Aos Dias de Inverno

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Então é assim que acontece, aos poucos e sem pressa. O coração, antes acelerado e enfrentando mato, chuva, sol, riso e vento, de repente suspende, num grito, todo e qualquer movimento e diz para. Haverá um momento de descrença, uma desconfiança, como se a surpresa fosse uma mistura imprópria do excesso de entendimento com a falta da beleza. Serão horas inacreditáveis e tristes, possivelmente a própria tristeza virá sorrindo e de dedo em riste. A tribo de todos os medos, as sobras, as sombras, o tempo das distâncias, os implacáveis ursos da terra do gelo e a alma (exilada de si mesma) caminhará zonza, tonta, à esmo.

Nas cavernas escondidas da vida, nos buracos e frestas, buscando um quentinho, unhas pretas de tanto cavar, a voz pequena e perdida das coisas caladas, desditas, desfeitas, os falsete das canções não ouvidas, a vida em loopings perigosos, os segundos flexíveis, os meses rigorosos em desprezo abaixo do zero. Também haverá o prazer que te ignora, o silêncio, o mar dos constrangimentos, os sentimento, não se iluda: o tempo vai ser de ranger os dentes.

De qualquer modo, parece que retirantes, retirados, expulsos de mil paraísos, derrotados, esquecidos, julgados, calados e abandonados são feitos de outras coisas. Não são melhores do que os outros, os que fazem outras escolhas, seguem outros caminhos, se exilam em terras mais vistosas e bebem outros vinhos. O que nos separa uns dos outros é bem sutil. O que nos põe em portos distintos é, justamente, os lugares em que somos (ou não) bem-vindos, além do tipo de porre do qual estamos fugindo.

Qualquer que seja a trama, o prazer ou o drama, o que nos coloca longe é se apunhalamos o amor naquilo que ele tem de mais sagrado, o seu significado. É o que gera em ventre frio o acolhimento indeferido, o desnecessário dito e o essencial calado.

Dias de inverno surgem, é a lei das estações na roda atemporal que nos ronda e a todos submete. Parece que é isso que mantém as alegrias acessas em suas cantorias, inspira a dança das estrelas, a viagem de células e planetas, embalando sonhos de encontrar vacinas ou amores, o que no fim é a mesma coisa. O mais bonito dos dias de inverno não são seus azuis celestes, as noites em breu completo e quase indecifrável. O mais veemente nos dias de inverno não são suas manhãs esfumaçadas nas ruas onde a vida se manifesta.

O segredo desses dias é o quanto somos capazes de festeja-los, ainda que nos diminuam a visão pelas vidraças que embaçam. O que há de mais impressionante nesses dias de inverno? É que eles passam.

A respeito do tempo

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O absurdo que viraliza, a bolsa que oscila, o saldo do seu Visa. O Bolsonaro, o próximo carro, o espanto, os cursos de Esperanto, o sossego, a continuação de O Segredo, o último Kung Fu Panda, o próximo show do Wando. O escândalo da hora, a hora, o tempo, a parada militar, a primavera árabe, Lula e todos os ídolos de araque, o casual sorridente e o sisudo de fraque.

Aquele sujeito esquisito, a lembrança dos gols do Zico, o preço do palmito, a poesia ruim, as polêmicas com o Chico, zeus e os deuses infinitos. O bem maldito e o mal bem dito, os reis, os Maias, o comprimento das saias, as notas oficiais, os combos, os hashtags e os heróis da Marvel. Esquecidos ilustres, os lustres do Titanic, os sotaques, as meninas, os homens de Marte e as mulheres do interior de Minas, os tiques, o carnê do IPTU, o samba de uma nota só.

O presente, o futuro, os bifes bem passados, os amantes, os abandonados, os farsantes, a taxa Selic, a minha Montblanc, os carinhos da manhã e as conclusões bestas, tipo a maioria das Bics perderam as tampinhas azuis. Logins, senhas, redes, conta da luz. Ultrajes, fronteiras, carro do ano, amores partidos, os mocinhos, os bandidos, as ações da oi e o selo de qualidade da Friboi. Arte, bondade, emprego, verdade, ego, usinas, aviões e sossego. As latas, o luto, a esquerda os reaças. Tudo vai, tudo cai, tudo passa.

