. *** 8 deitado.

 

Ao vivo

Não gosto de fios emaranhados, chaves que não entram, coisas que rangem, tropeços, dar com o dedão na quina de móveis, do jeitão das baratas e de pó sobre mesas onde se come. Preciso de uma certa ordem, um determinado grau de zelo, doses controladas de rotina, pão na chapa, goles de café, momentos pra absolutamente nada. Não muito, nem sempre. Não sei de onde veio isso, nem para que servem mesmo alguns cuidados, não os tive nem aprendi nada a respeito, sempre fui pra rua e dela vim. É mais recente essa vontade de casa, de poltronas comuns, planos conjuntos, hora de ler, o tempo de esperar longamente por uma cena onde está personificado o afeto. Nunca fui boêmio, bêbado, sambista, nem namorei tanto assim. Não é nem bom nem ruim, apenas não me aconteceu dessa forma, escolhi outros vícios quem sabe. Afinal, tenho aversões crônicas, como pisar em lodo com os pés descalços, ouvir certas palavras durante as refeições ou perceber dentes faltantes. Gosto do Walter Hugo Mãe, que fala coisas lindas como “meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo junto numa só”.  Ou “O que o meu avô valorizava em mim era o empenho em gostar de alguém. Toda a sabedoria devia resultar na pura capacidade de amar e cuidar de alguém”. Isso é um retrato da emoção, algo capturado tempos depois do ocorrido, mas com uma precisão de amante, com a alma da coisa faltante, esse avô que existe na alma, esse amor tatuado no pulso.

Então te escrevo uma pergunta: como faz para escrever isso? Ninguém inventa um amor assim? Um amor desses, só vivendo, só sendo, só tendo. É como conseguir desemaranhar fios, ter chaves que encaixam, obter silêncios equilibrantes, caminhar em linha reta, viver num abraço que não desabraça e comer em mesas limpinhas. Não há como sentir a presença sem ter vivido a presença e amado a experiência a ponto de repeti-la no sempre da vida, ou num texto em que escrevo infinito e sabemos que isso significa algo muito mais extenso. *** 

Ao trabalho

Hoje é sexta, eu não gosto muito de sextas e tenho meus motivos. Como esperar ansiosamente por algo que nos separa? Sextô! parece ser o grito de guerra dos aflitos com o trabalho que têm. Dois dias nos distanciando de uma rotina autoimposta, do trampo e da correria, cujo resultado é o faz-me rir. Mas a gente não pesquisou, não foi à entrevista, não fez dinâmica de grupo, não respondeu que bicho seria se fosse outro bicho que não um humano? Não comemorou o telefonema da aprovação e -de livre e espontânea vontade- não começou a fazer o que estava combinado que faríamos?

Tenho sido cada vez mais feliz com o que faço, então assumo ter mesmo uma dificuldade em compreender a alegria do sextô! Mas me acompanha aqui, veja o que acha. Ser feliz não quer dizer ser feliz sempre ou com tudo, nem em tempo integral. Está mais para se entregar aos processos criativos, cavocar em si mesmo as razões subjetivas de qualquer coisa, observar determinadas reações, entende-las ou abrir mão delas, esmiuçar as pesquisas, garimpar algo original, entender um problema e parir uma solução, minha nossa, isso é bom demais e ainda me pagam.

Faço o que gosto há muito tempo. Mas também adorava abrir um consultório de dentista e atender o telefone, marcar os horários. Digiteis centenas de TCCs na área de psicologia quanto trabalhei na PUC. Aqueles textos me abriram um mundo de ideias sobre comportamento, emoções, gatilhos, nunca mais parei de ler. Meus primeiros textos publicitários foram nos talões de cheque de uma agência. Eu preenchia os pagamentos a serem feitos, inclusive para redatores, diretores de arte ou de criação, pessoal de estúdio. Lembro que colocava bilhetinhos divertidos, frases espirituosas, aquilo me levou para a criação. Antes, cobri jogos que ninguém queria, fui a shows que refugavam, escrevi para TV, redigi discursos, roteirizei programas de rádio, dormi em vans e quer saber? Cada coisita dessas me trouxe ou me encaminhou para lugares no mínimo interessantes. 

Vejo hoje que ganhei pouco ou menos que poderia. Que fui um diretor de criação bem meia boca no início. Que muitas vezes não tinha a mais vaga noção onde aquele projeto ia dar. Dei sorte porque encontrei gente incrível para caminhar junto e porque me livrei de quem se achava a manteiga com sal no pão de grãos.

