Todo marujo que se preza sabe que não se reza por terra à vista. Corsários ou capitães da esquadra inglesa têm um inimigo comum: a vontade de aportar, lançar cordas, ancorar. Pra eles, voltar pra casa é alto mar, portos são um desvio. Um lobo do mar não se forma em águas rasas, precisa conhecer a força dos repuxos, os humores das correntes submarinas, a mistura perigosa entre sol e sal, a imensidão oceânica e a impressionante falta de esquinas. Um bom marinheiro não espera que suas viagens sejam feitas de sonhos, vento sempre à favor e primaveras azuladas. São inevitáveis as cicatrizes, as tempestades, a inspiração de sagres e as lutas inesquecíveis com os deuses de todos os mares. Só então, depois de rufados os tambores, Tufão separa entre os lutadores os melhores. É assim que os deixa singrar suas dores e contar histórias sobre tesouros escondidos em ilhas inacessíveis aos conformados de água doce. Nenhuma sorte aos resignados, aos sepultados em si mesmos, aos que vivem à esmo do que sentem. Abandonados, náufragos, solitários, renegados, perdedores, esquecidos, perdidos, ressentidos, sem pátria, exilados, enganados, estejam certos quanto aos mapas, rotas, guias e todo tipo de instrumento disponível à navegação. Serão imprecisos, mas fundamentais. Farão surgir histórias de conquistas e aventuras, ventos e vendavais. Soltar amarras, içar velas, enfrentar o medo e deixar o cais. Lá vamos nós, tripulação improvável de um tempo formidável, capaz de enfrentar os elementos, os transformando em um tremendo instante, transatlânticos sonhos, plenos de descobertas, muito além das ilhas desertas, um lugar nosso, nele não seremos intrusos. Enquanto ele não chega, homens, aos mar. Homens, ao mar, marujos.
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SOS (mas não precisa)
Espero, mas não como em tempos atrás, já que hoje não desespero mais. Às vezes leio Acidente em Antares, às vezes creio em olhares e escrever ainda me acalma. O que nos salva dessa falta geral de assunto, desses silêncios profundos e por que sobrevivi? Talvez porque tenha algo a falar sobre viver. Ou porque sempre sobra viver, ou quem sabe essa seja a punição da sobrevivência: ter que lembrar a experiência, estando em sobressalto constante, já que a qualquer momento, sabe-se lá, será preciso decidir partir ou ficar. O que aprendi de todos os afundamentos, todos os afogados, todos os náufragos e seus naufrágios é isso: somos naus frágeis e não temos a menor chance quando traduzimos mal as múltiplas mensagens, sinais e recados das correntes submarinas. A boa notícia é que o resgate pode não vir. Podem ter achado boa ideia te abandonar ali. Muito cuidado, pode não ter sido um acidente, entende?. Então, entre as escolhas possíveis, te levar para os botes salva vidas não era realmente uma alternativa e –sei lá- sempre nesses casos, se joga fora os pesos impróprios, aqueles que estavam presos a si próprios. Seja rápido quanto à conclusão sobre o caso ser naufrágio ou não. E comece de pronto a lidar com as criaturas das areias, os barulhos da ilha deserta, aprenda a fazer fogo, invente a roda, entenda os humores da sua natureza e –querendo voltar para o continente, esse lugar estranho e cheio de gente- enfrente o mar e suas correntezas. Saiba que ninguém suporta cartas náufragas, nem quem usa o sal marinho como unguento. Não esqueça que sofrer não é ecológico: garrafas levam mil anos para se tornar água, tenham ou não bilhetinhos dentro. Esteja pronto para noites muito escuras e outras, melhores, de lua cheia. Perca o menor tempo possível implorando inspiração aos astros. No lugar disso, invista até a exaustão em um bom mastro, são eles que guiam os barcos, qualquer que seja a direção escolhida. Um dia, parta. Conte com os ventos, marés, movimentos, a reunião dos deuses, o canto da sereia da tua vida, o carinho definitivo de uma torcida invisível, fé no que for possível. Reme, singre, navegue, honre os seus sete mares e enfrente aqueles nunca antes naufragados. Então, enquanto baixa e levanta velas, você vai descobrir o que te resolve, quem te envolve e te acalanta. Não se trata de voltar a sorrir, mas de voltar a ouvir o som da tua alma marinha. Escute bem: quando a tua alma passarinha estiver pronta, é certo que ela canta.