Sempre será uma escolha

O inaceitável é como chegar na fronteira de um país. A não ser que você seja o Brasil, não dá para ir entrando, como se aquele lugar fosse seu. Não funciona assim. Você precisa ser aceito. É essencial ser bem-vindo. Isso inclui existir. Documentos são verificados. Os motivos daquela viagem também. Coisas são ditas. Melhor não tentar entrar com 2 quilos de maconha no bolso. Nem pense em levar um pacotinho de Maizena na bagagem, você vai ser impedido de entrar. Não por tráfico, mas por transporte ilegal de piada ruim. Em alguns lugares, a falta de passaporte é inaceitável, você volta. 

A questão, claro, não se limita a visitas ao estrangeiro. O aceitável e o inaceitável têm uma flexibilidade impressionante. Aceitar, às vezes, é uma questão de compreensão da diversidade ou mudanças de valores, a impossibilidade reinante em determinadas situações. Não aceitar, às vezes, é impedir que a mesmíssima diversidade obrigue a pessoa a se comportar contrariando seus valores essenciais. 

No limite, deixar para dizer não na cerimônia de casamento é inaceitável. Mas se isso aconteceu porque a pessoa, a um instante do sim, olhou para alguém e se apaixonou? Eu disse que era no limite, não que se tratava de um acontecimento real. Mas e se fosse, aquele sincero e verdadeiro não o que seria? Aceitável? Inaceitável? Mas é a verdade, quem sabe. Mas era um casamento. Você define. Quando o inaceitável se torna um peso? Em que momento não é mais aceitável o que aceitávamos até ali?

Desconfio que a resposta seja “quando deixamos de aceitar que nossos desejos são algo que nos define. É quando passamos a aceitar menos do que é preciso para a gente ser e estar ok por dentro”.  Salários, relações, coisas, objetos, tratamentos, situações, tudo pode ser a) aceitável ou b) inaceitável. Não há gradiencia, não existe o mais ou menos. Ou é mais ou é menos. Ambos podem ser a) aceitáveis b) inaceitáveis. Lembrei de uma música muito muito, triste, eternizada pela Elis. Uma parte da canção diz algo que agarra o ouvinte pela alma, arranha e dói

A barra do amor é que ele é meio ermo
A barra da morte é que ela não tem meio-termo

Continuo e digo que muita coisa pode ser inaceitável, inclusive na saúde. Depois de um acontecimento tipo ou vai ou fica, tive medo de quase tudo. Caminhar era assustador. Subir uma escada, que suplício interminável. Conclusão de alguns momentos: talvez viver não tivesse sido a melhor decisão. Mas aquilo tornou-se uma situação, era preciso fazer algo, afinal eu havia dispensado a conversa derradeira com o maioral. Quando meu médico disse que a recuperação iria demorar um ano inteiro, achei aquilo inaceitável. E tratei de ficar bom. Bem, o processo  de me tornar eu mesmo outra vez demorou 2 anos e meio. Moral dessa história: o inaceitável tem que ser combinado com a realidade, que se impõe, aceitável ou não. 

O ponto aqui é que aceitamos de bom grado o inaceitável como um atributo da gestão existencial. Acontece que saber disso não torna aceitáveis as centenas de coisas que estão em nosso catálogo com o carimbo de não aceitáveis. Se você permanece aceitando o inaceitável, algo sussurra no ouvido da tua alma. E se você não ouve, o corpo explica a situação de um jeito que você entenda. A saudade, a distância, a falta, o excesso, o amor, a amizade, o trabalho, a espera. Para tudo existe uma medida que é sua, nem bom nem ruim. Apenas sua. Nem melhor nem pior do que ninguém. Simplesmente você e seus aceitáveis limites e inaceitáveis rompimentos com eles. Seus aceitáveis desejos e sonhos e os inaceitáveis boicotes a eles. Você escolhendo aceitavelmente você mesmo. Ou você que deixa de existir por doença, tristeza, saudade, amores, pessoas. É inaceitável não estar plenamente feliz, quando isso é possível. ***