Sindrome

Dormi estranho, fazia tempo que não me deitava com esse sujeito tipo quieto e sonâmbulo. Estava tão cansado, mas por dentro, uma falta, um incômodo, mas não queremos falar sobre isso, claro que não.  Na verdade, não queria conversa, nem afeto ou consolo, apenas que o sono viesse, fazendo o que vem fazer. O silêncio me abraçava e era bom, apesar de ser horroroso com sua barba cerrada.

Fiquei me perguntando algumas vezes o porque de não mandar pra mim o pedido de localização ou de socorro. Teria ido a pé, enfrentado índios, tornaria plana a região toda, venceria cowboys e chefes do tráfico. Me respondi que se pede ajuda a quem se deseja fazer tal pedido, um pedido de ajuda, um me ajuda que estou pedindo. E não foi pra mim, porque seria? Cheguei a tantas conclusões que uma delas me colocou pra dormir e dormi estranho, fazia tempo que não me deitava com esse sujeito tipo quieto e sonâmbulo. Recusei sonhos, adormeci para parar um pouco de sonhar ou sentir. Hoje, o que quer que encontre será fácil, escrito ou falado. Dito ou calado, não importa, desde que seja simples. Lido ou ignorado, apenas será coisa ou outra e seus motivos. Sem culpas ou perdões, dedos apontados, nada. As horas serão vindas sem espera, agenda, trabalho, códigos ou senhas. Lentas ou apressadas, serão as minhas, ninhos ou ruas, minhas. Danças ou duras, minhas. Sem pensar se virão, se têm um trabalhão danado por 15 minutos, hoje não serei justo ou ponderado. Vou passar o dia ao meu lado. Tomara que consiga ser boa companhia. Farei discursos, todos curtos até às 8, há um tempo máximo para as promessas. Depois acho que uma cerveja. Hemingway ja disse que bebia para que as pessoas ficassem interessantes. Eu, pra que o sono venha antes.

Meu dia da árvore

Assim que chego, me pergunto se ela estará lá, é uma dúvida contínua, quem sabe injusta. A aproximação é sempre cautelosa e alegre, uma mistura de foto e síntese do abraço longo que trocaremos. Reapresentações feitas, entendimento renovado, saudade revista e ajustada no carinho que recebo, único capaz de transformar a toxidade que nos separa em raiz, constância e silêncio que dividimos. Você tá bem, benzinha? Gosto tanto.
O lago não tem casa e não reflete belezas, exatamente. Mostra mais o belo que sobra pra se ver, enorme ainda. Mas confuso entre pedra e pó. Até os gansos estão entre curiosos e em duvida. É o lago que reflete a cidade ou o que acontece é o contrário disso? Não sei, mas rezei e tu estavas ali, eu que gosto mais um tanto.
Num canto, bichos alados avuam, em nados sincronizados. Rasantes, costuras, zig zags e nenhuma multa com que se preocupar. Nossos anjos da guarda municipal não têm asas, ainda bem. Pedi aos outros que cuidassem de ti. E se não fizerem isso, lhes arranco as penas.
É um amontoado de água, uma toada de sons esgarçados, sem tanta graça e vindo das garças. Se alguém jogar um pacotinho de pipoca, a bicharada, peixes inclusos, ficará em estado alfa de agitação, mas logo passa. Como tudo que te ou me preocupe. Fica calma, allminha. Tudo está bem cuidado.
A gente celebra o fim do dia, como canta Caetano. Que ele tenha sido de sonhos e de cura.
A noite chega, traz a hora das horas escuras, além  de saudade tua. Fico bem ao teu lado, de onde não saio faça sol ou faça lua. Sim, claro que amo.

O lapso

Um dia nos pesquisarão, tenho certeza. E será um problema, porque em uma das transversais do tempo em que nos transmitimos, todos os arquivos de cada coisa do nosso instante terá sido extraviado. Nenhum backup, nuvem, pendrive, discos rígidos, documentário, nada. Restará a transmissão oral, feita por um velhinho que fala búlgaro, o conhecimento de uma época que chamarão cautelosamente de “o lapso”.

