Não somos um. Somos outro

É na fissão com o outro que surgimos. Somos artesãos de milhões de outros, lembranças outras, alusões, possibilidades, coesões e distâncias.

O filho que nasce, o amor que surge, o diálogo, o fim da linha, o bem-vindo e o basta. Tudo acontece a partir do outro, cuja inexistência determinaria que a realidade seria uma coisa do outro mundo.

Outrora é o outro no passado. Outrossim é o outro jurídico. Outro é polissêmico. Pode significar “o outro” assim, entre aspas, uma insinuação, um apontamento, uma frustração. Talvez queira dizer que é preciso trocar algo pela mesma coisa, tipo “me traga outro igual”, o que seria uma incoerência, o que é outro tema. Representa uma pressão por escolha, o famoso um ou outro. Outro modo de ver as coisas, que sugere um outro ângulo da mesma questão. Outra vez, o outro que se repete outra vez.

Além das outras delas mesmas, as grávidas têm outro ou outros que têm outro ou outros (ou outras) por dentro. O outro nasce. É no meu encontro com os afetos do mundo que surgem os outros dos quais somos feitos, depois de nos tornarmos outra coisa a partir do contato com o outro. Não somos mais  o que fomos por conta de outros fatos, de outras razões, outros seres, outras experiências.

Tentamos reduzir o outro a nichos. Lá vem outro poeta. Um outro amor. Uma outra abordagem. Outro modo. Mas o outro é a constante, mesmo que vc queira outras rotinas. Palavras que pedem a repetição de algo bom, o quero outra vez. O outra vez que é um recomeço. Amanhã é outro dia, essa resignação que busca consolo num outro futuro. Nem sempre o encontramos, mas parece sempre ser primeira vez, depois outra primeira vez, depois outra primeira vez.

O outro é transformador. Sob seu olhar, permutamos as experiências da jornada, ajustamos vidas possíveis, sonhamos presentes não havidos, lamentamos o passado, onde o outro não existia. Ou, caso inverso, lamentamos a existência de outro pai, de outro país, de outra família, ainda que não se deseje a desconstrução de nada. Caso isso fosse feito, seríamos outros e poderia não haver nós, apesar do tanto de nós que existem.

Nos amamos enquanto outros se desencontram. E mesmo desencontrados, somos o outro que o outro que segue e seguimos adiante.

Originalmente somos outros, milhares deles. Alternativas, paralelos, libertos. Outros e melhores graças ao melhor dos outros. Porque é isso que nos entregamos: a capacidade de ver nos outros que parimos os outros que vemos partir. É o que nos torna pertencidos ao outro, sem ser propriedade alheia ou ecos de egos. Só é possível tocar no amor a partir da incoerência, presença, escolha ou a experiência do outro, al´ém da nossa. É uma troca você saber o que o outro gosta, fazer-se gostante do outro, gestante de um outro imprevisível. É uma permuta, cujo escambo preve compreender o outro em todos os outros que os outros nos oferecem. É preciso aceitar que o outro é uma resposta, não uma pergunta. É um espelho que deve levar a reflexão sobre o que nos atrai e os motivos disso. 

O outro é um caminho para nós no original, essenciais um para o outro. O outro é o que nos encaminha para uma independência lúcia, quando somos um e  outro. Quando não precisamos nos disfarçar de outro para amanhecermos um com o outro. ***

Ao vivo

Não gosto de fios emaranhados, chaves que não entram, coisas que rangem, tropeços, dar com o dedão na quina de móveis, do jeitão das baratas e de pó sobre mesas onde se come. Preciso de uma certa ordem, um determinado grau de zelo, doses controladas de rotina, pão na chapa, goles de café, momentos pra absolutamente nada. Não muito, nem sempre. Não sei de onde veio isso, nem para que servem mesmo alguns cuidados, não os tive nem aprendi nada a respeito, sempre fui pra rua e dela vim. É mais recente essa vontade de casa, de poltronas comuns, planos conjuntos, hora de ler, o tempo de esperar longamente por uma cena onde está personificado o afeto. Nunca fui boêmio, bêbado, sambista, nem namorei tanto assim. Não é nem bom nem ruim, apenas não me aconteceu dessa forma, escolhi outros vícios quem sabe. Afinal, tenho aversões crônicas, como pisar em lodo com os pés descalços, ouvir certas palavras durante as refeições ou perceber dentes faltantes. Gosto do Walter Hugo Mãe, que fala coisas lindas como “meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo junto numa só”.  Ou “O que o meu avô valorizava em mim era o empenho em gostar de alguém. Toda a sabedoria devia resultar na pura capacidade de amar e cuidar de alguém”. Isso é um retrato da emoção, algo capturado tempos depois do ocorrido, mas com uma precisão de amante, com a alma da coisa faltante, esse avô que existe na alma, esse amor tatuado no pulso.

