Habite-se

A foto é do Helmut Jungclaus, um alemão bom de click. Me chamou atenção a linda janela azul, o que sugere que as portas talvez também possam ser. Os prendedores (duas caras de homenzinhos) impedem movimentos mais bruscos em caso de vento, uma providência essencial. Quando criança, era comum ver os “soldadinhos de persianas”, condenados a impedir com suas cabeças fortes e corpos inexistentes que algo de movimentasse, se tornando parte da testa de alguém. Acontece que abaixávamos os tais soldados justamente com esse intuito, até que um acertou o Guto em pleno ato de sabotagem. O galo levantou na hora e o cinto cantou depois. Agora, vejo janelas e portas e aprendi que certas casas são indestrutíveis justamente porque vivem em estado permanente de construção. Ganham vida, alaridos, chás, muitos sussurros, pão quentinho, carinho, segredos, arestas, toques, encaixes, bichinhos, ruídos, sotãos, porões, quintais, estalos, cantinhos, visitas, amigos, solavancos, estações e com elas o tempo. Se ainda assim forem casas, se o caminhar assimétrico da existência permanecer, receberão almas que se amam, afestos, gestos e todo tipo de carinho. Foi essa a canção que ouvi, a do amor casa. Abre a porta, deixa a cortina esvoaçante, está tudo no lugar.

Antes que o tempo feche

Imagem

Não espero a esperança, nada peço a ela. Apenas me desfaço, me despeço e amanheço o que for possível. Lanço luzes nas manhãs rotineiras, falo alto para quietudes acomodadas, desalojo processos, destranco ruas, liberto risos, entardeço, aqueço jardins de inverno. Há quem se incomode e lance aqueles olhares afetados. Foram tantos vida à fora que me habituei aos rituais de expulsão dos clubes dos quais nunca fiz parte. Sou da tarde, da pipa, da revista, da mão dada, tenho o corpo fechado pela risada, habitado por uma alma enluarada, meu tempo é o sempre. Nem mais, nem menos, comparações são pobres, rasas, tristes. Ah, porque o PT. Ah, porque a Xuxa, ah a imprensa golpista. Ah, vai ter copa. Ah, não vai ter. Ah, o BBB. Ah, aumentou meu número de seguidores. Ah, diminuiu o de expectadores. Ah, não tem mais jeito. Ah, essa é a única forma. Ah, homem não presta. Ah, nunca antes na história desse País. Ah, mulher não sabe ser feliz. Todos os dias, me nego a um comportamento desumano, porque em algum lugar, lá no fundo, é o que somos. Nosso tempo é curto, turvo, pequeno, quase não vemos, praticamente não tocamos, é muito pouco o que dá pra ouvir, pessoalmente, não tenho espaço para mi mi mi, pra despedidas, para barracos de qualquer tamanho, para certezas totais, para gestos imperdoáveis ou indelicadezas brutais. Nos somos geniais nos abraços trocados, quando nos tocamos, quando nos transformamos em espaço de conversa e conversa em entendimento. Quando não nos temos em alta conta, quero ver qual alma não fica tonta depois de brincar no grande rio das amizades, aquelas de verdade, as que valem cada passo em sua direção. Quero ouvir você, não seu personagem, eu quero ver a paisagem na paisagem, não no cartão postal. Esteja de braços abertos e um pouco menos atento, deixe passar, siga, aposte pelo prazer da adivinhação, não sinta tanto, sinta muito, não se apresse, não desperdice os elementos. Esteja pronto para desfazer ou fazer as malas. Dê presentes. Permita ausências. Em tempos de paz, por que precisaríamos de heróis da resistência? Caminhar juntos, não obrigados, mas abrigados no conjunto que nossa crença é capaz de formar. O vizinho chato, o primo que gosta de sertanejo, todos os torcedores do Grêmio, os donos de chevetes rebaixados dirigidos por gente de boné, a tua mulher, o teu homem, os filhos, o Brasil. São estes que precisam do nosso acolhimento, compreensão e todas aquelas frases bonitas que colocamos entre aspas no Face. Ou então será em vão  toda solidariedade à África, aos desesperados da Síria, aos desesperançados do Haiti, aos esfomeados da Somália, aos solitários dos desertos, aos angustiados da Argentina, aos esquecidos da Bolívia, aos invadidos das Malvinas, às focas da Antártica, às árvores da Amazônia, às tartarugas do Himalaia, aos japoneses do Taiti. Fomos capazes de espalhar o desastre que somos mundo à fora e vida à dentro. Teremos que ser vorazes em replantar esperanças e competentes para destruir o ego sistema que nos parecia tão inofensivo, tão desafiador e tão amigável. Deu no que deu. Agora é olhar no espelho, encarar os responsáveis e nos perdoar pelos corações partidos e pelo tempo perdido. Será bom e difícil. Mas o ruim e fácil a gente já tentou.

