Somos nós os nós

É preciso uma coragem, eis o nosso tempo e sua respectiva exigência. Coragem para não congelar os sentidos, cegando os olhos para as traças sociais. Somos nós, reconhece? Estamos um pouco ali, no sinal de trânsito, dormindo na rua, vivendo num tempo com templos demais e parco de fé que remova as montanhas de desigualdades que ignoramos, como se não fôssemos um tanto autores disso. Somos.

É preciso coragem de assumir nossa obra, rasgá-la ao meio, jogá-la no rio, desova-la nas covas dos lugares comuns das conclusões com vista para a superficialidade. Uma vez vc me pediu para apontar um país onde o socialismo deu certo. Me pergunto onde o capitalismo deu. Imagino que os dois sistemas fracassaram por serem assinados por gente sem gente por dentro e é preciso muito disso para não resumir os dias em 24 horas de direita ou esquerda, ambas uma opinião parcial da jornada. 

Não me chame de isento, não sou. Nem de centro, onde não estou. As nossas posições políticas ajudam pouco quem está com um cartaz na mão, pedindo comida. Não deveria ser aceita como sociedade um grupo que apresenta conceitos como novo normal, que discute se a Anita deve ou não dar aula em Harvard, que problematiza as faixas de segurança (é preto no branco ou branco no preto?), que põe fogo em índio, que assiste MMA, que fotografa tudo, que cancela, que lacra, que considera votar no Bolsonaro para se livrar do Lula, depois elegemos o Lula para sumir com o Bolsonaro. Enquanto tudo isso acontece permitimos milícias, deixamos a Amazônia ardendo em brasa, definimos qual é o melhor técnico para o Flamengo, aceitamos o mais ou menos e vamos ter aula de excelência. 

Somos nós e lá fora é espelho, um reflexo nosso, essa coisa, esse troço com traços evidentes de troça. Somos nós e as certezas absolutas que acompanham a tropa. Estamos de turma, regamos a morte, negamos a vida e nosso perfume é da Adidas. 

A boa notícia é que há sempre uma brecha, um descuido e um abraço surge entre amigos. Alguém desce do carro e oferece um par de meias. A Teto constrói 20 casas. Um senhor pede desculpas. Um garoto aceita. Surgem podcasts interessantes e a inteligência ressuscita. Entre montanhas de livros de auto ajuda, aparece um Tudo é Rio, o frio passa, o homem com o cartaz pedindo ajuda recebe algo. É ajuda. Resolve? Não resolve, mas ajuda. Acaba com a fome? Não acaba, mas ajuda. A violência é uma escolha. É hora de furar a bolha, agir em nós, arrumar a cama de manhã. E se levarmos um pãozinho extra para ofertar à fome alheia? Resolve nada, mas ali, naquela hora, para aquela pessoa, naquele instante e naquela fome fará. Depois, votar bem. Depois, agir bem. Depois compartilhar o possível. Mas agora, por agora, nessa hora aqui, um pãozinho não é nada, só um início. ***