Então te escrevo uma pergunta: como faz para escrever isso? Ninguém inventa um amor assim? Um amor desses, só vivendo, só sendo, só tendo. É como conseguir desemaranhar fios, ter chaves que encaixam, obter silêncios equilibrantes, caminhar em linha reta, viver num abraço que não desabraça e comer em mesas limpinhas. Não há como sentir a presença sem ter vivido a presença e amado a experiência a ponto de repeti-la no sempre da vida, ou num texto em que escrevo infinito e sabemos que isso significa algo muito mais extenso. *** 

Canto II

“O tempo está suspenso” foi a melhor explicação que recebi de alguém sobre a humanidade nesse instante. Parece que nada se move, ou que tudo se movimenta para lugar algum. É um seco sertão, uma seca feita de saudades. O tempo suspenso tem o ar sufocado por suspiros, falta de senso, presenças imprescindíveis e o parto difícil das ausências. Tempo suspenso, exaspera. Se cobre de esperas enervantes, se desmantela, o insaciável brincando de estátua. Quando é a hora própria, em que momento começa o nosso agora? Como construí-lo em silêncio? Tempo suspenso é suspense.

O eixo de algo é mais importante do que o algo em si. Se o inóspito não permite uma direção, é preciso pari-la como quem deseja clarificar a existência. No meio do caos do tempo suspenso há um farol de aragens, a brisa do entendimento sobre tudo que desorienta. É preciso habitar o jardim secreto dos portais e reafirmar o que se tem de precioso, emocionante e de valor. Acho que é assim que venceremos o tempo suspenso: sutilmente.

E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
Quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
Quando eu estiver fogo
Suavemente se encaixe
E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce, yeah
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate, não
Dentro de ti
Dentro de ti
Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti
Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti,

majestade

Eu vi o Pelé jogar ao vivo. Era pequeno, meu irmão mais velho me levou ao Olimpico, estádio do Grêmio, para ver sua majestade jogar. Quando ele fez o gol que decretou a vitória santista, eu estava intrigado sobre como os caras que vendem picolé conseguiam se equilibrar nas arquibancadas, subindo e descendo os degraus que eram grandes à beça. O primeiro camisa 10 de todos os tempos estava de partida para um time norte americano (Cosmos) depois de muita lenga lenga. Podemos dizer que Pelé estava indo para o seu lugar no Cosmos (piada interna). É que havia um decreto presidencial, sim uma lei, que impedia a venda do craque para o estrangeiro. É exatamente isso que vc acabou de ler: era proibido negociar o Pelé. Foi preciso que o presidente dos Estados Unidos fizesse um pedido formal ao governo brasileiro, na época uma ditadura milica, solicitando que fosse viabilizada a transferência. Feito isso, permissão dada, o sujeito estava indo embora. Então, cada partida era a última contra os times locais, os estádios lotavam para vê-lo derrotar nossas cores com a classe de sempre. Antes de se ir, o atleta providenciou a feitura de 1.000 gols. Ganhou 3 copas do mundo. Foi campeão paulista, brasileiro, da libertadores, do mundial de clubes, uma verdadeira máquina de vencer. Há muitas histórias sobre seus feitos e a magia a respeito da genialidade dessa divindade futebolística é cercada de fatos quase inacreditáveis. Como a vez em que para garantir que Pelé jogasse na Nigéria que se encontrava em uma guerra civil profunda, foi decretado um cessar fogo entre as partes. Isso, Pelé parou uma guerra.