O que estou tentando partilhar aqui é que de alguma forma, gostei das coisas que fazia e isso tirou (acho) o peso que alguns trabalhos tinham. Às vezes ainda sonho com os textos da PUC, lembro de trechos. Recordo das pessoas que iriam se formar dali há alguns dias, mas que estavam naquele agora discutindo os caminhos de um raciocínio comigo, que não era graduado em nada. Eu gostava de sentir o ritmo das ideias, o conteúdo dos argumentos, as sugestões que as imagens traziam. Tudo me levou a escrever para você.

Acho a curiosidade a parte mais ousada de alguém, o ponto que distingue as pessoas. Não curiosos farão da sexta um objetivo de vida e sofrerão por seis dias não sequenciais: de segunda a sexta e, depois, no domingo. Que graça tem isso? Esse martírio não pode fazer bem. Também em nome disso, quem sou eu para não gostar de sextas? É um dia gordinho pelo nome, lembra cesta de pães. Ou um dia esportivo, remete a cesta de três pontos, o que dá um certo trabalho. Sexta não nos separa mais do que segunda, terça, quarta, domingo, quinta ou sábado. É preciso encontrar nos dias seus cantinhos bem-vindos, bater o dedão nas suas quinas e olhar as horas pelo que são: o tempo passando. Vale um pouco para qualquer coisa, penso. Tenho aprendido a editar vídeos, arrisco locuções, quero ser menos enrolado no que escrevo e talvez faça um curso para criar romances. Esses dias ganhei 100 dólares por uma entrevista para a Meta (do Face). Você pode imaginar o Mark Zuckerberg me pagando para saber o que penso? Tá, ele vai fazer disso milhões de verdinhas, mas me dá aqui os meus 100. Tive que entender perguntas em inglês e o meu inglês, você sabe, é daqueles bem pobrinhos, tadinho. Mas deu tudo certo, consegui e isso me alegrou.

Os dias não são fáceis, não se trata de um pick nick. As tristezas no mundo ganharam uma densidade quase paralisante. Não se pode menosprezar os acontecimentos, as perdas, as tensões preocupantes. Nos encontramos todos os dias de alguma forma. Da mesma maneira, nos desencontramos. É nesse hiato entre o conhecido e o novo é que nos colocamos em viagem. Então, um dia, o amor grita terra à vista! Convenhamos: isso é melhor que sextô. 

A locução é de um texto de Vladimir Maiakóvski, poeta-pensador Russo tipo peso pesado dos bons. A Rússia (reduzo eu) sempre me sugere frieza. Ele, no entanto, é todo coração, segundo o próprio. Espero que você goste, ***

caipira day

Todos precisamos de dias calmos e inalterados. Que tenham um começo, meio e fim sem sustos e sobressaltos. Por favor não confunda isso com dias em que não acontece nada, onde até a monotonia se espreguiça e boceja. Falo de dias caipiras, desses que vêm do interior para te visitar ao som de Renato Teixeira. Chegam tão devagar, tão sem pressa que você acorda e nossa, ainda tem duas horas de cama antes de levantar. Quem já foi dono de duas horas a mais para dormir, sabe da sensação alegre que isso causa. Precisamos de dias com tempo pra nós.

Um dia estava tão cansado de tudo, exausto, com sono, irritado. Me deitar era a única necessidade real que havia. Uma cama, precisava daquilo como água para chocolate. Durante o banho, ainda ouvia as pessoas pedindo informações, orientações, fazendo comentários, os risos, os barulhos, ruídos e passos. Meu estado emocional era de alguém em frangalhos, seja lá o que isso queira dizer. Mads sei que exaustão te reduz a menor (e às vezes pior) parte de você mesmo. Eu não precisava de um milhão de dólares, a campanha que havia criado poderia ser aprovada ou não, tanto fazia, e o Inter que ganhasse o perdesse, não me importava. Todo o essencial da vida era uma cama. Quando me deitei, a experiência foi avassaladora. Estava ali uma pessoa cuja única e urgente necessidade estava atendida, a de deitar-se em uma cama e apagar as vozes. Estar espichado em uma cama, em conchinha comigo mesmo, a cama que me trazia um estado de descanso e relaxamento e aquela sensação quase me fez chorar de alegria. Foi algo tão emocionante e apaziguador que qualquer tentativa de descrever será inútil. Precisamos de dias que nos recebam de corpo e alma.