O vale tudo não vale nada

ImagemEles tinham um ensinamento, um valor, um conhecimento pra passar. Ou – vá lá – pelo menos o Bruce Lee era bonitinho. Sou do tempo do Ted Boy Marino, entendo que ninguém saiba do que estou falando, já que se trata de alguém dos anos 70, época onde tudo foi inventado. Eu devo ser o último representante vivo (ou que ainda sabe o próprio nome) da safra de 59. Ted Boy era o queridinho do Brasil, um astro da Luta Livre, morreu há um tempo e chegou a fazer parte do elenco de apoio dos Trapalhões, quando eram engraçados. Meu filho me cutuca e diz que ninguém tem ideia do que falo. Pergunto se ele acha que não vão se lembrar de quando Os Trapalhões foram engraçados. Ele me diz que não vão se lembrar dos Trapalhões, que devo ser o único que viu e que achou graça naquilo. Bom, eu acho graça em programa religioso, mas isso é história pra outro dia. Às vezes, não falar é consentir e não quero flertar com a estupidez: podemos nos apaixonar, ter filhos, presidir o Brasil, enfim, é um perigo.

Que dois homens fortes troquem socos até que um caia ensanguentado no chão, ok, vivemos tempos difíceis. Que se ofendam antes, morram depois e sejam uma aberração durante, isso é problema deles. Que façam cara de mau um pro outro, como se ninguém soubesse que se trata de representação de atores ruins, isso é do jogo, um jogo de cenas ruins, tristes, sem significado e que apenas comprova a nossa imensa capacidade de produzir idiotices. Que no final de tudo ainda se abracem suados, exaustos, feridos, deformados, transtornados, transformados em bichos, tudo isso é com eles. Por que não homens contra tigres? Por que não anões bezuntados contra os gaviões da fiel? Por que petistas contra os juízes do supremo ou uma luta entre irmãos siameses? E eu, que achava que a mulher barbuda era o máximo que chegaríamos, percebo que nossa sede de circo é infindável e que além de um gosto pelo mal, temos um imenso mau gosto. Porque ninguém sai inteiro daquilo, nem lutadores nem plateia, nem juízes e médicos, estes uma ironia neste tipo de evento. E no entanto, o Galvão os chama de “Os Gladiadores do 3º Milênio”, eles dão entrevistas dizendo que são profissionais, que lutam em honra da família, dos filhos e dos amigos, fazem sinais orientais que pretensamente indicam reverência ou humildade diante daquilo que seria um local sagrado, mas que na verdade é um ringue que recebe dois caras que trocam sopapos por dinheiro.

Querem proibir a transmissão dessas lutas. Eu sou contra qualquer interferência do legislativo, do executivo ou do Anderson Silva no meu controle remoto: deu um trabalho danado aprender a lidar com ele, então não se preocupem que a gente sabe trocar de canal. Por outro lado, não sou contra a proibição das lutas em si. Elas nada ensinam, nada acrescentam e nada são a não ser rinhas de galos sem galos. Não fosse pouco, ainda têm a desvantagem de ouvirmos um sujeito com o olho pendurado, um pedaço do fígado aparecendo e sem uma das narinas dizendo que deu “o melhor de si, urrruuú Ezequiel, eu te falei!”. E agora, preenchendo a cota de empreendedores da porrada, nossos lutadores mais velhos estão voltando dos Estados Unidos. Falam um inglês engraçado, um português medonho e uma língua que todo mundo entende: dinheiro. A nível de brasil, eles querem difundir o esporte, assim enquanto MMA, uma proposta de integração, entende, assim, essa coisa tipo entende, certo? Eles querem ensinar MMA para crianças para que elas cresçam saudáveis,aprendendo todos os profundos ensinamentos desse esporte, como a ética do supercílio arrebentado com o cotovelo ou a moral de não bater no amiguinho  se ele estiver morto.  Por mim, não. Preciso que os pequenos lembrem das coisas, saibam quem são e entendam a vida como a expressão maior do entendimento, do amor e da conversa como ponte entre diferenças. Quem ganha a vida na pancada termina obrigatoriamente como o Ted Boy Marino: alguém que ninguém sabe quem foi.