Volta e meia, surge um “novo Pelé”, como se isso fosse mesmo possível. Jogadores excepcionais tiveram suas carreiras muito prejudicadas pela comparação quase cruel. É impossível um novo Pelé. Alexandre Pato, Denner, Maradona, Zidane, Romário, Cristiano Ronaldo e, mais recentemente, Newmar, formam uma fila quase interminável de “novos Pelés”. Newmar, então, teve ainda a má sorte de jogar no Santos. Pronto, era o raio caindo no mesmo lugar, s´´ó que ninguém combinou com Deus e Ele sabe que fazer um monstro do tamanho do Pelé dá um trabalho danado, além de se ganhar pouco em termos de direitos autorais.

Quem não o viu em ação, precisa entender o que significa Atleta do Século, uma de suas dezenas de títulos. Na minha opinião, Atleta do Século é o chefe de todos os melhores do mundo juntos, o que não daria um Pelé. Todos os craques do planeta teriam que jogar ao seu lado ou ser banco de reservas do Rei. E aí entra novamente o Newmar, que não poderia ser o imediato dele por falta talento nato, coisa que o Maradona tinha e que outros têm. Newmar parece ser um cara bacana, típica celebridade da uma época meio estranha nesse item. Ele tem, com Pelé, apenas uma semelhança: ambos possuem documentários péssimos a respeito de si mesmos. O do Pelé é mal feito, mas tem roteiro com início, meio e fim. O do Newmar, senhor, é bom como um picolé de brócolis.

Comparações são quase sempre parciais. Mas Tayson, Zico, Zidane, Clinton, Malcovich, Cristiano Ronaldo, Cafu, Vampeta, todos apontam Pelé como o melhor que já houve. A importância de reconhecer algo inédito em conteúdo, forma e modelo pode salvar seu time de uma goleada ou tirar sua vida da mediocridade. Não é preciso perguntar quem é o melhor do mundo como o número 10 incomparável. Você sabe que é ele.

Isso acontece com quase tudo em nossas vidas. Vc encontra e há algo naquilo que se desprende, que se destaca, que te encanta. Você sabe que é ele. Não será preciso estabelecer julgamentos. Torna-se burocracia tola tentar colocar lado a lado as explicações formais sobre as especiarias das especialezas, os encontros fundamentais. Eu vi Pelé jogar e me lembro de apenas uns 4 segundos, uma imagem em preto e branco na memória, algo fugidio. Isso talvez tenha me tornado mais atento ao que pode ser a única de visita de uma oportunidade de trabalho, de divertimento, de afeto, de reconstrução, de felicidade. Por isso olho nos olhos e vejo um milésimo de tempo a mais. Por isso vasculho por sinais e não tiro a atenção por nada quando reconheço isso. É que sei quando estou diante do que é o melhor dos mundos.

***

prosa

Um boa conversa é uma experiência fora do corpo, almas são trocadas e tem cheiro de grama cortada, o que é muito bom. Gente que se toca conversando não precisa dizer nada. Se convergem, se experimentam, se desentendem em diferenças e se compreendem baseados na confiança do diverso, do converso e do adverso. Sim, acredito que vivemos muitas encarnações, que nossas conversas são ancestrais. Nem precisa ser conversa funda e para ser sincero, nem carece de fala às vezes. Sentir-se escutado e ser capaz de ouvir, é disso que nascem as conversações. ´É uma capacidade rara, isso de “deixa eu te escutar o que vc diz e o que você cala”. Fluindo, nascem os entendimentos, não no sentido de acordos, mas pela permuta de verdades pessoais, desejos soterrados, construções a serem feitas, dorzinhas e dorzonas acolhidas e reconduzidas pelo mútuo afeto. Conversar é dizer da aventura de retirar das refeições uns goles de água e incluir agrião, tomate, ovo cozido, hortelã (fica bom, mas não exagera), cebola e pimenta, mais sal rosa. Novidades bestas, “nossa, me deu um sono de tarde”. Novas atitudes, planos, projetos, sobre o que nos acontece: viver é uma conversa longa e mudar é uma longa conversa.

