Deus tem eu no meio

Fica boa sob tela: você é um unicórnio

Começou não sei bem como. Esqueci, tinha uns 3 minutos de vida, talvez menos. Não sou muito bom com lembranças. Mas penso aqui que o útero foi um lugar legal, porque gosto de espaços pequenos e quentinhos, falam muito isso dos ventres maternos. Depois, estava sozinho ali naquela água morninha e boa, dizem que é assim. O senso de observação e um certo gosto por estar à sós comigo mesmo veio depois. Talvez porque me esgueirava pelo bairro, evitando turmas. Talvez porque me escondesse em casa, ficando longe da confusão com 5 irmãos mais velhos. Embaixo da cama, então era bom. Na árvore japonesa, bem bom. Na escola, era o magrinho que gostava de correr e tinha o cabelo cortado tipo milico, o que me deixava parecido com um galho com topete. Dificilmente você é convidado para festanças com essas características. Minha primeira namorada foi a Juçara, assim, com ç. Depois descobri que a recíproca não era verdadeira. Era a minha namorada e de quem mais tivesse a habilidade de levá-la ao Cine Regente aos domingos. Quem soubesse respirar saberia também levantar os R$ 0,50 do ingresso. Juçara, Juçara. 

Não falo tudo isso porque tenha alguma conta a ajustar com o passado. Tenho, mas não se trata disso aqui. É mais para entender que fiz teatro (não exatamente fiz e não exatamente teatro, era mais um jeito de não estar nas coisas). Que me tornei um especialista em não falar e um doido para saber das pessoas. Me tornei um escutador de primeira, não por bondade ou outra virtude qualquer, mas por desejo de ser aceito. Eu aprendia os outros. Captava os sinais, um movimento minúsculo aqui, outro maiúsculo ali, os olhares, as senhas escondidas em palavras comuns, intensões e formatos de rosto. Persigo até hoje os roteiristas, tentando entender o que ele apronta antes dos personagens agirem. Se aquilo se torna fácil, perco o interesse. Mas se na última cena eu entendo que o garoto que vê gente morta estava o tempo todo falando com um morto, fico brigando comigo por não ter antecipado o truque. 

Quem não me conhece e me vê dirigindo, falando, conhecendo gente, comandando equipes, formando times, orientando pessoas ou sendo direcionado na criação de algo, não entenderá minha expansividade. E só os próximos entenderão que não se trata, exatamente, de alguém extremamente no centro do palco. Foi você quem entendeu que o centro do palco é o lugar do personagem, não do ator. Isso não me faz bom ou mal, melhor ou pior do que alguém outro. Não são menos verdadeiros os elogios ou insinceras as críticas. Afetos não finjo. O interesse é real, a ilusão é me imaginar liberado, fácil, compreensivo e são em tempo integral. É o contrário. Sou mega travado, complexo e em luta constante com as loucuras que assisto. Não é só divertido, mas é só. O que tento te contar é que não sei me contar direito, descrevo o que sou e o que subscrevo o que vejo. Me esqueço, me aqueço, estar é um zig zag entre o feliz e o padeço. O que conto é que contas em mim, adições diversas, somas totais, pouca diminuição, muito extrato, muito suco, muita goiaba enclausurada, muito infinito em fresta, muita festa em minutos, muitos assuntos, muita conversa, ser e não ser é a nossa questão, mas não do jeito que o escritor inglês pensou. Nunca é do jeito que os escritores pensam. Para escrever, penso, é precioso entender que no momento em que digo, é outra coisa no teu ouvido. Somos estranhos o tempo todo, portando, mutantes, amantes, silentes, vacilantes, humanos e às vezes você me põe louco. Ao mesmo tempo, a distância se torna um caminhar manco e quero te dizer que o Inter ganhou do Flamengo. Se estamos longe? Estamos longe de não nos amar. *** 8 deitado.

 

Mais ou menos

Para surpresa de zero pessoas, gosto do Fernando, o poeta de mil nomes. Acho “Destino” uma das suas obras mais ai meu Deus, que lindo. Dentro desse poema, a frase que aponta a realidade como algo que “é sempre mais ou menos do que nós queremos” é um pé no queixo. Parece óbvia, vista a olho nu, mas é uma armadilha semântica. É que no português brazuca “mais ou menos” é tipo dá pro gasto, meia boca, um defeito a mais e seria impróprio para consumo humano. Mas colocando uma lupa no mais ou menos do Pessoa, penso que tem a ver com imprecisão, coisa que não é coisa nem outra coisa, um real quântico, está e não está, vive entre duas possibilidades, mais ou menos. Mais, afoga. Menos, não sacia a sede. 

Escrito por Ricardo Reis, Destino é um tratado delicioso, que poderia ser servido em pratos de diversos banquetes filosóficos. Ver de longe a vida, não a interrogar por saber que ela nada tem a dizer. Afinal, respostas estão além dos deuses. Mais um pé no queixo, nocaute certo. Ainda tonto com golpes tão precisos de filosofia aplicada, a derradeira constatação se aproxima. Ele nos aconselha a “imitar o olimpo” em nossos corações. Não nos convida para ir lá, não somos deuses. Não diz para construir um, não temos o poder. Imite, é o máximo que pede. Foque na excelência do olimpo e tente algo semelhante a isso no seu coração. Então, talvez, a gente perceba que deuses não se pensam, apenas são.

Tenho andado no mais ou menos de Pessoa. É uma capoeira, não sei se é uma dança que luta ou uma luta que dança. Dias fora de foco são mais longos, talvez. Ou quem sabe a realidade seja mesmo algo mais ou menos. Juro que vi coisa diferente. Juro que acho que ela pode ser criada. ***