A pedra

Era criança, estudava no Grupo Escolar Jerônimo de Albuquerque, um amontoado de salas, cadeiras, quadros negros e a professora Rejane, que era apaixonada por mim mas não sabia. Ela não sabia, deixo claro. Eu tinha certeza. Afinal, era um charme, uma escultura, pura atitude. Ela, esclareço. Eu era um piazito de 9 ou 10 anos, desengonçado, um graveto que calçava Kichute e lia, lia, lia,lia. Foi então a professora (essa mania de chamar de tia nunca entendi) nos chama e séria grau 10 anuncia com pompa e cerimônia: – Vamos conhece-la amanhã

Amstrong deu um pequeno passo por ele, mas foi um enorme para a humanidade e tal. Eu fiquei pasmo. Não tanto com o fato de chegarem à Lua, explico. Mas aquele uniforme, que coisa linda, quis morar em um e poder pular desligado da gravidade, ignorante dos tumultos terráqueos, longe dos gols do Grêmio. De algum jeito, realizei o sonho: eu e Marcos Pontes, o primeiro astronauta brasileiro conquistar o espaço, temos o M em comum.

– Vamos conhece-la amanhã, nos disse Rejane. E se ela disse, iria acontecer. Afinal, era a professora e estava ao lado da Dona Lurdes, a Diretora. – Mas conhecer quem? perguntamos em coro. – Amanhã vocês saberão, nos responderam, rindo uma para a outra.

Quem dorme com uma dúvida sartreana como essa, indo e voltando feito balanço de praça? Na pracinha, na padaria, na esquininha da árvore japonesa, onde houvesse uma criança do Jerônimo, havia também uma certeza: amanhã prometia.

Pra chegar amanhã falta sempre um dia. Ou só falta um, depende como você programa seus horários. Nos meus, sempre faltava um. Aproveitei o tempo para pensar nas coisas que poderia conhecer amanhã. O mar, nossa o mar seria algo espetacular. Mas eu já conhecia o mar. Elas falaram “conhece-la”, algo no feminino. Nãaaaaaaao. Não pode ser uma nova professora. Rejane não poderia ir embora sem saber que me amava mais do que as histórias da Brigite Montford, filha de Giselle Montfort, ambas espiãs internacionais. Essa mulher salvou o mundo dezenas de vezes, em espanhol inclusive.

Mas como diria Carrigan, “baby, quando você não sabe quem é o pato num jogo de pôquer, o pato é você”. Ao entrar no ônibus fretado (ônibus fretado!!!), imaginei horas e horas de viagem onde conheceríamos nosso dest. Não deu nem para terminar a frase e chegamos. Estamos no Planetário, um lugar mágico onde se pode ver as estrelas e conhecer o espaço. E lá estava ela, a pedra. Não uma pedra qualquer. Não uma pedra de rua. Mas a pedra da Lua que Amstrong nos trouxe no bolso. Minúscula, tímida, acanhada, sob uma redoma e protegida por dois gigantes vestidos de guarda. A Pedra Lunar, penso agora. Uma pedra enluarada, conhecedora da gravidade zero e do silêncio espacial. Olhos surpresos, olhe a pedra, veja que bela, te roubo a pedra e a coloco num signo especial, junto com pedrinhas de brilhantes. Ou compraria com a pedra uma rua que sendo minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar. Seria um grande passo para a humanidade dar mais espaço pra gente se amar.

Sempre

marielNão é que eu não saiba nada sobre física quântica, a teoria das dobras no espaço-tempo, como se calcula o combustível necessário para ir e voltar a Marte ou o estudo exigido para formação do preço de um Mac Lanche Feliz. Essas coisas, definitivamente, ignoro e estão fora do meu alcance cognitivo, é fato consumado.

Pensando bem, isso não é nada diante da estupefação que todos os dias os interruptores de luz me provocam. Os sensores de presença, então, que coisa. O patinete, a forminha de gelo e aquele coisico que enche pneus de bicicleta, senhor do céu! Também fico extasiado com o puxador de portas, o sobre-lençol me emudece e acho o Código Morse, junto com a caixa de fósforos, invenções quase sobrenaturais.

Desisti de entender de aviões, navios, submarinos, carros e a engenharia de qualquer coisa que se mova sem a ajuda de dois marmanjos, o que inclui elevadores com ou sem aquela tevezinha genial que sabe como está o tempo lá fora.