Eu sempre digo a todos os times de criação que dirijo que as marcas precisam conversar, não convencer. Mais do que propósito, storytelling, slogans, co-criação com o público, persona e todo o glossário em inglês, o que sempre foi diferencial de qualquer campanha publicitária, programas políticos, eventos experenciais, palestras, discursos, treinamentos ou eu e você é a capacidade não de ouvir, mas de escutar. Não de falar, mas de entregar verdades. Sim, há boas verdades em todo produto, tirando cigarro e governos, talvez. Quer ver um redator convencional em apuros? Peça que ele escreva na primeira pessoa. Já presenciei atendimentos talentosos bugarem diante da pergunta “do que o seu cliente precisa?”. Não o que ele quer. Não onde pretende chegar. Não o público alvo dele, mas o que ele precisa. Isso só se obtém com conversas boas, algumas difíceis, muitas estranhas, todas importantes.

Conversas não são trocas verbais. Fosse assim, os mudos ou surdos estariam perdidos como experiência de vida. Um das conversas mais intrigantes que já tive notícia aconteceu entre a esposa de um soldado americano e o vietnamita que o matou em combate. Eles sentavam um na frente do outro, se olhavam profundamente em silêncio absoluto e depois iam embora, até que um dia alguém falou “eu nos perdoo” e seguiram seus caminhos.

Para ter boas conversas, que grande lembrança a boa e velha canção de Raul (só dele, o Paulo Coelho não estava nessa), Metamorfose Ambulante. Porque, afinal, somos gradiência sobre “o que eu nem sei quem sou“. Mesmo assim e por conta disso, o bom baiano afirmava “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. O que mais me impressiona na música grifei ali em cima. Não somos os mesmos, sabemos pouco de nós, é preciso conversar conosco sobre quem nem sei quem sou e milhões estão desconversando sobre isso. A canção fez um brutal sucesso na época e até hoje é lembrada, esse tempão depois da morte do maluco beleza. E porque? Por que é uma conversa verdadeira. Afinal, de conversa fiada o É o Tcham está cheio.

Uma conversa real é capaz de nos mover um em direção ao outro. Nos aproximar em laços invisíveis, nos transformar em boas lembranças durante o dia, em boa noite feliz. Quando almas se compartilham, se somam, se multiplicam, diminuem as distâncias, dobram em seus afetos e dividem os seus fardos. Amar é uma conversa. E estamos conversados.

Barba Branca

Piratas, corsários e suas histórias ao longo dos 7 mares sempre me atraíram. O submundo marinheiro, os códigos de ética (haviam muitos), as táticas navais, as pequenas repúblicas que formavam enquanto eram consumidos goles e goles de rum ou vinho ruins. Piratas, mais do que os corsários, eram o mal assumido, o anti-sistema, o problema a ser eliminado. Tomavam pra si, à força, o que marujos e capitães regulares jamais teriam com seus parcos salários e adestrada ambição. Ladrões? Sim. Bandidos? Sem dúvida. Escrotos? A maioria. Mas havia algo de verdadeiro nas gangues piratas: o gosto pela pirataria. Ao contrário de quase todas as tripulações convencionais, não existia escravos entre eles. Todos estavam ali por vontade própria, elegiam seu comandante por meio de voto, dividiam o produto de saques através de um sofisticado sistema de atribuições, raramente guerrearam entre si. Claro, essa é a parte boa e até mesmo carregada de ensinamentos e valores como lealdade, aventura, espírito libertário e mesmo auto determinação. Mas pegava um pouco essa coisa deles viverem infringindo todas as leis da sua época. Roubavam, saqueavam e sacaneavam tipo muito e qualquer um. Os governos da França, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha e de outros países faziam exatamente a mesma coisa, mas era governos constituídos, com direito à hiprocrisia. No entanto, entendo que algo errado não valida algo errado para justificar algo errado.

O ponto aqui é que existem pessoas com alma pirata, aquele sentido de aventura que as leva a tentar capturar o que deseja, nem que seja na marra. Sociopatas, psicopatas, narcisistas, violentos, empatia zero: piratas precisavam de terapia urgente. O problema é que podem querer o terapeuta só pra si, porque quando crianças bla bla bla.