Comecei a lei um filósofo Coreano-Alemão (agora não sei se cometo um erro ao indicar alguém assim). Vamos começar de novo: estou lendo Han, um filósofo dos bons, nascido na Corea e com cidadania Alemã. Ele nos traz um conceito interessante, algo que dá o nome do seu livro, “A sociedade do Cansaço”. Até onde fui, é um material relativamente pequeno, ele indica que estamos tão fora de nós que precisamos que os outros nos confirmem a existência via likes, corações e carinhas felizes. Há regras não escritas no Instagram. Jovens que se patrulham para não postar mais de uma foto por dia, uma discrição digital, uma timidez pós moderna, seja lá o que isso queira dizer. Não h´á espaço para a tristeza e todos são implacavelmente sábios, felizes, modernos, resolvidos. Nesse labirinto chamado internet e redes sociais, fomos nos perdendo e sendo inapelavelmente devorados pela pergunta da Esfinge: quem somos nós? Como não sabemos, o preço a pagar seria esse processo que adultera valores essenciais. Seu ápice é uma inversão apocalíptica quase. Algo tão grotesco quanto profundo e assustador.

” É como se as marionetes comandassem o titeriteiro “

“Titeriteiro”, pra quem não sabe (eu não sabia) é quem manipula marionetes. A ideia de que pode estar ocorrendo justo ao contrário é forte e apavorante por ser real. Afinal, uma agenda só nos pertence se tiver a nossa letra, com os compromissos que escolhemos aceitar. Com inconsciência, somos presas fáceis na cadeia alimentar que dita tendências, impõe comportamentos, cria ídolos e estabelece modos narrativos próprios. Não quero a volta de um passado nostálgico de duvidosa existência. Um tempo editado e, por isso, lindo. Algo com cortes e inclusões o bastante para ser colocado em prateleiras como algo suave e que, provavelmente, não se deu da forma lembrada. Quero uma boa rota de fuga para o futuro em que o esse passado anuncia com um riso selfie. Desejo criar dias onde escolas ensinem trocas carinhosas com o mundo, o valor do afeto, economia criativa, ações solidárias, emoções, escrita, empatia e arte. Nunca tivemos aulas sobre o que sentimos. Chega de saber sobre os afluentes do Rio Amazonas, a fórmula de báscara e as histórias dos catetos triangulares. É urgente parir autoconhecimento, a única fonte possível para dias de mudança e amor. Precisamos de dias originais e sem medos.

A tecnologia é encantadora. Posso falar com gente da Rússia, tenho amigos em Portugal, me comunico com pessoas da Inglaterra. Não falo inglês. Meu drusso e meu português quase ninguém entende. Mesmo assim, me viabilizo via incríveis ferramentas feitas por desenvolvedores de facilidades. Mas graças ao desvirtuamento da inteligência natural, a inteligência artificial criou e agora seguimos robot influencers. Um exemplo é a Lu, host digital da Maganize Luísa. Ela tem mais de 25 milhões de seguidores, 5 milhões só no Insta. 5 milhões!, assim, com exclamação. A personagem aparece em baladas, na praia, surfando, fazendo compras e o que acontece? Interagimos com ela, como se houvesse uma ela! E porque? Por que, aparentemente, abrimos mão de nós. Toda ciência é bem-vinda, toda filosofia, toda tecnologia. Carecemos de espaços de conversa capazes de nos fazer arregalar os olhos diante de uma sensação boa, de um momento em paz, de um pensamento cuja razão de existir seja a liberdade de surgir como afirmação inconteste do nosso prazer de gera-lo. Um direito que alegremente dispensamos em nome do tudo pronto que vem do Google. É urgente a construção de dias artesanais.

Dias mansos, fáceis e domésticos são, como todos os outros dias, resultado de escolhas. Exigem parada, reflexão e atitudes. Dias caipiras não evitam dias agitados, pedreiras e tarefas duras de engolir. Mesmo assim, esses dias precisam ser criados -e por nós. Não pelo governo, não pelo guru, não pelo par, pelo casamento, pelo emprego, pela Alexa, mas por nós, de carne, Rivotril e osso. Nos dias caipiras, poderemos experimentar um olhar mais vagaroso para a vida, que nos corresponderá em um determinado tempo, não no tempo instantâneo das receitinhas prontas. Então tomaremos uma boa garrafa de água gelada, ou uma Coca acompanhada de quiche. Comeremos algo, conversaremos muito, nos conectaremos com o grandioso que é estar ali nos compreendendo. Serão dias em que saberemos a diferença entre vontade e desejo.

