Aqui estou eu, nesse cantinho do lado de cá da gente. É bem menor do que esperava, confesso. A cozinha é acanhada, a sala é tímida, mas a paisagem, nossa, ela ajuda muito. A vista do meu ponto é espetacular e o silêncio nas (poucas) horas vagas, indispensável. Você já reparou como o horizonte muda? Num instante, é um pontinho lá longe, brincando de lá pra cá e daqui pra logo ali. Mas nas horas de sol escaldante a coisa complica e olhar para o que há de distante exige uma concentração danada. É quando se misturam as muita miragens, e as grandes ilusões. É dessa dessa união que surge a nossa realidade e, gesto contínuo, a maioria dos milagres que acreditamos. Talvez essa confusão explique, entre outras coisas, porque os publicitários ganham mais do que os filósofos. É uma questão de prioridades: slogans são curtos e o mito da caverna, convenhamos, tem que pensar um tanto pra entender.
Há dias que nem te conto de tanto que chove. Nesses, o primeiro sinal que procuro é o cheiro de terra molhada. Alguns aromas são mesmo uma coisa, não? Eles traduzem o momento raro de uma pororoca existencial. É quando a água bate no chão e o resultado do encontro equivale a Deus cantando Over the Rainbow num inglês obviamente perfeito sobre todas as coisas.
Aconteceu de tudo um pouco nesse tempo. Praticamente te vi dia desses, milhares de anos depois que me contaram da tua ida. Estava bestando, distraído e puft, ora, ora, ora você. Fiquei olhando a cena até que desaparecessem tu e o momento. Lembro de ter ficado feliz. Lembro de ter ficado parado. Lembro do quanto gosto do teu rosto familiar. Logo eu, veja só. Logo eu, que sempre tive tudo a declarar, entendi que o silêncio nos distancia, mas também nos torna inseparáveis. Não sei mais o tom da tua voz, guardo os bom conselhos e me mantenho curioso, com os pensamentos em desalinho. Será que esquecemos uns dos outros para não sofrer ou sofremos justamente porque nos esquecemos? Não sei, mas viver coloca algumas perguntas difíceis pelo caminho e algumas respostas nos deixam falando sozinhos.
Aqui do lado de cá da gente, levei um tombão, daqueles de tirar o ar. Ah sim, ganhei uns arranhões, mergulhei em águas turvas e me arrisquei em trechos desconhecidos das estradas. Como sempre, vivo no tempo contrário, entendi que o teu amor é meu amigo imaginário. Sim, ainda consigo enxergar no escuro, de modo que aprendi a saber onde estão as coisas que precisam ser achadas, mesmo quando o tempo fecha. Isso explica porque passei um tempo imenso tentando ouvir te amo em cada estação do ano. De qualquer modo, não recomendo o exercício: esperar pode se tornar um vício. Pode ser uma aventura extrema, cujo final é uma pena pelo desperdício do tanto que poderia ter sido.
Conto sobre o vão que existe entre eu e você porque foi nele que aprendi a tecer uma vida desconfiada da esperança. Ela oferece centenas de razões pra ficar. Abre baús e álbuns, mostra fotos antigas, fala sobre razões de Estado, declara a importância da família e informa que não há como explicar no momento. Então se embala na cadeira de balanço do tempo ou dorme na rede sossegada das crenças, dos pai nossos, das ave Marias, do onde houver guerra que eu leve a paz. Mãe do céu, como eu queria te abraçar agora. Falaríamos a nossa língua preferida, a vida. Te diria que passei de ano, que ganhei mais uma eleição, que o azul é minha cor original. Dormiríamos então, num canto do lado de cá da gente. Longe do bem e do mal.