Eu seria um pirata de butique, acho. Gosto de ter as coisas pelo esforço, os avanços formais são bons como vejo. Claro, há de se ter punho, mas calma lá, o outro tem suas prioridades, opiniões e direitos. Ou seja: péssimo discurso pirata. Aventura sim, mas sem a parte de tornar o outro refém. É preciso que venha e construa em mar aberto o que será a embarcação comum. Isso leva anos, carece de uma mistura rara de urgência e artesanato, 3 anos seriam um bom início. Viu? Também penso em resultado. Conquistar? Anran, mas não a ponto de querer tomar alguma coisa pra mim na base do me dá esse coiso aqui. Seria normal agir assim, no mundo pirata. Sequestrar você e pronto, questão resolvida. Não me falta ferramenta, nem coragem, o que sei é que piratas são paixões de curto prazo. Meu coração está em outros tesouros. Por isso acho que nunca me compararam a um pirata e posso entender o motivo, não sou um. Entretanto, tirando o bafo de onça e a falta de banho evidente, consigo entender essas vidas dedicadas à pirataria.

Corsários são um ponto de inflexão, já que são piratas a serviço de um Estado, o que é uma contradição em si. Piratas com carteirinha de pirata. Malvados, briguentos, ladrões e violentos, viviam de pilhar os piratas de verdade e devolver a maior parte do que conseguissem para o Estado que os patrocinava. Piratas com patrocínio, ora veja. Jamais simpatizei com o mais ou menos mocinho, o mais ou menos pirata. A vida já tem meio termo demais para digressões como “somos todos cheios de gradiências e ninguém é absoluto, essa história de bom ou ruim depende da mão que escreve”. Precisamos, ou pelo menos eu preciso, de um ponto fronteira, aquele momento que se ultrapassado, há pouco ou nada a fazer. Mesmo não sendo um, se você é visto como um pirata e não age como um, possivelmente seu destino é o degredo, o exílio e algumas mágoas. Mas entendo como respeitável a escolha entre pirata ou marinheiro regular. Já corsário é algo que merece a indiferença tanto do Estado quanto dos piratas, já que vive nessa zona intermediária, a dos bandidos com carteira assinada. Não dá pra ser as duas coisas, portanto. Tipo às vezes pirata, noutras marujo normal e a metáfora está me cansando. Sei que ambos gostariam de ter você no comando. Mas não se pode estar em dois lugares ao mesmo tempo e escolhas são feitas.

Ao fazer algo muito errado dentro das regras piratas, o acusado podia perder uma das orelhas, um dos dedos ou a única cabeça. Dependendo da gravidade da coisa, eram deixados à própria sorte em ilhas isoladas, onde possivelmente morreriam de fome, sede ou tédio. Brincadeira: não se tem notícia de algum pirata falecido por falta de confusões, brigas, arruaças ou susto. Em um livro que lembro às vezes, imaginei que a grande dúvida do personagem era se ele estava em uma ilha por conta de abandono ou naufrágio. Faz toda a diferença saber se o propósito do frio e do vento que lhe assombravam era que terminasse ali, até que o amor morresse de fome, sede ou solidão. Depois houve um resgate, tudo tornou-se outra história. Tanto, que foi escrito um outro livro, não uma continuação, mas a celebração da resistência, o encanto do encontro, o profundo do compartilhamento, o prazerosamente inevitável daquelas almas se tornassem melhores uma para a outra, tudo porque estavam juntas e o único motivo disso é porque esse era o seu desejo e seu lugar no cosmos. Quando algo é bom assim, atrai bandos de energias pirata, impondo a dúvida sobre a realidade simples e boa do afeto tido e compartilhado. Mas isso nem corsários, nem frotas regulares nem piratas podem roubar.

