Aprendi a falar a tua lingua entendendo os ditos que saem da minha boca. Não pelo que se traduz, mas através dos apelos que trazem. Somos nossa vida predileta, entre tantas existências possíveis de se olhar ou viver. Diante de mim, há o Atlântico nesse momento inexato que acontece entre outros tempos acessíveis. E se fosse bombeiro, pediatra, dono de padaria, astronauta ou piloto de Fórmula 1? E se ficasse numa ilha cercada de amar a única você que existe? E se fosse escritor de contos infantis, soldadinho de chumbo, voluntário da pátria? E caso você fosse pediatra, projetista de ambientes, escultora de gente, dona daquelas tabacarias cheias de aromas incríveis, gostos sem fim, temperos e especiarias?

O destino das coisas não é o que tinha que ser. Nada é o que tinha que ser. Não há uma sina, um ponto final, um somos assim e pronto, um eu sou o que sou. Abrimos portas, fechamos janelas, podemos chegar e decidir não ficar sem o nosso par em Ithaca. Permanecemos -nem sempre serenos- entre o infinito do sempre e a beleza de tudo que nos faz perenes. Família, parceiro, filhos, primos distantes, tias chatas, mãe ausente, entorno, contornos, moldes, modelos, natais frustrados, gente que não veio, filmes não vistos, livros e pedidos de casamento. Vivemos cercados de momentos e portinholas da jornada. Ali, o design, dois filhos. Aqui, pesquisadores do fundo oceânico, 4 golfinhos. Noutra, decoração interior ou comercio exterior, 6 pontes de safena, uma casa pequena e 2 gatos siameses. Em um outro real, entendimento, muro baixo, asterisco e cherie latindo e manhosos, planos, sonhos e realizações, além imperfeições da vida, desejos atendidos e férias em lugares calmos. Jogador do Inter, pesquisador de aranhas, especialista em montanhas, marinheiro, cowboy, ilustrador, fundador do Green Peace, roteirista em Amsterdã.

Diante de tantas possibilidades, desconfiamos do que nos seja novo de fato. Então, finalmente resgatados, muitos se deixarão ficar nas ilhas dos seus fantasmas conhecidos, agarrados a sequestradores ou mesmo se juntando ao bando.

Nada mais triste do que a beleza renunciada. Viver se duvidando, desabitar-se, importunar o sossego. Nada é mais assustador do que estar do lado de fora dos risos, não se saber amando. No entanto, eis um segredo terrível. Eis um aviso que deveria apavorar tudo que vive num lugar no cosmos que não lhe pertença. Muito cuidado, porque é assustadoramente possível. ***

Cartas

Li aquele chileno e lembrei de ti. Bom, eu respiro e lembro de ti. Olho agora para uma lua imensa, aqueles luões gigantes, uma noite quentinha, tem uma brisa no fundo de tudo e lembro de ti, que me parece tão longe, ainda que me visites de tantas formas.

Neruda era o poeta que te falo e veio me dizer que sou meu autor preferido, olha que lindo. Que escrevemos histórias, nos descrevemos em fatos, nos apresentamos capítulos, somos causa de nós mesmos. Causa de nós mesmos! De onde um homem tira uma boniteza dessas? É a verdade parindo o renascimento, a era da luz, não pelo fim das trevas, mas por sua integração e entendimento. Esse sujeito vem e me diz que nossos problemas são nossos, mas que se não os alimentarmos, morrerão de fome, a inanição será o destino do caos, nos colocando no centro não do cosmos, mas de nós mesmos. O Nobel comunista maneja bem as palavras, claro. Ele também retrata o amor de um modo tão… tão… bem, leia aqui em baixo, veja se isso não é coisa de alguém com mãos cheias da graça da vida e das graxas das minas chilenas.

Não te quero

Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Vejo ali nos versos (olha que ousado, analisando Neruda. Só eu mesmo) os antagonismos de quem ama, o egoísmo de quem deseja pra si, o desespero de quem sente o que sente e perde a quem pertence.

Hoje fui rude com o dia, talvez com as pessoas, verdades nem sempre são suaves, mas tive encontros bons, quase como uma lufada de vento ou uma curva bem feita antes de apontar na reta e você lá.

Tomei Toddy de manhã, batido no liquidificador, gelado, imenso, delicioso Toddy. Deu uma baita dor de cabeça e o fígado me lembrou que há 40 anos não tenho mais 20 anos. De qualquer forma, acho que o pão na chapa foi o grande responsável por isso. Imaginei como as pessoas receberiam meu bilhete de despedida da agência, tive algumas reuniões bestas e troquei abraços com bons amigos, andar sem mágoa pelo mundo é uma delícia e eu me sinto um puro sangue, ou um touro, eu nunca entendi bem a metáfora. Me sinto bem, enfim.

Entendi sonhando contigo (aconteceu ontem) que Ithaca não é um lugar, mas um destino. Não se chega a Ithaca, se vai pra lá não no enfrentamento, mas no entendimento com o mar. Talvez esse tenha sido o erro de Ulisses, rugir para ondas, cegar cíclopes, urrar para correntezas. Penelope, mais sábia, tecia o dia da chegada. Mais sábia e mais amada a ponto de ser desejo de tantos. Mas Penélope é de Ulissses, se pertencem não o pertencimento instantâneo do tempo, o da primeira vista, o instável pra sempre, ah não. Se pertencem no embalo císmico que se provocam, se pressentem, se sentem, se atraem e se amam a ponto de partirem e permanecerem abraçados no entendimento do perene, do sempre e do constante.

Ulisses

Kavafis

Se partires um dia de volta,
pede que o caminho seja longo,
rico de experiências, rico de saber.
Não temas lestrigões nem os ciclopes,
nem nunca o Posidon furibundo;
não acharás aqueles seres na tua rota,
se for alto o teu pensamento
e sutil emoção mantiveres em teu corpo e teu espírito.
Nem ciclopes, nem lestrigões,
nem o Posidon bravio acharás nunca,
se tu mesmo não os trouxeres em tua alma,
se a tua própria alma não os puser diante de ti.

Pede que o caminho seja longo!
Sejam numerosas as manhãs de verão nas quais tu,
com prazer, com felicidade,
aportes em baías nunca vistas
Demora-te em empórios da Fenícia
e compra belas mercadorias,
madrepérola e coral, e âmbar, e ébano,
perfumes deliciosos e diversos.
Quanto puderes, investe em perfumes,
voluptuosos e delicados.
Visita muitas cidades do Egito e,
com avidez, aprende dos seus sábios.

Guarda Ítaca sempre na memória.
A tua meta é lá chegar.
Mas não apresses a viagem.
Melhor é que ela dure longos anos,
e que chegues à tua ilha na velhice,
com o que tiveres ganho pela estrada,
sem esperar que Ítaca te enriqueça.

Viver te presenteou uma bela viagem.
Sem isso, não terias te aventurado.
Mas nada além ela te dará.
Mesmo que a encontres pobre, Ítaca não terá te enganado.
Rico em saber e em vida, como voltaste,
entendes, por fim, o que significa vir.