Nesse momento, estou concentrado na assimilação do autofalante, da Chave Philips e do acolchoado de penas. A bola, a cama e as meias antiderrapantes são normais para você? Eu ainda estou me adaptando à fita K-7, ao telegrama e ao Orkut. Há invenções completamente fora do alcance de pessoas medianas como eu. No meu depósito de sustos encontraremos a aliança de compromisso, a Penicilina, Rick Wakeman, a escada rolante, o plástico bolha, o abridor de vinho, a campainha, o alarme e o vidro elétrico, além do cadarço, da máquina de costura e dos óculos de leitura. Os cortadores de grama, de unha e de cabelo também estarão por ali, junto com o interfone, o disk entrega e o pager.

Passei por coisas incríveis como o cheque pré-datado, a pochete, o Corel 8 e as calças de Nylon. Radiola, vitrola, 3 em 1, o controle remoto com fio e a Caloi 10 confirmam: somos insuperáveis em invenções que serão superadas por novas invenções, pré-estreias de invenções mais novas ainda. Tudo isso cabe numa gaveta.

Minha infância inteira vive no homem que sou. O jogo de bolita, carrinhos de rolimã, guerra com bolinhas de cinamomo, o Partenon Futebol de Regatas, cuja escalação era a seguinte: Gordo (porque gordo sempre vai pro gol), Falta (um zagueiro que não perdia viagem, além de ter 8 metros de altura), Aleijadinho (motivos óbvios), Chulé (pelo cheirinho em tempo integral), Nego (eu, acho que pela afro boca que tenho), Torto (estava sempre bebum), Anjinho (não falava nome feio), Felipe (era forte e não gostava que lhe dessem apelido), Vesgo (vesgo), Tarado (maluco por jogo) e Larica (tinha fome de bola). Fiz questão de dar o time completo para que você entenda que ali, ninguém sabia o que significava o regata do Partenon Futebol de Regatas. Achávamos que era um tipo de camiseta apropriada para o futebol. Nossos treinos eram na pracinha, até sermos expulsos pelos mais velhos, sem mágoas, era assim que funcionava.

Entrei num estádio de verdade mais velho, ali pelos 10 ou 11. Era um Gre-Nal, no antigo Olímpico, à noite. Jamais vou esquecer o encanto que as luzes do estádio me causaram: o time do Partenon também jogava depois que o sol ia embora. Sem luz, corríamos atrás do som da bola, até ouvirmos o som da voz das mães chamando os craques. Gooordddooo… Vesgooooo. Toooorrtooo. Havia 3 tons nessas convocações: o normal, que ninguém ligava. O ameaçador, que nos deixava atentos. E o não vem pra ver o que te acontece, que só os muito corajosos (e alguns desaparecidos) pagavam pra ver. Mariellllllll… (minha mãe jamais me chamou pelo apelido). Eu sempre voltava depois segunda e antes da última entonação.

De volta ao estádio, meu irmão mais velho era puro entusiasmo. Estava me apresentando ao Grêmio, o time pra quem ele queria que eu torcesse. Os gremistas entram em campo, a torcida vem junto, ovacionam, festejam, gritam, incentivam a equipe azul e eu ali, seguro no colo do Nel. Então começam as vaias. É ensurdecedor, amedronta, acanha qualquer um certo? Errado. O motivo de tantos apupos é o Inter, que está na boca do vestiário. Trata-se do vermelho mais lindo de todos os tempos, é um encanto, um encontro, algo grandioso se posta altivo e orgulhoso diante do adversário. Eles são enormes, entram em campo correndo, confiantes, soberanos e invencíveis. Então vão até a pequena torcida que os festeja enquanto o estádio inteiro os xinga e ameaça, mas não os enverga. Digo pro Noel algo como “vamos lá, eles precisam da gente!”. Ali, para decepção do meu anfitrião e para a glória do desporto brasileiro, nascia um torcedor do Internacional. Entretanto, é justo admitir que sinto um certo desconforto quando o Grêmio precisa ser batido. Nessas horas, meu irmão vem à mente (e ao coração) e ele ainda segura minha mão. Ainda explica que não tem como a gente ir na torcida vermelha, mas que se eu vibrasse quietinho, mesmo assim o Inter receberia minha força e que isso ajudaria o meu time a vencer. Até hoje acredito que meu comportamento influencia o Inter em campo.

