Mais ou menos

Para surpresa de zero pessoas, gosto do Fernando, o poeta de mil nomes. Acho “Destino” uma das suas obras mais ai meu Deus, que lindo. Dentro desse poema, a frase que aponta a realidade como algo que “é sempre mais ou menos do que nós queremos” é um pé no queixo. Parece óbvia, vista a olho nu, mas é uma armadilha semântica. É que no português brazuca “mais ou menos” é tipo dá pro gasto, meia boca, um defeito a mais e seria impróprio para consumo humano. Mas colocando uma lupa no mais ou menos do Pessoa, penso que tem a ver com imprecisão, coisa que não é coisa nem outra coisa, um real quântico, está e não está, vive entre duas possibilidades, mais ou menos. Mais, afoga. Menos, não sacia a sede. 

Escrito por Ricardo Reis, Destino é um tratado delicioso, que poderia ser servido em pratos de diversos banquetes filosóficos. Ver de longe a vida, não a interrogar por saber que ela nada tem a dizer. Afinal, respostas estão além dos deuses. Mais um pé no queixo, nocaute certo. Ainda tonto com golpes tão precisos de filosofia aplicada, a derradeira constatação se aproxima. Ele nos aconselha a “imitar o olimpo” em nossos corações. Não nos convida para ir lá, não somos deuses. Não diz para construir um, não temos o poder. Imite, é o máximo que pede. Foque na excelência do olimpo e tente algo semelhante a isso no seu coração. Então, talvez, a gente perceba que deuses não se pensam, apenas são.

Tenho andado no mais ou menos de Pessoa. É uma capoeira, não sei se é uma dança que luta ou uma luta que dança. Dias fora de foco são mais longos, talvez. Ou quem sabe a realidade seja mesmo algo mais ou menos. Juro que vi coisa diferente. Juro que acho que ela pode ser criada. ***

Um novo velhinho em folha 

O novo caminha em direção ao velho. Não há medo nem coragem que os aproxime ou afaste. Existe apenas um tranquilo conforto com o inevitável do encontro. Os dois se reconhecerão. O velho vem de longe no tempo e o novo corre na tarde que julga eterna.  Ao perceberem que tudo os aproxima e difere, um tem lembranças das histórias que o outro ainda interpreta.

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Bons amigos

Fico pensando sobre quando nasce um amigo, a possibilidade da amizade, o momento inaugural, quando ela inicia, quem corta a faixa inaugural daquele afeto sem afetação, de sentimento neutro, um ser com ouvido, ombro e sem sexo definido. Um bom amigo não tem olhos para os peitos, não desliza por eles, nem os deseja. Escuta, neutro, sobre o casamento? Escuta. E dá conselhos a respeito do melhor caminho a seguir para manter a relação rija e forte. Amigo é para as horas de apuros, desprovido de ciúmes, pau para quase toda obra e que aparece ou é chamado de vez em quando. Chega dizendo “há quanto tempo!”, e pronto, tudo certo. Amigo de fé e de fato é um bunker, a pessoa pra quem se liga às 3 da matina pra contar que conheceu alguém. Que perdeu alguém. Que perdeu-se da verdade que é amar alguém a ponto de não pensar -por absurdo- em lhe pedir em amizade. Amigo bamba diz na lata coisas que só amantes de um amor que abarca amizade são capazes de ofertar. Mas uma coisa é o amigo. E outra coisa é outra coisa. Porque amigo não se elege, é uma construção, uma narrativa. Ele surge depois que retiram do amante seu acervo de cantadas, arrancam qualquer faísca erótica que tenha, extirpam da boca os beijos e anulam seus objetos penetrantes, como a intimidade e o conhecimento sobre tudo que torna o outro um desigual, um raro, um absurdo inevitável, um alguém de quem não se quer ser amigo, mesmo que seja um bunker. Amigo de verdade tem amizade de sobra, inclusive aos fins de semana. E se vc não liga, ele não nota. Um amigo vai lhe apoiar em caso saúde em risco, lucidez em falta, perspectiva torta, hálito ruim, olho cansado, brotoeja, testemunhas de Jeová, cansaço generalizado, inapetência, incompetências, desajustes, juízo prejudicado. Um dos grandes baratos do amigo nato é que você não precisa pedir a pessoa em amizade, ela acontece, é bicho solto. E se precisa, tem algo que o prezado ou a prezada leitor ou leitura não entendeu como deveria. Quer ser meu amigo? Isso não é uma pergunta. É uma definição macro afetiva. A proposta pode ser ofensiva, caso haja um sujeito homem que ame a sujeita mulher, caso a sujeita mulher ame o sujeito homem ou os dois sujeitos tenham amor um pelo outro. Talvez a amizade resista depois do amor, não sei. Mas reconheço que amizade é um afeto fantástico. Como amigo, não aconselharia tentar ficar no setor amizade com alguém que se ama. Seria dar um prezo menor ao afeto entregue, uma consolação cruel. No fim, no calabouço dos grandes enganos, aprendemos a viver uns sem os outros, como crianças aprendem a parar de chorar: por desistência e alguma falta de ar. Um amigo não resolve isso. Acho que é o que me desabilita.