Bons amigos

Fico pensando sobre quando nasce um amigo, a possibilidade da amizade, o momento inaugural, quando ela inicia, quem corta a faixa inaugural daquele afeto sem afetação, de sentimento neutro, um ser com ouvido, ombro e sem sexo definido. Um bom amigo não tem olhos para os peitos, não desliza por eles, nem os deseja. Escuta, neutro, sobre o casamento? Escuta. E dá conselhos a respeito do melhor caminho a seguir para manter a relação rija e forte. Amigo é para as horas de apuros, desprovido de ciúmes, pau para quase toda obra e que aparece ou é chamado de vez em quando. Chega dizendo “há quanto tempo!”, e pronto, tudo certo. Amigo de fé e de fato é um bunker, a pessoa pra quem se liga às 3 da matina pra contar que conheceu alguém. Que perdeu alguém. Que perdeu-se da verdade que é amar alguém a ponto de não pensar -por absurdo- em lhe pedir em amizade. Amigo bamba diz na lata coisas que só amantes de um amor que abarca amizade são capazes de ofertar. Mas uma coisa é o amigo. E outra coisa é outra coisa. Porque amigo não se elege, é uma construção, uma narrativa. Ele surge depois que retiram do amante seu acervo de cantadas, arrancam qualquer faísca erótica que tenha, extirpam da boca os beijos e anulam seus objetos penetrantes, como a intimidade e o conhecimento sobre tudo que torna o outro um desigual, um raro, um absurdo inevitável, um alguém de quem não se quer ser amigo, mesmo que seja um bunker. Amigo de verdade tem amizade de sobra, inclusive aos fins de semana. E se vc não liga, ele não nota. Um amigo vai lhe apoiar em caso saúde em risco, lucidez em falta, perspectiva torta, hálito ruim, olho cansado, brotoeja, testemunhas de Jeová, cansaço generalizado, inapetência, incompetências, desajustes, juízo prejudicado. Um dos grandes baratos do amigo nato é que você não precisa pedir a pessoa em amizade, ela acontece, é bicho solto. E se precisa, tem algo que o prezado ou a prezada leitor ou leitura não entendeu como deveria. Quer ser meu amigo? Isso não é uma pergunta. É uma definição macro afetiva. A proposta pode ser ofensiva, caso haja um sujeito homem que ame a sujeita mulher, caso a sujeita mulher ame o sujeito homem ou os dois sujeitos tenham amor um pelo outro. Talvez a amizade resista depois do amor, não sei. Mas reconheço que amizade é um afeto fantástico. Como amigo, não aconselharia tentar ficar no setor amizade com alguém que se ama. Seria dar um prezo menor ao afeto entregue, uma consolação cruel. No fim, no calabouço dos grandes enganos, aprendemos a viver uns sem os outros, como crianças aprendem a parar de chorar: por desistência e alguma falta de ar. Um amigo não resolve isso. Acho que é o que me desabilita.

Textura

A coisa mais difícil que sei fazer é ler. Não entendo matemática, gosto de ilusão de ótica e de sons como Nairóbi. Caço pedras, choro à toa, coisas bestas me magoam. Depois que dou o ponto final, não lembro de uma linha do que escrevo sob encomenda. Mas ser ler algo, qualquer algo, te repito  na vírgula o que foi escrito, não importa o tempo que passe. Acho que as palavras podem ser semelhantes, mas não existem sinônimas, tudo quer dizer o que diz. Quieto é diferente de silencioso, por exemplo. Tudo isso pra te dizer que meu olhar tem uma ligação umbilical com as palavras e seus múltiplos significados. Um texto diz absolutamente tudo sobre quem o escreve. Há estilo, personalidade, intenção, assinatura, crenças, visão de mundo, a escrita não fica com o que não é dela. Na arte plástica sou um obtuso. Normalmente não fala comigo, ou me diz pouco. Comecei a me perguntar o motivo disso, se gosto tanto do que há de belo na vida. Assim que tiver, se tiver, uma resposta pra isso eu conto. Por hora decoro dois escritos. É uma forma de reler o bonito que há só pra mim.

