
É na fissão com o outro que surgimos. Somos artesãos de milhões de outros, lembranças outras, alusões, possibilidades, coesões e distâncias.
O filho que nasce, o amor que surge, o diálogo, o fim da linha, o bem-vindo e o basta. Tudo acontece a partir do outro, cuja inexistência determinaria que a realidade seria uma coisa do outro mundo.
Outrora é o outro no passado. Outrossim é o outro jurídico. Outro é polissêmico. Pode significar “o outro” assim, entre aspas, uma insinuação, um apontamento, uma frustração. Talvez queira dizer que é preciso trocar algo pela mesma coisa, tipo “me traga outro igual”, o que seria uma incoerência, o que é outro tema. Representa uma pressão por escolha, o famoso um ou outro. Outro modo de ver as coisas, que sugere um outro ângulo da mesma questão. Outra vez, o outro que se repete outra vez.
Além das outras delas mesmas, as grávidas têm outro ou outros que têm outro ou outros (ou outras) por dentro. O outro nasce. É no meu encontro com os afetos do mundo que surgem os outros dos quais somos feitos, depois de nos tornarmos outra coisa a partir do contato com o outro. Não somos mais o que fomos por conta de outros fatos, de outras razões, outros seres, outras experiências.
Tentamos reduzir o outro a nichos. Lá vem outro poeta. Um outro amor. Uma outra abordagem. Outro modo. Mas o outro é a constante, mesmo que vc queira outras rotinas. Palavras que pedem a repetição de algo bom, o quero outra vez. O outra vez que é um recomeço. Amanhã é outro dia, essa resignação que busca consolo num outro futuro. Nem sempre o encontramos, mas parece sempre ser primeira vez, depois outra primeira vez, depois outra primeira vez.
O outro é transformador. Sob seu olhar, permutamos as experiências da jornada, ajustamos vidas possíveis, sonhamos presentes não havidos, lamentamos o passado, onde o outro não existia. Ou, caso inverso, lamentamos a existência de outro pai, de outro país, de outra família, ainda que não se deseje a desconstrução de nada. Caso isso fosse feito, seríamos outros e poderia não haver nós, apesar do tanto de nós que existem.
Nos amamos enquanto outros se desencontram. E mesmo desencontrados, somos o outro que o outro que segue e seguimos adiante.
Originalmente somos outros, milhares deles. Alternativas, paralelos, libertos. Outros e melhores graças ao melhor dos outros. Porque é isso que nos entregamos: a capacidade de ver nos outros que parimos os outros que vemos partir. É o que nos torna pertencidos ao outro, sem ser propriedade alheia ou ecos de egos. Só é possível tocar no amor a partir da incoerência, presença, escolha ou a experiência do outro, al´ém da nossa. É uma troca você saber o que o outro gosta, fazer-se gostante do outro, gestante de um outro imprevisível. É uma permuta, cujo escambo preve compreender o outro em todos os outros que os outros nos oferecem. É preciso aceitar que o outro é uma resposta, não uma pergunta. É um espelho que deve levar a reflexão sobre o que nos atrai e os motivos disso.
O outro é um caminho para nós no original, essenciais um para o outro. O outro é o que nos encaminha para uma independência lúcia, quando somos um e outro. Quando não precisamos nos disfarçar de outro para amanhecermos um com o outro. ***