Como saber se não digo?

Deve existir (ou deveria) existir uma porta no tempo onde está escrito “entre sem bater”. Ela dá acesso à Sala dos Esquecimentos, uma espécie de achados e perdidos da memória. A única condição para pertencerem à esse lugar é que os objetos, sensações, sentimentos, frases, qualquer coisa que seja viva, tenham sido levados

até ali pelas mãos da inocência. Depois que chegam e se acostumam com a luz em penumbra, passeiam por esse espaço não linear, contanto uns para os outros as suas jornadas, às vezes se consolando. Noutras, simplesmente escutando.

Não são histórias editáveis, como no mundo denso dos corpos, onde a vida é dublada, os diálogos são falas que vivem de aparências e mesmo as recordações se maquiam antes de entrar em cena. Entendo que posso pensar nisso motivado por mágoas, ego ou síndrome de abstinência. Sem problemas: reconheço que julgo decisões que me excluíram, ainda que saiba que todas as escolhas são legítimas, que não há peso absoluto, que definir é descartar todo o restante. Penso que um lugar pode ser lindo quando se está degredado. Ainda assim, mesmo que exuberante, é um exílio. Pronto, civilidade restaurada.

Na Sala dos Esquecimentos lembranças verdadeiras perdem a pressa, vivem fora do perigo da inexistência, da aceitação do menos, estão à salvo de silêncios cortantes, de febres estranhas, de queimaduras no deserto a que foram expostas. Mesmo que tenham sido tratados como inapropriados, inconvenientes, errados, feios ou inviáveis, tudo que existe na Sala dos Esquecimentos tem a alma das lembranças puras. O nome do lugar não esse porque vivem ali as coisas vivas que merecem permanecer existentes, mas lhes foi negado isso. Chama-se Sala dos Esquecimentos porque é onde esquecerão suas machucaduras, eliminações, desaparecimentos e abandonos. Um dia, quando prontos e restaurados dessas dores, reencarnam sob o anonimato do acaso, um acho que te conheço, uma pergunta sobre ilhas, esbarrões que dão início a uma conversa, presentes fora de hora, aromas, interesses, trocas, encontros, intensidades, admiração, amizade, confiança, cores, planos, sonhos, afetos, vocação, escolhas. Serão queridas de uma forma tão intensa que se tornarão escolhidas como valor, identidade ou propósito.