O Olímpico não existe mais e a maioria das invenções que lembro foram substituídas por outras melhores ou mais novas porque essa é a sina e a senha das coisas, o esquecimento. Do Biotônico Fontoura à Inteligência Artificial, o desaparecimento é o fim de tudo e não há saída: tudo que existe para passar, no fim passará. No entanto, o que sentimos está sempre em algum lugar. No Partenon Futebol de Regatas, a camiseta 5 é a minha. Chulé estará à minha frente, Anjinho de um lado e Larica do outro.  No estádio do Grêmio, a mão firme é de Nel, que me levou ao eterno da paixão colorada. Suas luzes ainda estão lá, iluminando cada um dos torcedores na noite que seria pintada com um tricolor 3 x 0.

Não sei mais como se anda de carrinho rolimã. Mas posso sentir agora o vento risonho e as dores do joelho machucado depois de uma curva mal feita. Cada coisa que há pode ser uma ponte para cada dia que é. Podemos esquecer todas as marcas de todas as bugigangas já feitas. E vamos lembrar no sempre o primeiro peixe fisgado, o nome na lista do vestibular, o susto nos olhos do filho ao me ver, depois uma queda quase fatal e a alegria de conseguirmos superar isso. No fundo, preenchemos um instante da vida e cabe a nós decidir do que será feito o nosso tempo. Pode ser o esquecimento das coisas. Ou pode ter a fúria do fogo,a beleza da terra, a fluidez das águas e a força dos ventos.

Síntese

Tenho uma árvore de estimação. Nossa amizade foi construída entre acolhimentos e confissões silenciosas. Suas raízes aparentes formam uma espécie de poltrona natural, com vista para um lago, num grande espaço, singelamente batizado “Centro de Criatividade”. A visitava principalmente quando me afastava perigosamente de mim mesmo. Não a ponto de não me reconhecer, mas em um instante desesperante de uma luta em que estive por um triz pra perder. Nessa altura irresistível do inverno, a alma gela e tudo é parto com dor, alguma coisa se parte dentro. É o estalo seco de uma vida prestes a se transformar em partida, foi nesse momento que a encontrei. Dormi, chorei, li, olhei, me esperei, ri, fugi, aconteceu de tudo no meu tempo repleto de conversas encerradas. Minha árvore manteve alianimg_20170206_105525_processedças à salvo e quase sempre comemorei a chegada da primavera ao seu lado, às vezes triste, noutras feliz, na maioria simplesmente calado. Um dia, me despedi dela. Precisava me despedir de mim e seguir me procurando. Ficamos alguns anos longe um do outro. Dia desses, a revi. Cheguei devagar, ela é uma senhora, pode se assustar. Sentei como se nunca tivesse me levantado. Éramos outros, eu e ela. Éramos os mesmos, ela e eu. Me sorriu brisa, me abraçou vento, acalmou minhas tempestades. Penso no que Deus quis nos dizer com as árvores e sinceramente, não sei. O que posso contar é que minha tem raízes profundas, como devem ser a amizade e o amor. Faz sombra para as horas mais cansadas. É uma referência fincada no tempo, um elemento dos vendavais. Não vive no sempre, nem lamenta o jamais.

Simples

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Andar de carro é algo que me surpreende. Você parado e a 60 por hora ao mesmo tempo, não é algo? O celular me impressiona também. Pra ser sincero, o telefone é de tirar o fôlego, qualquer telefone, ainda mais se você o usa para a incrível aventura de falar com alguém. Lanterna no particular (e lâmpadas em geral, além de bicicletas especificamente) geram em mim um misto de surpresa, incredulidade e uga uga uga.

Estive no Chile, dia desses e andei no metrô deles. Citei o Chile pra me exibir, não há outra função para a frase. Já o metrô foi pra dizer que essa invenção é arrepiante, como o ônibus, a escada rolante e o arroz doce. Junte a isso o Netflix ou o Spotify e teremos um filósofo de boca aberta diante da inventividade humana.

Eu, que li “O Capital” aos 14, não entendo a bateria de lítio, a torradeira, a geladeira, a panela de pressão e o sorvete de flocos. Na lista das mil maravilhas esquecidas ainda colocaria cofres, cadeados e relógios automáticos. Para registro: palito de fósforo e a caneta BIC também me deixam besta.