Rede

Afeto é colo, um tipo de resistência, algo que se mantém e que te toca porque sim. Não há consolo possível quanto se vai e isso doerá sempre, uns dias menos, noutros mais. Afinal, diante de tanta lucidez tacanha, de falta de ligação, de conexões falhas, das coisas rasas que vemos ou vivemos, amores reais atordoam. Se perdoam. Se acolhem, se surpreendem, sentem um ao outro, liberam, cuidam, esperam, precisam, choram a falta e comemoram presenças. Às vezes, por essas necessidades incompreensíveis, separam-se, param, partem, se recolhem em silêncios devastadores, lembranças limitadas, espaços apertados, antíteses de setembro. Resgate é o que o amor pede. Se o amar te visita, vem acompanhado de festa, de uma intimidade que te percebe, que te recebe, que te enaltece e te vê, não explique. Não justifique. Não conte, nem tente entender. Haverá tese de todo tipo, dirão coisas, profetizarão futuros os que não conhecem, os esquecidos, os distraídos de si, os que não sabem do que falam. Sendo amor, não se verá amor partindo, mesmo que pareça indo. Sendo amor será presença, será presente, será sempre bem-vindo.

A pedra

Era criança, estudava no Grupo Escolar Jerônimo de Albuquerque, um amontoado de salas, cadeiras, quadros negros e a professora Rejane, que era apaixonada por mim mas não sabia. Ela não sabia, deixo claro. Eu tinha certeza. Afinal, era um charme, uma escultura, pura atitude. Ela, esclareço. Eu era um piazito de 9 ou 10 anos, desengonçado, um graveto que calçava Kichute e lia, lia, lia,lia. Foi então a professora (essa mania de chamar de tia nunca entendi) nos chama e séria grau 10 anuncia com pompa e cerimônia: – Vamos conhece-la amanhã

Amstrong deu um pequeno passo por ele, mas foi um enorme para a humanidade e tal. Eu fiquei pasmo. Não tanto com o fato de chegarem à Lua, explico. Mas aquele uniforme, que coisa linda, quis morar em um e poder pular desligado da gravidade, ignorante dos tumultos terráqueos, longe dos gols do Grêmio. De algum jeito, realizei o sonho: eu e Marcos Pontes, o primeiro astronauta brasileiro conquistar o espaço, temos o M em comum.

– Vamos conhece-la amanhã, nos disse Rejane. E se ela disse, iria acontecer. Afinal, era a professora e estava ao lado da Dona Lurdes, a Diretora. – Mas conhecer quem? perguntamos em coro. – Amanhã vocês saberão, nos responderam, rindo uma para a outra.

Quem dorme com uma dúvida sartreana como essa, indo e voltando feito balanço de praça? Na pracinha, na padaria, na esquininha da árvore japonesa, onde houvesse uma criança do Jerônimo, havia também uma certeza: amanhã prometia.

Pra chegar amanhã falta sempre um dia. Ou só falta um, depende como você programa seus horários. Nos meus, sempre faltava um. Aproveitei o tempo para pensar nas coisas que poderia conhecer amanhã. O mar, nossa o mar seria algo espetacular. Mas eu já conhecia o mar. Elas falaram “conhece-la”, algo no feminino. Nãaaaaaaao. Não pode ser uma nova professora. Rejane não poderia ir embora sem saber que me amava mais do que as histórias da Brigite Montford, filha de Giselle Montfort, ambas espiãs internacionais. Essa mulher salvou o mundo dezenas de vezes, em espanhol inclusive.

Mas como diria Carrigan, “baby, quando você não sabe quem é o pato num jogo de pôquer, o pato é você”. Ao entrar no ônibus fretado (ônibus fretado!!!), imaginei horas e horas de viagem onde conheceríamos nosso dest. Não deu nem para terminar a frase e chegamos. Estamos no Planetário, um lugar mágico onde se pode ver as estrelas e conhecer o espaço. E lá estava ela, a pedra. Não uma pedra qualquer. Não uma pedra de rua. Mas a pedra da Lua que Amstrong nos trouxe no bolso. Minúscula, tímida, acanhada, sob uma redoma e protegida por dois gigantes vestidos de guarda. A Pedra Lunar, penso agora. Uma pedra enluarada, conhecedora da gravidade zero e do silêncio espacial. Olhos surpresos, olhe a pedra, veja que bela, te roubo a pedra e a coloco num signo especial, junto com pedrinhas de brilhantes. Ou compraria com a pedra uma rua que sendo minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar. Seria um grande passo para a humanidade dar mais espaço pra gente se amar.