 

Sobre Viver

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Ufa

Definitivamente, sou um vexame dos grandes. Qualquer malandro com uma história fajuta me tira uma grana em sinaleiro. Da grávida parindo e precisando de uma ajuda pro táxi ao office-boy que perdeu cinquentão e conta comigo senão já era, caio em todas.

Choro por coisas sérias e estúpidas. Saudade, amor, topada na mesa, comercial do Itaú, os textos da Clarice, uma passagem bíblica, lembranças infantis, pequenas gentilezas, grandes amizades, as coisas me comovem, algumas me paralisam, outras me movem, mas eu nunca deixo de perguntar algo fundamental: viver é pavê ou pra comer?

Pode ser no cinema, uma recordação enluarada, a sensação de presença da alma amada, um som, uma convicção, um olhar límpido, aquele gol do Inter no Olímpico, definitivamente, sou a terra do fiasco. Quer cerveja mais mimimi do que a Malzibier? É a minha preferida e juro, não faço pra chocar, por pose ou por tipo. Acho que sou mesmo um esquisito, que presta atenção no joio e nem sempre escolhe o trigo. Por que? Porque acredito que viver zumpé simples, mas não é 2+2. Requinte é um requisito da simplicidade. Pressupõe se propor ao que é simples de verdade. Como pra quase tudo, há muitos caminhos pra isso. O meu não dispensa (às vezes) pão, queijo, salaminho e aquela do Roberto. Ah sim, ajuda muito se o seu amor estiver por perto. Não sei dos adequados, nem de quem padeça de certeza absoluta, ranhetice aguda, velhice doentia, indelicadeza crônica: sempre estive ao lado dos naufragados em águas turbulentas, onde nascem os bons marinheiros. Os que salvam mulheres e crianças primeiro, os engraçados, os prontos para ficar, os decididos a partir, os emocionantes, os emocionados, os amantes, os abandonados, os esquecidos, os deixados na terra dos temporais e dos absurdos. Olho para os vitoriosos do meu tempo quando o meu tempo faz aniversário. Nunca me senti tão bem jogando no time dos otários.

D(eu)S

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Acho que Deus tem um bom humor danado. É a minha explicação para a zebra, o rinoceronte e o veado. O bife no ponto, o arroz com linguiça e o ovo cozido pra mim são manifestações divinas, junto com o feijão e muita calda. Estão ali ali com a bicicleta, o pão com margarina e as tirinhas da Mafalda. Ele sopra e faz cosquinha no universo, brinca de pega peca com os cometas e, até onde vejo, consegue equilibrar a vida entre o clássico e o sertanejo. Deus é textual, apaixonado, um grande romântico. Quem mais faria o oceano índico tão lindo quando o marzão atlântico? E as inspirações do Chico? E o slogan da Nyke? E o gol de placa? Por favor, alguém me diga o que é que Ele viu na barata? Deus tem um gosto exuberante, única justificativa para o elefante. Claro que Ele não inventou os vícios, isso é coisa do Vinícios. É de Sua a autoria o Gandhi, a borboleta azul e o cheiro de terra molhada. Bisteca é coisa Dele e sim Senhor. Foi criada por Ele um pouco depois da TV de 58 polegadas. Deus é humor em cada esquina (e não tem nada a ver com aquele gol de mão da Argentina). Seu amor é pleno e incondicional, até mesmo pelos hereges que não torcem pelo Internacional. Inventor de luares, Deus trata com o mesmo carinho absoluto tudo que vive, que respira e transgride. É por isso que peço que Deus nos livre dos medíocres, dos míopes da verdade. Daqueles que confundem efêmero com eternidade, tempo com idade, beleza com vaidade. Deus é escritor, tanto que antes tudo era escuro, até que veio o verbo, a palavra e o Ipad. Foi o que reabilitou a maçã em toda a Sua obra. De qualquer forma, pessoalmente não engoli Adão, Eva e aquela história da cobra. Não acredito num Deus vingança, sem perdão, sem esperança, um Deus solidão. Meu Deus é leve, breve, sorridente e acho que enquanto lia os salmos comia um bom salmão. Deus é uma piada, uma praia vazia, uma lembrança antiga, aquele pulo na lagoa, um dia à toa, uma notícia esperada, todas as chegadas, todas as partidas, um punhado de vida e um bocado de tropeções.