O cadarço, que grande passo. Sucrilhos, óculos, clips, isqueiro, prendedor de roupa, fogo, foto, forno. O avião, senhor, como é que isso sai do chão? A buzina, o elevador, o submarino (tanto a coisa que afunda quanto o site de compras onde você, inclusive, pode adquirir um submarino), o whatsAPP, o apartamento, o Durex, o Merthiolate que não arde, a arte, o fim de tarde, o fone de ouvido (com e sem fio), o wi-fi, o carimbo e o cortador de grama.

Fico pasmo com Neosaldina, TV e banho quente. Cama, Nescau, anzol, inocência, piada, clemência, beleza, perdão. Tenho a sensação que vivo cercado de pequenos milagres, de eventos que nos mantém vivos e não vemos, como o ar. De momentos que nos escapam, surpresas como a chuva, o guarda chuva, terra molhada e saudade de gente. Tocamos o impossível todos os dias, estamos diante do imponderável mundo das escovas de dentes, somos uma raça de magos, de mágicos, inventores de viagens em dimensões onde óculos não existem para a minha tristeza, os acho o máximo.

De minha parte, fico maravilhado com tanto e com pouco. Você sabia que se somar 9 vezes na sua máquina de calcular os números 1, 2, 3,4, 5, 6, 7 e 9 o resultado é um monte de 1? Não sei de você, acho tudo muito curioso, muito misterioso, muito fantástico.

 

Sobre Viver

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Sobre o irresistível

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Admirável mundo velho

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O carteiro gritava o nome das pessoas, fulano! E andava ruas e ruas gritando nomes, crianças o cercavam. Ele andava com um maço imenso de cartas, postais, avisos, emoções escritas à mão, algumas perfumadas. Um batalhão de coisas precisa acontecer para você receber uma carta, havia um ritual a ser superado entre suas idas e vindas, o que lhe conferia graça e aura. Nada é tão especial quanto o mistério e o tempo que leva para ser descrito.
O torcedor comemorava o nome do ídolo. Fulano joga tudo! E no próximo ano, ele estaria ali, correndo pelo seu time. Não por outras cores, mas aquelas de sempre, fulano era nosso ou deles. Não se amava dois escudos, não sem enfrentar o desprezo infinito e a vaia eterna, lembrando sempre a falta cometida. Nada é tão eletrizante nem tão manipulado quanto a fidelidade coletiva.
O professor dizia “ele veio de São Paulo”. Fulano era paulista! E todos o olhavam como se a cidade ficasse do lado direito de Marte e ele próprio tivesse oito olhos. Ser de um lugar que não o nosso, o de sempre, o mesmo lugarejo, da vila de todos, era em si só uma aventura cercada de lendas, admiração e uma certa dose de mentiras. Nada é tão longe quanto o que não conhecemos.
Os amigos cochichavam “fulano tem um Kichute”. Fulano é rico! E todos ficavam alucinados com as voltas imensas que o cadarço exigia, as travas de segurança no solado, a cor preta do produto e o sorriso vencedor do seu proprietário. Não chuteiras de várias cores, nem marcas piscantes em neon, não. Um Kichute era um marco social. Nada como a ignorância para manter certas inocências.
Todos comentavam que os fulanos estavam separados. E já não haveria lugar na igreja para ele e – principalmente – para ela. Ser divorciado era ser transformado em uma pessoa-bomba, um monstro do lago, o Sacy Pererê, um perigo para lares bem formados. E os filhos, a família, tudo desapareceria no inferno para onde Deus nos mandaria em caso de separação.  Nada como moral e bons costumes para comemorar bodas de infelicidade.
Quando penso no passado, lembro de praças com campinhos de futebol, ninguém praticava outra coisa. Recordo telegramas (uma espécie de Twitter impresso). Revivo, mas não o quero de volta, mesmo remodelado feito o New Beatle. Estive lá, vivi o melhor que pude, me transformei no que existo hoje. Olho pra trás e cumprimento o caminhante que fui e a coragem com que foi em direção a si mesmo. Entre a chegada há tanto tempo e a partida sem tempo definido (mesmo depois do susto), há o espaço do meio. Intenso, imenso, cheio. Nada como o amor do sempre para nos guiar entre o ser e o estar.