Um por um, os pensamentos serão fragmentos de lembranças, memórias lá longe, olhares idos. Sabe a roda que você vê em quase tudo, de carro a estações espaciais? Então. Isso já foi uma invenção história, de um mundo que desconhecemos, nem velhinhos que falem em búlgaro temos pra saber. Escrita, disquete, vacina, telégrafo, trincheiras, canhões, Oldisséia, relógios, luvas, aviões, Dumont, Drumond, Sigmund, anestesia, platão, Sartre. Brinco, nexo, prisão em 2ª instância, paraquedas, cavaquinho, vinil, Amazon, violão, garrafa, Berlim, Veríssimo, jardins suspensos da Babilônia, água tônica, Tônia Carreiro, 19 de fevereiro, peste negra, lápis de cor, apontador, mouse, lentes, closet, gripe espanhola, Rússia, pia, marcos de todas as naturezas, cubas, feiuras e belezas. Tudo que somos agora (que logo será tudo que fomos) precisa ser realmente tocante, tocável e emocionante. Não para que dure, mas para que exista em seu momento, para que não o tornemos resistentes e ausentes ao existente. Todos o homens e mulheres importantes, a Escola de Sagres, o que sei e o que sabes viaja no instantinho que é do tamanho impermanente de um olhar cruzado.

Se saibam

Ah, os existencialistas que esperam que a gente defina quem somos para que a própria humanidade descubra quem é. Não o que desejamos, o que sonhamos, mas o que fizemos. Nossas renúncias, textos, risos e falhas. Os vacilos, os brilhos, as mulheres, os maridos, os amores nos vãos criados para que permaneçam quentinhos. O melhor pedaço de um sanduba oferecido a um estranho, o melhor momento da juventude ofertada a um filho, Os sustos calados, o riso mantido, a coragem de gostar de si apesar de tanto a fazer. Se saber medida livre, régua perfeita no que há de humano, profano, profundo, estranho e mundano. Um dia nos pesquisarão, tenho certeza. Que o velhinho búlgaro diga aos perguntantes que fomos mais do que o bastante. Que trocamos de lugar para conhecer imenso do outro. Que muitas vezes não nos escolhemos e que choramos por isso. Que todos os dias nos amamos e celebramos a isso. Que ao viver, vivemos. Que nos protegemos um ao outro. Que nos vimos e que nos temos. Que no instante que somos, nos amamos e bebemos da água limpinha do sempre.

Entre

Na esquina de todas as ruas que vivo, há um artista que tece presentes improváveis. Um pacote de suspiros, uma lata de vontades, várias duchas de água fria, um pé de alegria, todo tipo de prece pra qualquer desejo pendente.

Entre em portas entalhadas por mãos habilidosas ou pelo tempo que as torna hábeis e estarás de frente pra todas as ruas onde piso descalço. Ali lembro de ti se faz sol ou quando chove um pouco, bem mirrado, um trapo de água doce, um naco fino de uma noite aguada, um veio dos diamantes azuis e seus brilhos silenciosos.

Já disse hoje? Já dei sinais, acendi fogueiras e subi na arvinha que a gente tem. O certo é que estou ali, onde parece que adormeço mas o que faço é vigiar a noite para alma que amo encontre o sol, brinque na rua e se quiser dormir, esteja tudo bem.

Pequenas partidas

Não partir. Esse é o maior perigo de uma viagem. E a forma mais trágica de naufrágio” (Amir)

Te escrevo depois de um tempo sujeito a chuvas e trovoadas, querida. Fez frio, ventou aquele vento que uiva, gelou aquele frio que nos curva e encolhe. O turvo e o nublado não fazem meu tipo, você sabe. Então deixei que Almir me tocasse a alma com canções que nascem do interior das matas, dessas que brotam verdes e verdadeiras, daquelas  que andam devagar por que já tiveram pressa.

Suspirei com Renato afirmando que cada um de nós compõe a própria história, o que é trabalho de uma vida inteira, assim no sentido de plena. O profeta que vive no interior de si mesmo me conta, como quem canta uma verdade libertadora, algo capaz de desafiar o desencanto: cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz. Não sou caipira pira pora, mas por Nossa Senhora, como discordar disso? Certamente concordo, mas há uma distância enorme entre a concordância e sua outra instância, a crença que nos leva a escolher entre o intenso das massas ou a leveza das maçãs.

O ponto, no entanto, não é alinhar-se com Sater e Teixeira, essa é a parte fácil. Os bons matutos matutaram muito até sorrir o sorriso que se abre na velocidade de um sol chegando ou indo e suas tantas nuances durante o dia. Eles dizem algo que não queremos ouvir. É uma afirmação irretocável, que revela um profundo, sofisticado e cascudo caipirez:  é preciso chuva para florir. Os danados usaram uma imagem suave para avisar aos caminhantes que o caminho nasce da escolha de se por em marcha. É bonito, mas produz calos. É emocionante, mas provoca câimbras.  É maravilhoso, mas a pele racha.

