Tec, tec, tec

Escrevo o que sei ou lembro. Não posso fantasiar escritas, teclar afetos ou feitos inexistentes. Se digito “vi um gato branco e preto” é porque um branco e preto gato passou por mim, nem mais nem menos. Com o que não sei ou não sinto não gasto tinta. Escrevo meu estado, divido olhares, falo de gente, da gente, descrevo. Minha máquina nem é tão velha quanto a da foto, tampouco mais linda. Eu fiz curso de datilografia e te amo. São duas coisas que me aconteceram, por isso escrevo. ***

Algo

Entendi algo que me intrigava a tempos. Não o algo todo, não o algo por completo. Uma parte do algo. Algo no grande algo que me embestava. Algo que causava algo em mim. Uma sutileza curiosa. Um riso distribuído. Algo.

Quando alguém ou alguma coisa produz algo, há algo ali. Pesquise, procure, leve no bolso, pense. Te enternece, te movimenta, resiste, orienta, é algo à prova d’água. É porque é algo diferente ou bom. Quando é algo bom. Quando algo não é, não é algo. É coisa. Não confundir com coiso, que pode ser qualquer coisa ou algo.

Algo te fala, conta, aponta, trata-se de um algoritmo, intuição. Forma, formato, recorte, hiato, classe, atitude saborosa que salgo. Não é o tamanho, é o porte que importa. São as notas amadeiradas, os vinhos tomados, as cocas geladas, a forma de algo que você sabe o nome, mas não consegue explicar, como o macio do algodão.

É um jeito, um gesto, o interesse real, uma verdade vivida, algo que galgo. Teu segredo não é secreto, não há nele mistérios, fábulas ou metáforas. É um carinho exato, um puro sangue que cavalgo entre asteriscos, meias palavras, frestas, rabo de olho, presença e distanciamento. Acho que seja o amor que não se torna algoz.

Teu algo se transforma em afeto indispensável. Olhe bem. Tem algo nas palavras lago, gola, Olga ou galo. Em todas elas há algo. Então penso que não temos algo em comum, mas algo incomum, raro, vindo de lugar algum, feito à mão com o dom dos talentos.

O que me intriga é ao contrário de me tirar o sono, o tempo ou o fôlego. Se chama interesse curioso pelo que o outro faz, o que sente, porque age, onde mente. É feito desses algos imateriais as tuas vindas. As tintas usadas, as palavras novas, os aromas sugeridos, a vontade declarada. É como Clarisse, outra com outras por dentro. Diz algo, mas o não dito, só o que precisa ser escrito. Combate o ego e se dispõe a ver a verdade da vida assim, sem certezas e cheia de uaus, de ohhhs, de poxas. É a parte que vi, de tantas artes insinuadas. És minha surpresa. Sou teu fidalgo. ***

Quando

Nada é mais longe do que amantes separados. Por trabalho, bobagem ou um impedimento qualquer, algo nada natural acontece. E aparece ali, nas entrelinhas do dia, um estranho cuja resistência depende do riso que está fora do alcance. Um calor externo, algo tão seu quando não seu pertencente, o outro e suas outrices.

Estive longe uma longa vida e o tempo inteiro estive exilado em mim. Quando penso em presentes, acho que é pra recompensar a presença, aquietar ausências e explorar quem sou. E sou quem leva sopas ou aguarda lá fora, que erra o tempo, que anda devagar por que já teve a pressa de te encontrar.

Habitar o prestes a um encontro é uma bagunça sem fim, alma que amo. É a nave entrando na órbita, essa mistura de fogo e gelo, o velho desconhecido e o novo já visto.

Será que é hoje, será que acontece, será que entendeu o que disse e será que será será como já falou Caetano, o baiano que tem tanto a declarar?

Nunca escrevo para concluir. Não me atrevo, só penso o que vivo e dentro de um senso que me vista com a essência daquilo que acredito, até que isso se revista de insumo para outras coisas pensantes. E de outros sentidos unindo o agora com um pouquinho de antes. ***

Colho

É no matinho que morava, toda laranja. Se dizia holandesa, “é só olhar minha cor”, se gabava. Mas era mesmo resultado da rua, de pó, de sol, de chuva rala, de grama solta, de taturana, algum pedregulho e muitas abelhas. Tinha cor do acaso, raiz pequena, folhas luzinhas e testura de Holanda. Era uma flor de se olhar, dessas sem vergonha e molhadas por tudo que é sereno. Que se dá pra mãe ou pro amor depois de um passeio distraído, sem nada de motivo de nada, só uma vontade moleca de agradar. Um jeito recém acordado de gostar, um instantinho malandro de ser flor, um cheiro de lua, um banho de riacho, um pedaço de sono, uma saudade de entrar, um enfeite, uma flor que era sozinha e que agora é só minha flor, todo santo dia, que começa de manhã. ***