Dias caipiras não se fazem sozinhos. Temos que atraí-los dormindo melhor, comendo com qualidade, trazendo pra dentro de casa rotinas miúdas e boas e, principalmente, sentindo mais do que pensando. Pode ser uma meditação, uma água com limão, um Fernando Pessoa antes de dormir. Tenho tomado mais água. Tenho comido mais frutas e salada. A carne vermelha será retirada por completo e já está bem rara nos meus pratos. Se vai dar certo, seja lá o que isso queira dizer? Não sei. Mas se vierem, pelo menos às vezes, dias caipiras como o que vivi hoje, nossa, porque não comecei antes?

***

Resumo

Cheguei pra mim e disse o que precisava na minha cara. E o que eu queria era um tempo sem que eu ficasse atrapalhando com minhas opiniões, olhares e desejos. Ofereci e aceitei um gole de Malzebier pura e gelada e pensei comigo que estamos juntos há praticamente 61 anos, É tempo ou não é? Sabia que em algum momento me surpreenderia com um pedido desses. Mas me olhei nos olhos e percebi um cansaço geracional, uma preguiça cósmica, o sentimento ancestral que mais parece um vanerão com toque de rap.. Peguei minha mão e me autoproclamei em estado de ócio. Enquanto não acordo, sonho com rumos. ***

10

Tirei essa foto na Praça do Por do Sol, hoje. A simetria, a cor, a composição e os detalhes da florzinha me chamaram a atenção. Pensei nas tuas falas. Torci para conseguir uma foto centralizada, desejando um encontro contigo. Pensei nos teus silêncios. Aprendi a tocar “Canto de um povo de um lugar”, onde chega a tarde, a Terra cora e agente chora porque finda a tarde. Pensei em te fazer rir e chorei. Uma saudade, os impedimentos, o tanto que é. O encontro. Os deslizes. Pensei no teu nervosismo. E no meu, cada vez que te vejo. Hoje tem Inter na Libertadores e fiz meus primeiros 10 quilômetros de pedal. É um avanço e tanto. Então quis te ver pra ficar nadando do teu lado. Olhei pra você. E disse o que sinto todo dia. ***

Outrossim

O significado de outrossim é algo como “igualmente”, “também”, “além disso”, “do mesmo modo”. É um advérbio, sei. Faz muito tempo que não uso outrossim. Vou mais na linha “além disso”. Vai ver porque a origem do termo é erudita e eu vivo com maior constância no popular e corriqueiro. outrossim é um elemento de coesão, serve como ponte para continuar uma ideia. Coesão é aquilo que une, não é interessante o quanto outrossim funciona bem? Olhei a palavra, tirei uma letra e quebrei o termo em dois. Por que em dois? Porque assim encaixa no meu raciocínio. Ficou “outro sim”. Tem o mesmo som, mas é outra coisa, representa algo diverso de outrossim. O ponto aqui é que a sonoridade e a circunstâncias me fizeram ver que raramente agimos dizendo sim ao outro. Sim no sentido de existência, valores, necessidades, expressão e visão de mundo. Queremos convence-lo, torna-lo do clube a que pertencemos, à igreja que nos consolamos de Deus, a ter nossas opiniões, a concordar conosco e a existir para confirmar nossos modelos pessoais. Não se trata de empatia com alguém do outro lado do balcão na vida que, às vezes, dividimos. Se trata de algo mais sutil e com uma um definidor menos estético do que empatia. Falo do umbigo. A sabedoria popular não é uma coisa? Criou a expressão “(…) vive olhando para o próprio umbigo”. A imagem de alguém olhando para o umbigo enquanto vive é soberana. Cabeça baixa e visão 100% prejudicada, falta de senso de direção. Não quero convidar ninguém a ver os dias a partir do que os outros desejam, querem, sonham ou pedem. Quero refletir sobre quanto aquilo que sinto, penso, faço, declaro, acredito, creio, temo ou percebo interfere com maior ou menor violência na vida do outro, qualquer outro. Entende o que digo? Empatia seria aquilo que faço por cultura ou educação e se molda no limite dos esforços que despendo para compreender os valores alheios a mim. Mas não é empatia o ponto. Ela, quando se transforma em consciência, pondera qual é o impacto pessoal sobre a existência do síndico, do filho, da professora, do marido, do motorista do Uber, da mãe, dos grupos de pagode, da mulher, do tio, até o Bolsonaro entra na listinha. Não compreender o outro, mas respeita-lo. Observa-lo com delicadeza para entender o que possa lhe fazer bem. Ouvi-lo com o prazer de uma platéia atenta. Não pelo outro, mas por nós. No fundo, no meio e no início, é por nós que devemos enxergar o outro e abraça-lo como se aquilo fosse nós ou nosso. Afinal, é. Não, isso não significa fazer o que o outro quer, pautar-se pelo que o outro pensa. Devemos ser originais sim. Desenvolver padrões próprios e nos guiar pelos parâmetros que julgarmos adequados. Mas essa equação só fecha se o outro é visto em sua grandiosidade. Não pensei nisso por me sentir invadido ou desconsiderado. A ideia me veio porque invado e desconsidero o outro em seu direito de escolha, gostos pessoais, cores preferidas, autores, ideias, considerações, vestimenta, profissão, talento, cor, gênero e raça. Das micro relações aos macro relacionamentos com minha comunidade, uso mais o umbigo do que a consciência. Está assim, na primeira pessoa, porque não quero que isso pareça um texto de autoajuda, aconselhamento, essas coisas. Não. Desde que comecei a ouvir “Praia dos Ossos”, um podcast que recomendo porque fala sobre machismo, feminismo, hipocrisia, cultura de época, costumes. Outrossim, “Praia dos Ossos” remonta em 8 capítulos como viveu e por quem morreu Ângela Diniz. Seu algoz, Doca Street, tinha uma linha de defesa para um ato indefensável e isso quase colou. Era o umbigo armado. Umbigos se magoam, não se olham, não podem enxergar, estão de cabeça baixa. Quanto eu uso a lógica Doca Street para justificar meus atos? Eis a manga a ser chupada. Nossa, Que Saudade da gente. Outrossim *** e sempre.