Por anos, contei os dias para te contar sobre os dias e sobre tudo que te contaria. Enchi os bolsos de estrelas e de alma enluarara, compreendi os sons das matas, a algazarra dos bichos, a hora certa de abrir clareiras, os homens, seus sotaques, histórias e cantos, além de línguas estranhas, como o Esperanto. Estive calmo, mesmo quando o tempo esteve fechado e a única esperança era chegar ao porto dos desesperados, onde chegaria são e calvo.

O fato é que fomos e indo, nos separamos. Aos poucos, esqueci tua voz e talvez isso tenha sido necessário para que ouvisse ou houvesse a minha. Foi então que recomecei a agradecer pelo tempo das descobertas, as trilhas abertas, a alma curiosa, a fome de escrita. Revi os livros, revivi os risos, os gestos e o dia em que me deste um coração capaz de repulsar tudo que fosse amorfo, mofado e inconsistente. Entre voltar para o ontem, onde moram as lembranças ou viver no amanhã, onde tudo que existe é o inexistente, habito no hoje, que hoje é o melhor dia do sempre.

Ando devagar porque já tive pressa, ensina a linda canção de Amir e Renato. É uma música que marca mais um parto entre nós, uma noite sem lua e serenamente em paz, ainda que o ventinho avise que o tempo vai mudar. Pensando bem, para o tempo não há outra coisa a realizar, não te parece? Afinal, como nós, ele também precisa de amor para poder pulsar, de paz para poder sorrir e da chuva para florir.  Por isso passa, tange e une tudo que inspira: viver às vezes é rock. Noutras, viola caipira.

Como nascem as canções

antiga

Por hoje, direi não às canções cansadas e tristes. Então, talvez, possa caminhar tranquilo pelas horas e suas pressas, abrandando gestos e silenciando o passado. Antes, isso é importante, será precioso agradecer aos dias que se foram por tudo o que foram, permitindo que partam felizes e em paz consigo mesmos.

Estarei só e livre do que não me pertença e de qualquer coisa que me possua. Lembranças, pessoas, expectativas, razões absolutas, autopiedade e certezas gerais. Indulgências, heroísmos, menosprezos, pesos, esperas e esperanças. Seremos eu e minhas travessias, contos e canções, menos as cansadas e tristes.

Vou olhar com carinho eterno para todo tipo de existência. Permanecermos conectados pelo entendimento gentil sobre tudo que não foi compreendido em seu valor, importância ou dimensão. Conhecerei a mim mesmo, despertando assim a humanidade com canções que não sejam cansadas e tristes.

Por hoje, libero sentimentos prisioneiros. Desamotinados e reconhecidos em sua sinceridade e existência, terão direito pleno às primaveras, se forem esses os seus desejos. É a estação dos reinícios e ali marcharão na plenitude dos reconciliados, se transformando em trilhas, cometas ou canções, mas não as cansadas ou tristes, que terão um destino mais nobre pelo tanto que significaram.

Seus acordes acordarão um universo esquecido, povoando de ritmo uma nota antiga, primária, essencial. Despertadas, serão inspirações itinerantes, parindo (descansadas e alegres) as canções que não puderam nascer antes.

Tudo acaba em vida

Se não forem saltitantes, itinerantes e ávidas,que graça teriam as coisas havidas? É urgente que o nosso tempo aqui seja vívido, bem vivido, impávido colosso, (que emprestei do hino). Que tenha histórias pra contar a essa gente que duvida do poder da caminhada, do cheiro de terra molhada, do pão de queijo quentinho, de Romeu e Julieta, da existência do Opala, das reticências, das estrelas onde moram as fadas, que é possível gostar de subidas ou que o amor é tudo que não revida.

Habitar no morno é viver em uma sala escura, cheio de perdões a receber e colecionando dívidas. Adote uma polêmica, espalhe perguntas, pise na grama, cometa erros históricos, divirta-se, divida-se, divida. Almas são pipas de Deus, como poderiam se perder do amar ou dele estar à deriva? Portanto, aos razoáveis, o consenso, o previsível,as respostas do Google, o clima de Curitiba. Aos inconformados, os tombos e suas cicatrizes, suas glórias desconhecidas, seu momento mais pleno, a confiança restaurada e a alma revivida. Estamos diante de nós e da nossa humanidade. Nossos sonhos nos olham na esperança de se tornarem irresistíveis. Escuta Sartre: a humanidade inteira nos mira para definir sobre si mesma. Salte, ame, inspire, reforme. Acalme, ultrapasse, chame, venha, parta, realce, faça, peça, negue, cale ou diga. Que nada nem ninguém seja menor do que a vida.

Semeadura

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