Madá

Minha vó Madalena (olha que nome lindo) foi a única que conheci. Tenho uma vaga lembrança de um avô de apelido Minho. Mas Madá, uma paraguaia divertida, essa indiazinha que falava Guarani, essa pequeneza que ria e quando ria escondia o riso com a mão, essa vó que mascava fumo, ela ficou em mim. Nos encontramos poucas vezes, duas ou três no máximo. Ninguém entendia direito o que ela falava, na verdade um dialeto. Minha mãe, claro, se comunicava naquela linguagem estranha. Eu conversava de olho vidrado nela. Perguntava coisas, nomes de alimentos, por exemplo. No meio das perguntas, feitas em português ou castelhano, colocava palavrões no meio, queria aprender xingamentos em guarani, tipo seu bunda, pinto torto, cara de pum. Ela não entendia, dava um risinho tímido e me pedia mais fumo, com gestos. Adorava aquela coisinha miúda, de andar lento mas decidido. Havia nela uma calma humorada, um sorriso pronto pra brotar e comentários que não entendi nunca. Soube depois que a minha anja adorava impropérios, os dizia com cara simpática, mas estava mesmo era lascando alguém. Fazia aquilo por diversão, quem entende guarani no partenon, zona de guerra em porto alegre? Ninguém, claro.

Madalena passou duas temporadas em casa, pelo menos é o que lembro. Você ia gostar dela e o amar, (hayhu) certamente seria correspondido. Da comida que fazia, talvez a Chipa fosse mais aceitável, mas eu experimentaria o reviro, uma coisa que vai ovo, farinha, sal, água e óleo. É para fortes, tem um cheiro estupendo e come-se com café preto adoçado com melado. Falei que era algo. Mas pode ser açúcar, sua fraquinha (saiquê).

Numa dessas vindas, Madá (que gostava de terminar comentários com um “maquevá”, de significado dúbio) ficou resfriada. Pavor na casa, já que uma gripe pode ser fatal para quem não tem contato com o virus. Febre altíssima, lá vem a mãe. Discussão (com muitos maquevás ao final) tensa. Toma ou não toma o Melhoral Infantil? Nem eu, uma criança, tomava aquilo para o que quer que fosse, maquevá. Argentina 1 x Paraguai 0. Negociação feita (uma sessão de fumo a mais no dia seguinte), o Melhoral foi aceito. Em uma hora não havia mais sinal de nada e a vida seguia seu rumo.

Na última vez que a vi, ela me pareceu cansadinha. Estava distante, os olhos sempre curiosos estavam se rendendo, junto com aquela vida. Não tristeza ou medo, acho mesmo que havia uma certa impaciência para ir-se. Não estava mais ali, de um todo. Ria, prestava atenção com um jeito maroto, cabelo longo, sempre impecavelmente trançado. Tiramos uma foto juntos. Ela pediu para que eu

Na última vez que a vi, ela me pareceu cansadinha. Estava distante, os olhos sempre curiosos estavam se rendendo, junto com aquela vida. Não tristeza ou medo, acho mesmo que havia uma certa impaciência para ir-se. Não estava mais ali, de um todo. Ria, prestava atenção com um jeito maroto, cabelo longo, sempre impecavelmente trançado. Tiramos uma foto juntos. Ela pediu para que minha mãe escrevesse algo ditado, no verso da foto. Mais ou menos isso:

Para Mariel, mi nieto inolbidable, dejo mi corazõn lleno de abrazo y amor.

Talvez venha dela meus abraços. Quem sabe tenha herdado um coração a mais e foi ele que não parou, quando eu pensei em partir. De qualquer forma, aquela pessoinha que eu fui não entristeceu quando ela se foi. Senti saudade, claro. E lamentei. Mas tristeza, não. O espaço criado não comportava esse sentimento, todo ocupado por muitas e boas gargalhadas. Comentei com a mãe que sentia o fato dela não compreender o que eu diza. – Como assim? Me perguntou. – A vó Madá não falava português, ela não me entendia. A mãe caiu no riso. Madalena falava e bem o português, mas mantinha isso em segredo. Assim, se assegurava de não ser enganada por brasileiros. Ou de ter que ensinar palavrões em Tupi Guarany para o neto.

Dorme bem, alma que amo. Que especial estar com você. Não, nós não vamos para o Paraguai.

Repouso

A lua pra mim é mansa, no sentido de suave. Lembro da sua pedra, da bandeira americana fincada e do que me contaram sobre seu mar, chamado Tranquilidade. Toda rua é dela, todo escrito é teu, toda lua é cheia e me apresenta o riso que ilumina a sacada. Não vejo romances nela, gosto mesmo das fases, um lembrete do tempo que migra não porque passa, mas porque se vai de mim e, assim, me torno minguante.

Tuas vindas nunca passam desapercebidas. Isso não é um treinamento.