Quase tudo da minha arquitetura pessoal veio abaixo nos últimos tempos. Perdi referências importantes, gente que se foi. Projetos, planos e sonhos essenciais não encontram a terra prometida, tudo com minha assinatura, autorização e autoria. Não trato disso aqui para qualquer ação de consolo, coisa que de fato não quero. Primeiro porque não há consolo. Depois porque não há vítimas, nem o caminho fácil do vitimismo. Finalmente, porque se abriu uma cratera tão grande em mim que mais parece um leito de rio, um caminho aberto à força. Encontro, entre surpreso e assustado, um pedaço de uma casa com janela azul e lugar especial para leitura. Há livros espalhados em cima de uma poltrona de couro que parecia ser bem aconchegante. Cartões de embarque para viagens diversas. Certificados de cursos. Agendas de compromissos em comum. Resumos de anotações sobre filmes e séries, entendimento de livros, trechos de entrevistas, podcasts. Encontrei um quadro todo branco, simbolizando o futuro em construção. Restos de bilhetes. Tateio, entre insensibilizado e confuso, o semblante de estátuas aos cães que mais amei. Choro meus mortos e me conforto sem me conformar. Contorno escombros e quase tudo é automático, do acordar ao acordar, entre tantos desacordos. No entanto, estou aqui, vivo e apto. Algo pulsa e não é o coração, nem começará aqui um texto motivacional. O que acontece é de outra monta, outra natureza, outra coisa. Não se trata de otimismo ou esperança, é diverso disso. Tem sons, são músicas conhecidas, minha play list. São perguntas como já disse hoje? São sinais asterísticos, calendários próprios, textos do Mãe, mãos bailarinas, cheiro de terra molhada, parque das águas, bosque do Papa, abraços, pedaços de riso, gozo multiplicado, Natal fora de hora, entendimento, é tudo muito misturado, tudo muito real, tudo muito inocente. É quando durmo que encontro esse portal. Há uma porta de cores fortes, entre azul e amarelo, onde está escrito “entre sem bater”. Eu não bato e entro. E fico ali, conversando com as lembranças que vivem na Sala dos Esquecimentos. ***

Mora na filô

Muda

Aos Dias de Inverno

diasdeinverno.mariel fernandes

Então é assim que acontece, aos poucos e sem pressa. O coração, antes acelerado e enfrentando mato, chuva, sol, riso e vento, de repente suspende, num grito, todo e qualquer movimento e diz para. Haverá um momento de descrença, uma desconfiança, como se a surpresa fosse uma mistura imprópria do excesso de entendimento com a falta da beleza. Serão horas inacreditáveis e tristes, possivelmente a própria tristeza virá sorrindo e de dedo em riste. A tribo de todos os medos, as sobras, as sombras, o tempo das distâncias, os implacáveis ursos da terra do gelo e a alma (exilada de si mesma) caminhará zonza, tonta, à esmo.

Nas cavernas escondidas da vida, nos buracos e frestas, buscando um quentinho, unhas pretas de tanto cavar, a voz pequena e perdida das coisas caladas, desditas, desfeitas, os falsete das canções não ouvidas, a vida em loopings perigosos, os segundos flexíveis, os meses rigorosos em desprezo abaixo do zero. Também haverá o prazer que te ignora, o silêncio, o mar dos constrangimentos, os sentimento, não se iluda: o tempo vai ser de ranger os dentes.

De qualquer modo, parece que retirantes, retirados, expulsos de mil paraísos, derrotados, esquecidos, julgados, calados e abandonados são feitos de outras coisas. Não são melhores do que os outros, os que fazem outras escolhas, seguem outros caminhos, se exilam em terras mais vistosas e bebem outros vinhos. O que nos separa uns dos outros é bem sutil. O que nos põe em portos distintos é, justamente, os lugares em que somos (ou não) bem-vindos, além do tipo de porre do qual estamos fugindo.

Qualquer que seja a trama, o prazer ou o drama, o que nos coloca longe é se apunhalamos o amor naquilo que ele tem de mais sagrado, o seu significado. É o que gera em ventre frio o acolhimento indeferido, o desnecessário dito e o essencial calado.

Dias de inverno surgem, é a lei das estações na roda atemporal que nos ronda e a todos submete. Parece que é isso que mantém as alegrias acessas em suas cantorias, inspira a dança das estrelas, a viagem de células e planetas, embalando sonhos de encontrar vacinas ou amores, o que no fim é a mesma coisa. O mais bonito dos dias de inverno não são seus azuis celestes, as noites em breu completo e quase indecifrável. O mais veemente nos dias de inverno não são suas manhãs esfumaçadas nas ruas onde a vida se manifesta.

O segredo desses dias é o quanto somos capazes de festeja-los, ainda que nos diminuam a visão pelas vidraças que embaçam. O que há de mais impressionante nesses dias de inverno? É que eles passam.

Sobre o irresistível

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Dê asas à imaginação

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