SOS (mas não precisa)

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Espero, mas não como em tempos atrás,  já que hoje não desespero mais. Às vezes leio Acidente em Antares, às vezes creio em olhares e escrever ainda me acalma. O que nos salva dessa falta geral de assunto, desses silêncios profundos e por que sobrevivi? Talvez porque tenha algo a falar sobre viver. Ou porque  sempre sobra viver, ou quem sabe essa seja a punição da sobrevivência: ter que lembrar a experiência, estando em sobressalto constante, já que a qualquer momento, sabe-se lá, será preciso decidir partir ou ficar.  O que aprendi de todos os  afundamentos, todos os afogados, todos os náufragos e seus naufrágios é isso: somos naus frágeis e não temos a menor chance quando traduzimos mal as múltiplas mensagens, sinais e recados das correntes submarinas. A boa notícia é que o resgate pode não vir. Podem ter achado boa ideia te abandonar ali. Muito cuidado, pode não ter sido um acidente, entende?. Então, entre as escolhas possíveis, te levar para os botes salva vidas não era realmente uma alternativa e –sei lá- sempre nesses casos, se joga fora os pesos impróprios, aqueles que estavam presos a si próprios.  Seja rápido quanto à conclusão sobre o caso ser naufrágio ou não. E comece de pronto a lidar com as criaturas das areias, os barulhos da ilha deserta, aprenda a fazer fogo, invente a roda, entenda os humores da sua natureza e –querendo voltar para o continente, esse lugar estranho e cheio de gente- enfrente o mar e suas correntezas. Saiba que ninguém suporta cartas náufragas, nem quem usa o sal marinho como  unguento. Não esqueça que sofrer não é ecológico: garrafas levam mil anos para se tornar água, tenham ou não bilhetinhos dentro. Esteja pronto para noites muito escuras e outras, melhores, de lua cheia. Perca o menor tempo possível implorando inspiração aos astros. No lugar disso, invista até a exaustão em um bom mastro, são eles que guiam os barcos, qualquer que seja a direção escolhida.  Um dia, parta. Conte com os ventos, marés, movimentos, a reunião dos deuses, o canto da sereia da tua vida, o carinho definitivo de uma torcida invisível, fé no que for possível. Reme, singre, navegue, honre os seus sete mares e enfrente aqueles nunca antes naufragados. Então, enquanto baixa e levanta velas, você vai descobrir o que te resolve, quem te envolve e te acalanta. Não se trata de voltar a sorrir,  mas de voltar a ouvir o som da tua alma marinha. Escute bem: quando a tua alma passarinha estiver pronta, é certo que ela canta. 

 

Cannes é ali

Direto do www.blues.com.br (que mostra matérias interessantes)

Depois de trazer Sir Ken Robinson no ano passado para o festival de Cannes, a Ogilvy convidou o filósofo Alain de Botton esse ano, dentro do projeto Ogilvy & Inspire. Funcionou. De Botton falou de arte, propaganda, capitalismo, sucesso e fracasso, sempre utilizando exemplos de outros pensadores, de Epicuro a Nietzche, prendendo a atençao da platéia com um discurso bem humorado e sem ajuda de nem um slide de powerpoint.

