majestade

Eu vi o Pelé jogar ao vivo. Era pequeno, meu irmão mais velho me levou ao Olimpico, estádio do Grêmio, para ver sua majestade jogar. Quando ele fez o gol que decretou a vitória santista, eu estava intrigado sobre como os caras que vendem picolé conseguiam se equilibrar nas arquibancadas, subindo e descendo os degraus que eram grandes à beça. O primeiro camisa 10 de todos os tempos estava de partida para um time norte americano (Cosmos) depois de muita lenga lenga. Podemos dizer que Pelé estava indo para o seu lugar no Cosmos (piada interna). É que havia um decreto presidencial, sim uma lei, que impedia a venda do craque para o estrangeiro. É exatamente isso que vc acabou de ler: era proibido negociar o Pelé. Foi preciso que o presidente dos Estados Unidos fizesse um pedido formal ao governo brasileiro, na época uma ditadura milica, solicitando que fosse viabilizada a transferência. Feito isso, permissão dada, o sujeito estava indo embora. Então, cada partida era a última contra os times locais, os estádios lotavam para vê-lo derrotar nossas cores com a classe de sempre. Antes de se ir, o atleta providenciou a feitura de 1.000 gols. Ganhou 3 copas do mundo. Foi campeão paulista, brasileiro, da libertadores, do mundial de clubes, uma verdadeira máquina de vencer. Há muitas histórias sobre seus feitos e a magia a respeito da genialidade dessa divindade futebolística é cercada de fatos quase inacreditáveis. Como a vez em que para garantir que Pelé jogasse na Nigéria que se encontrava em uma guerra civil profunda, foi decretado um cessar fogo entre as partes. Isso, Pelé parou uma guerra.

Volta e meia, surge um “novo Pelé”, como se isso fosse mesmo possível. Jogadores excepcionais tiveram suas carreiras muito prejudicadas pela comparação quase cruel. É impossível um novo Pelé. Alexandre Pato, Denner, Maradona, Zidane, Romário, Cristiano Ronaldo e, mais recentemente, Newmar, formam uma fila quase interminável de “novos Pelés”. Newmar, então, teve ainda a má sorte de jogar no Santos. Pronto, era o raio caindo no mesmo lugar, s´´ó que ninguém combinou com Deus e Ele sabe que fazer um monstro do tamanho do Pelé dá um trabalho danado, além de se ganhar pouco em termos de direitos autorais.

Quem não o viu em ação, precisa entender o que significa Atleta do Século, uma de suas dezenas de títulos. Na minha opinião, Atleta do Século é o chefe de todos os melhores do mundo juntos, o que não daria um Pelé. Todos os craques do planeta teriam que jogar ao seu lado ou ser banco de reservas do Rei. E aí entra novamente o Newmar, que não poderia ser o imediato dele por falta talento nato, coisa que o Maradona tinha e que outros têm. Newmar parece ser um cara bacana, típica celebridade da uma época meio estranha nesse item. Ele tem, com Pelé, apenas uma semelhança: ambos possuem documentários péssimos a respeito de si mesmos. O do Pelé é mal feito, mas tem roteiro com início, meio e fim. O do Newmar, senhor, é bom como um picolé de brócolis.

Comparações são quase sempre parciais. Mas Tayson, Zico, Zidane, Clinton, Malcovich, Cristiano Ronaldo, Cafu, Vampeta, todos apontam Pelé como o melhor que já houve. A importância de reconhecer algo inédito em conteúdo, forma e modelo pode salvar seu time de uma goleada ou tirar sua vida da mediocridade. Não é preciso perguntar quem é o melhor do mundo como o número 10 incomparável. Você sabe que é ele.

Isso acontece com quase tudo em nossas vidas. Vc encontra e há algo naquilo que se desprende, que se destaca, que te encanta. Você sabe que é ele. Não será preciso estabelecer julgamentos. Torna-se burocracia tola tentar colocar lado a lado as explicações formais sobre as especiarias das especialezas, os encontros fundamentais. Eu vi Pelé jogar e me lembro de apenas uns 4 segundos, uma imagem em preto e branco na memória, algo fugidio. Isso talvez tenha me tornado mais atento ao que pode ser a única de visita de uma oportunidade de trabalho, de divertimento, de afeto, de reconstrução, de felicidade. Por isso olho nos olhos e vejo um milésimo de tempo a mais. Por isso vasculho por sinais e não tiro a atenção por nada quando reconheço isso. É que sei quando estou diante do que é o melhor dos mundos.

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Aprendi a falar a tua lingua entendendo os ditos que saem da minha boca. Não pelo que se traduz, mas através dos apelos que trazem. Somos nossa vida predileta, entre tantas existências possíveis de se olhar ou viver. Diante de mim, há o Atlântico nesse momento inexato que acontece entre outros tempos acessíveis. E se fosse bombeiro, pediatra, dono de padaria, astronauta ou piloto de Fórmula 1? E se ficasse numa ilha cercada de amar a única você que existe? E se fosse escritor de contos infantis, soldadinho de chumbo, voluntário da pátria? E caso você fosse pediatra, projetista de ambientes, escultora de gente, dona daquelas tabacarias cheias de aromas incríveis, gostos sem fim, temperos e especiarias?

O destino das coisas não é o que tinha que ser. Nada é o que tinha que ser. Não há uma sina, um ponto final, um somos assim e pronto, um eu sou o que sou. Abrimos portas, fechamos janelas, podemos chegar e decidir não ficar sem o nosso par em Ithaca. Permanecemos -nem sempre serenos- entre o infinito do sempre e a beleza de tudo que nos faz perenes. Família, parceiro, filhos, primos distantes, tias chatas, mãe ausente, entorno, contornos, moldes, modelos, natais frustrados, gente que não veio, filmes não vistos, livros e pedidos de casamento. Vivemos cercados de momentos e portinholas da jornada. Ali, o design, dois filhos. Aqui, pesquisadores do fundo oceânico, 4 golfinhos. Noutra, decoração interior ou comercio exterior, 6 pontes de safena, uma casa pequena e 2 gatos siameses. Em um outro real, entendimento, muro baixo, asterisco e cherie latindo e manhosos, planos, sonhos e realizações, além imperfeições da vida, desejos atendidos e férias em lugares calmos. Jogador do Inter, pesquisador de aranhas, especialista em montanhas, marinheiro, cowboy, ilustrador, fundador do Green Peace, roteirista em Amsterdã.

Diante de tantas possibilidades, desconfiamos do que nos seja novo de fato. Então, finalmente resgatados, muitos se deixarão ficar nas ilhas dos seus fantasmas conhecidos, agarrados a sequestradores ou mesmo se juntando ao bando.

Nada mais triste do que a beleza renunciada. Viver se duvidando, desabitar-se, importunar o sossego. Nada é mais assustador do que estar do lado de fora dos risos, não se saber amando. No entanto, eis um segredo terrível. Eis um aviso que deveria apavorar tudo que vive num lugar no cosmos que não lhe pertença. Muito cuidado, porque é assustadoramente possível. ***