Ding Ding

O primeiro soco assusta muito e dói. Depois, só dói e assusta. Na sequência, a reação natural some, há uma conformidade, o entendimento que o nocaute virá.  Você puxa, mas o ar não vem. Preciso fugir dessa direita, você pensa. Mas a pancada entra como que dizendo “se não for hoje, é amanhã”. Preciso fugir dessa esquerda, você conclui, junto com outras frases cortantes. Quero comprar um casal de pinguins, você diz para um vendedor de salsas cubanas, já zonzo. É o sinal que você não raciocina mais, o coração vira uma azeitona e o endereço de casa é um reino longe, longe daqui.

Então não se sabe mais porque se diz o que se diz ou se faz o que se faz. Há braços defendendo o corpo, mas alma, quem entende? Abraços são cancelados, a exaustão tira o chão do lugar, a gravidade te convida e o contato do teu queixo com a luva que argumenta tira tudo da lógica e do lugar. Você quer descansar, procura o seu lado do ringue para cair em paz.

Tudo pesa tanto, será mesmo exagero? Não pode ser exagero, os cortes não são pequenos. O seu famoso jab está tocando jazz em algum bar que fica na esquina entre o você-passado com a você-cancelado. O direto de direita não resolve e o monstrengo na sua frente saltita como se tivesse 17 anos. Ele tem 17 anos, não é possível. O cansaço te faz lembrar da ternura não reconhecida. O suor te recorda que você falhou e agora alguém que você ama está só e sem experiência num lugar onde não deveria estar. Ainda nas cordas, você tenta se convencer que avisou sim, que convidou sim, mas não sabe ao certo, é confuso.

Enquanto uma saraivada de golpes entra no rosto, fígado, costelas e rim, a esperança ganha a forma de gongo. Plaft, zupt, scrum. Tudo acaba ali, para recomeçar em dia sem prazo? Qual o prazo desses dias que não terminam? Enquanto isso, a surra não tem fim, a campainha não toca, as pernas bambeiam, o medo jorra e os olhos ficam inchados. Deitar ali seria um alivio, mas não há alivio. Há, mas não você não tem acesso. Não dá pra ligar, é preciso ficar ali e você sabe que agora é uma questão de tempo. As pancadas aumentam e parece que você escuta “preciso ficar com ele”. Algo jorra e você entende “quero ficar com ele”. Alguma coisa na perna não obedece mais e você ouve “vou ficar com ele”. Agora o barulho é dentro da sua alma, não há corpo disponível e mais uma cerveja seria bom. Então tudo fica escuro. A espinha se curva, o joelho não suporta e o que dói de verdade é não ter ficado de pé só mais um pouquinho, ver mais um pouquinho, escutar mais um pouquinho. Mas o cansaço bate. A realidade bate. A saudade bate. A vida bate. É tudo peso pesado. É tudo tão sincopado e a lona está ali, acolhedora e confortável. A toalha corta o ar pesado. Faz uma curva imaginária. Nos encontramos no tablado, digo para a toalha que voa.  Quero essa toalha, parece tão limpinha. Então o gongo toca. Dormir tem suas vantagens.