
[ O maior segredo do me
do é que ele não serve pra nada. Se alimenta de sombras e de criaturas da areia, lendas contadas sob luze de lanterna e barracas improvisadas ]
Olhos arregalados, respiração suspensa, coração parado. E assim, congelados de medos, ouvimos melodias descompassadas, correntes se arrastam na parte de cima da casa, as janelas batem e o vento é gelado. Tenho medo de cavalos, são bichos grandes. Manadas de elefantes e de rinocerontes, além de todos os outros mastodontes. Cobras não gosto. Baratas me causam asco, o mesmo acontece com ratos. Mas medo de Saci Pererê, como ter? O carinha possui uma perna só e ainda por cima fuma. E mula sem cabeça, coitada? Deve se bater tanto entre as árvores enquanto corre de madrugada. Fantasma da meia noite, que emprego medonho. Assusta quem nesse horário de sonhos?
Tenho medos mais concretos, como receber uma ligação de alguém que trabalhe com marketing direto. Medo não me tira o sono, a não ser que me sinta em estado de abandono. Medo é um cão cego te servindo de guia, serventia zero, proteção nenhuma, morderá a mão que lhe pede orientação. Ter medo é pedir companhia para a solidão.
Tive medo de água por um longo tempo. Disso o afeto me curou. Ainda exige um esforço de confiança pegar a barca que une dois pedaços de terra repartidos pelo mar. Vou de olhos fechados, como se assim não houvesse um oceano abaixo de mim. Pensando bem, vivemos a milhares de quilômetros por hora, confiando num piloto automático, um maestro invisível. Ultrapassamos asteróides, dependemos de humores solares, ninguém nunca sabe quando haverá um terremoto, um mar revolto, se vai chover e por quanto tempo. – É o El Ninho, dizem os cientistas. Não quero saber quem é, quero saber porque. Acontece isso em função do encontro das águas calmas com correntes mais nervosas e quentes. Se sabem tanto, por que não avisam dias antes? O ponto é que vivemos cercados de perigos e nós mesmos (como raça) não somos exatamente um bando de escoteiros. Os bichos preguiça, as tartarugas do casco mole, a flora de um modo geral e os pobres de um modo particular que o digam.
Atacamos tanto pelos medos que temos. E tememos até as coisas que sabemos que vai acontecer, as controláveis. Você já reparou que dizemos “se eu morrer”? Como “se”? Não há cláusula nesse contrato. Vamos bater as botas, falar com Deus, ouvir o chefe, jogar no Santos, ver a grama pela raiz, ir dessa pra melhor, subir um andar, falar com as almas. Há milhares de escapismos para morte, menos não morrer. Não há condicional. No entanto, batemos 3 vezes na madeira sempre que o assunto surge. Talvez não seja da idade, da morte ou das perdas que tenhamos medo de fato. Possivelmente nos apavore mais do que assombração é o aparente descontrole disso. Um cara legal morre e o Maluf lá, firme. Qual é o critério? Talvez os fantasmas de uma vida medíocre sejam os verdadeiros motivadores desse pavor coletivo por tantas coisas.
Catalogamos medos, dando a isso o nome de “Síndrome”. E se conseguimos catalogar de algum modo a desorientação geral, pronto, ufa, melhor assim. Quando alguém não se sente seguro nem dentro dele mesmo, chamamos isso de “Síndrome do Pânico” e estamos conversados. O problema é que não estamos conversados. O problema é justo esse: não temos conversado. O problema é exatamente aqui: não se conversa sobre isso, nem sobre aquilo, nem sobre coisa alguma. Terapia não é conversa. Análise não é falar. Nesses casos, estamos relatando nossas milhares de solidões a técnicos essenciais ao mundo contemporâneo. Falo de conversa, esse gesto em que alguém escuta como que enxergando a alma do outro. Falo de diálogo, esse momento em que o entendimento não depende de lingua, linguagem, idioma, mensagem, é apenas e tão somente entendimento. O silêncio entre partes pode estar cheio de verbetes, repleto de palavras, coberto de breus e julgamentos. Trocar frases e conversar são coisas completamente diferentes. Um espaço de conversa é a única forma de blindar relacionamentos, ligações, sentimentos.
É preciso sempre dizer o mais próximo de tudo que se tem a dizer de bom a alguém. Acredito que precisamos ser lembrados disso. Do quanto somos amados, queridos, bem-vindos, amigos, bacanas ou, sei lá, limpinhos. Não precisa ser toda hora, mas não pode ser um evento raro. Tenha medo de tornar-se seco, durão ou invencível. De acreditar na desconfiança permanente como forma de vida, de preparar-se mais do que o necessário para qualquer atividade. Ninguém deveria ser impermeável às emoções sagradas do amor em suas manifestações diversas. Nem imaginar que esse sentimento é perfeição acima de tudo. O amor não é perfeito, apenas vê perfeitamente tudo e todos sob a lente da felicidade. Quem não ama pode ter medo do mar. Quem ama, anda sob as águas. De barco, com colete, mas anda. Parece estranho falar de amor e medo na mesma conversa. Talvez não seja. Talvez o medo básico seja o de não existir amor legítmo ou seguro o bastante. E que entre amar ou ter medo, a gente prefira o segundo, já que é mais conhecido. Isso é como escolher ser assaltado sempre pelo mesmo bandido.
E se por um instante pleno de nós mesmos abrirmos mão dos medos, uivos, grunidos, histórias apavorantes, criadas por criaturas de um mundo triste? Não sei de você, mas acho o amor e a janela duas grandes descobertas. Mas se precisar escolher, deixe a alma aberta.
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