O filósofo disse que a arte, quando tem qualidade, nos recorda coisas boas – Quando você ouve Paul McCartney cantando ‘Hey Jude’, você lembra da importância de ter alguém para amar” – exemplificou. Segundo De Botton, a publicidade deveria fazer a mesma coisa. Mas nem sempre isso acontece, porque o capitalismo, na opiniao dele, falha na tarefa de atender as necessidades mais importantes das pessoas. Outro ponto abordado por De Botton foi o medo de errar – “O sofrimento faz parte do processo criativo. Nietzche odiava o álcool e o cristianismo porque achava que ambos abreviavam o sofrimento das pessoas. Se voce nao estiver preparado para falhar, nunca será bem sucedido”, ensinou à platéia.

O fim das coisas

As coisas acabam. Há, parece, um objetivo nisso, talvez a vinda de novas coisas que acabam. Jamais acreditei nas coisas que acabam e  trazem consigo novas coisas que acabam. Nisso sou um seguidor de Mikhail Lomonosov. Ele sacou que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Quem entendeu a importância da descoberta foi Lavoisier. Portanto, há quem tenha a informação e aqueles que transformam isso em conhecimento. Concordo se você disser que devo me sentir só por crer nas coisas que não acabam. Faço isso, mas com um data vênia: jamais quis lhe convencer a acreditar nas coisas que não acabam. Na maior parte do tempo e mesmo nesse exato momento, qual é o fim das coisas que acabam? Elas deixam de existir quando acabam ou se transformam, as reciclamos enquanto buscamos informações surpreendentes no Google? Outro dia vi num programa de TV que cientistas finalmente descobriram uma pírula. Não é, ainda, a da eterna juventude. Por agora apenas retarda o envelhecimento, engana as células, ilude o célebro, permite que sigamos vivos (não obrigatoriamente altivos) até uns 120 anos. Perguntaram ao Niemayer se ele tomaria a pírula da juventude eterna. Hum?, perguntou. Já não ouve bem o velho arquiteto. Tenho dúvidas se algum dia escutou alguém, teimoso que é. Sei que defendeu com unhas e dentes seu conceito de forma e função. Projetou mundo à fora obras que são uma poesia aos olhos, apesar de vocação pouca para uso diário. Arcado (mas não triste) diante da passagem que se avizinha, o bom comunista declarou que não tomaria a pírula da juventude. O que ele não disse é  mais revelador, trata-se de uma pergunta. Se as coisas acabam, ser eternamente jovem pra que? Visitamos os monumentos, as quedas d’água, as ilhas gregas, os túmulos dos faraós e as pirâmides. Vamos a Machu Pichu, andamos pelos Caminhos de Santiago, Niágara, Capela Sistina, gostamos de nos mover entre as coisas que resistem por sabemos que resistentes ou não, as coisas acabam. O fim das coisas, desde o início das coisas, é que cada coisa tem um fim. O fim das coisas que acabam talvez seja a de nos chamar atenção para o que há de perene, interminável, eterno. Um solo de fagote, um foguete que deixando o solo revela a sede de companhia que temos, tanto que procuramos vida em outros lugares. De tanto que nos sentimos sós, temerosos de detectar em nós o gem das coisas que acabam. E tremendo, tomamos drinks inusitados, fugindo do velho futuro para fingir num passado novinho em folha. Há milhares de anos, os Sufis falavam de um Deus presença, um Ser para o qual não havia distâncias. Que vivíamos em vãos da nossa própria história. Que insistíamos em existir em sótãos, fazendo a partir daquilo nossa ideia de casa. As coisas acabam por serem coisas, seu fim é dar passagem a mais coisas que acabam. Mas você não é uma reunião caótica de átomos, células, pele, osso e algum recheio. Entre o pouco que vemos e a maior parte que ignoramos, há algo no meio. Não o paraíso culpado, apostólico e romano. Não a desistência covarde dos suicidas, nem a vida conformada das manadas. É o nosso encontro com o outro, essa batucada universal de sons, luzes e danças. Não é um terremoto. É o povo sobrevivente do Haiti cantando em honra aos seus mortos. Há em ti algo que toca a canção essencial, algo que te chama sempre, uma chama que mais do que aquecer, te aproxima desse espaço que é feliz por nos ver contentes. Quando Deus disse “faça-se a luz”, Ele não falava para as coisas que acabam. Ele falava da gente.