Sobre todo o sentimento

                                                           Te escrevo aqui, na parte rasa da noite, onde Chico canta o que há de lindo em uma marieltodosentimentoseparação finalmente compreendida em sua necessidade básica de ir. “Preciso não dormir até se consumar o tempo da gente” é uma aceitação da insônia que vai reger a passagem das horas. Não serão momentos fáceis, alerta o poeta de olhos de mar, como Betânia o chama. Afinal será preciso conduzir “um tempo de te amar, te amando devagar e urgentemente”. Devagar para viver o que falta. Urgentemente para superar o que sobra.

Buarque é um alquimista capaz de transformar dor em ouro, o que exige um certo cuidado com os seus ditos. Afinal, podemos achar reluzente o que dói, passando a andar por aí expondo chagas, como fazem os pedintes nos sinais de trânsito. No fundo, o que eles desejam não são as moedas, mas sua retirada do invisível onde faz frio, além do fim do exílio, que os leva para longe de si mesmos.

No entanto, é preciso ter em mente uma coisa muito importante: se tudo der certo, muita coisa vai dar errado na vida da gente, afetos inclusos. Por pequenos ciúmes, grandes defeitos, projeções diversas, posses disfarçadas de cuidado, medos à granel, covardia no atacado, chatice pura e simples ou fadiga de material. Além disso, teremos distâncias, incoerências, impedimentos variados, burrice crônica, dependência ou distração abandonante. O amor navega em águas profundas, é um lugar isolado como o Tibet: dá um trabalhão para chegar, pode fazer um frio danado e você tem que pedir autorização pra China, que nem sempre está de bom humor.


Por isso, quando Chico diz que coisas como “pretendo descobrir no último momento um tempo que refaz o que desfez”, algo se alerta em mim. Afinal, ninguém que deseja mesmo fazer algo se declara um pretendente. Veja o Luther King e o seu famoso “eu tenho um sonho”. Ele não disse “pretendo ter um sonho” porque nada acontece no tempo do pretendendo. É um território árido, preguiçoso e sem graça, onde tudo nasce no gerúndio.  O amor é algo que zarpa, cruza, abarca, parte, inspira, vai, fica, explica, constrói, fortifica, imobiliza, movimenta, é farol que desorienta. Artesanato imperfeito, alegria em construção, amor exige fronteira clara entre o que é você e o que há no outro: amor não é comunhão, é comodato, se dá na troca entre iguais. Amor é uma porção individual, uma festa no interior, um silêncio em conversação. Acho que era isso que me incomodava em Todo Sentimento. Eu a ouvia como algo que não era, daí a impossibilidade de compreensão. Todo sentimento não algo sobre o amor, é algo sobre o amor reconhecido em seu começo, respeitado em seus meios e liberado em seu fim.

Homens, ao mar

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Todo marujo que se preza  sabe que não se reza por terra à vista. Corsários ou capitães da esquadra inglesa têm um inimigo comum: a vontade de aportar, lançar cordas, ancorar. Pra eles, voltar pra casa é alto mar, portos são um desvio. Um lobo do mar não se forma em águas rasas, precisa conhecer a força dos repuxos, os humores das correntes submarinas, a mistura perigosa entre sol e sal, a imensidão oceânica e a impressionante falta de esquinas. Um bom marinheiro não espera que suas viagens sejam feitas de sonhos, vento sempre à favor e primaveras azuladas. São inevitáveis as cicatrizes, as tempestades, a inspiração de sagres e as lutas inesquecíveis com os deuses de todos os mares.  Só então, depois de  rufados os tambores, Tufão separa entre os lutadores os melhores. É assim que os deixa singrar suas dores e contar histórias sobre tesouros escondidos em ilhas inacessíveis aos conformados de água doce. Nenhuma sorte aos resignados, aos sepultados em si mesmos, aos que vivem à esmo do que sentem. Abandonados, náufragos, solitários, renegados, perdedores, esquecidos, perdidos, ressentidos, sem pátria, exilados, enganados, estejam certos quanto aos mapas, rotas, guias e todo tipo de instrumento disponível à navegação. Serão imprecisos, mas fundamentais. Farão surgir histórias de conquistas e aventuras, ventos e vendavais. Soltar amarras, içar velas, enfrentar o medo e deixar o cais. Lá vamos nós, tripulação improvável de um tempo formidável, capaz de enfrentar os elementos, os transformando em um tremendo instante, transatlânticos sonhos, plenos de descobertas, muito além das ilhas desertas, um lugar nosso, nele não seremos intrusos. Enquanto ele não chega, homens, aos mar. Homens, ao mar, marujos.