Resignificar

Acontece um instante antes do gol ou da pancada. É um freame, um instante frisado, um cron, a unidade indivisível do tempo.

Naquele micromomento, o que antecede a fissão, o impacto e a implosão, se coloca o totalmente nada em movimento. Dizem que só sob dores ou prazeres muito intensos se pode não sentir e tornar-se o todo antes de tudo, unir-se o rentzo, partir-se em quantuns e elementos ainda menores.

Você não escuta realmente. Não prova de fato. Não percebe os aromas. Não toca de verdade e, acima de tudo, não vê.

Está tudo suspenso, nem calma nem caos, talvez latidos longos em dimensões distantes, olhares caninos do que seria asterisco.

Acontece um instante antes da batida seca que ressignifica e reassenta a realidade, se fazendo do feliz o infelizmente. É o momento cron, a unidade de tempo que mora no sempre

Antes que o tempo feche

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Não espero a esperança, nada peço a ela. Apenas me desfaço, me despeço e amanheço o que for possível. Lanço luzes nas manhãs rotineiras, falo alto para quietudes acomodadas, desalojo processos, destranco ruas, liberto risos, entardeço, aqueço jardins de inverno. Há quem se incomode e lance aqueles olhares afetados. Foram tantos vida à fora que me habituei aos rituais de expulsão dos clubes dos quais nunca fiz parte. Sou da tarde, da pipa, da revista, da mão dada, tenho o corpo fechado pela risada, habitado por uma alma enluarada, meu tempo é o sempre. Nem mais, nem menos, comparações são pobres, rasas, tristes. Ah, porque o PT. Ah, porque a Xuxa, ah a imprensa golpista. Ah, vai ter copa. Ah, não vai ter. Ah, o BBB. Ah, aumentou meu número de seguidores. Ah, diminuiu o de expectadores. Ah, não tem mais jeito. Ah, essa é a única forma. Ah, homem não presta. Ah, nunca antes na história desse País. Ah, mulher não sabe ser feliz. Todos os dias, me nego a um comportamento desumano, porque em algum lugar, lá no fundo, é o que somos. Nosso tempo é curto, turvo, pequeno, quase não vemos, praticamente não tocamos, é muito pouco o que dá pra ouvir, pessoalmente, não tenho espaço para mi mi mi, pra despedidas, para barracos de qualquer tamanho, para certezas totais, para gestos imperdoáveis ou indelicadezas brutais. Nos somos geniais nos abraços trocados, quando nos tocamos, quando nos transformamos em espaço de conversa e conversa em entendimento. Quando não nos temos em alta conta, quero ver qual alma não fica tonta depois de brincar no grande rio das amizades, aquelas de verdade, as que valem cada passo em sua direção. Quero ouvir você, não seu personagem, eu quero ver a paisagem na paisagem, não no cartão postal. Esteja de braços abertos e um pouco menos atento, deixe passar, siga, aposte pelo prazer da adivinhação, não sinta tanto, sinta muito, não se apresse, não desperdice os elementos. Esteja pronto para desfazer ou fazer as malas. Dê presentes. Permita ausências. Em tempos de paz, por que precisaríamos de heróis da resistência? Caminhar juntos, não obrigados, mas abrigados no conjunto que nossa crença é capaz de formar. O vizinho chato, o primo que gosta de sertanejo, todos os torcedores do Grêmio, os donos de chevetes rebaixados dirigidos por gente de boné, a tua mulher, o teu homem, os filhos, o Brasil. São estes que precisam do nosso acolhimento, compreensão e todas aquelas frases bonitas que colocamos entre aspas no Face. Ou então será em vão  toda solidariedade à África, aos desesperados da Síria, aos desesperançados do Haiti, aos esfomeados da Somália, aos solitários dos desertos, aos angustiados da Argentina, aos esquecidos da Bolívia, aos invadidos das Malvinas, às focas da Antártica, às árvores da Amazônia, às tartarugas do Himalaia, aos japoneses do Taiti. Fomos capazes de espalhar o desastre que somos mundo à fora e vida à dentro. Teremos que ser vorazes em replantar esperanças e competentes para destruir o ego sistema que nos parecia tão inofensivo, tão desafiador e tão amigável. Deu no que deu. Agora é olhar no espelho, encarar os responsáveis e nos perdoar pelos corações partidos e pelo tempo perdido. Será bom e difícil. Mas o ruim e fácil a gente já tentou.

Palavras de lua cheia

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Essa mania escrita, a palavra dita um terno falar sobre o eterno que passa, isso me acalma enquanto desoriento as palavras. Penso um tanto nos tantos desencontros e nos desencantos que trazem consigo. Há dias esperando um bilhete, há horas aguardando mensagens, anos de aguardente, anos de guardanapos, bilhetes pra si mesmo, flores em seu nome, lembretes. Essa mania de manter a palavra alerta, o verbo atendo, a espinha reta, um treino cotidiano de não curvar-se, isso ainda me acorda toda noite, o peito ensopado, o coração ofegante, são palavras não ditas, engasgadas, impedem a passagem do ar, entopem as veias, o coração bate mas estranha a cadência, bate outra vez, tudo está por um triz, um por cento, um aprendiz, uma cena feliz, um beijo, um gol do inter, o encontro das coisas, a resposta do amor, o mar da tranquilidade lunar, a lida que tudo é lavra, o peito aberto, a lua, a terra, a vida e suas palavras.