O corte e a costura

Gosto de pensar que tenho uma alma costureira e já explico os motivos. Sou péssimo com roupas, mas acredito que há uma função social nisso: quando chego em algum lugar, as pessoas comentam umas com as outras o tênis azul, a camiseta larga, a meia combinando com os óculos, as luvas de ciclismo, o combo todo. Elas se olham, trocando certezas com os olhares trocados, até que chegam a um consenso: bermudas (e seus portadores) só mereçam respeito em ambientes solares, o que está longe de ser o caso de Curitiba, onde eu moro, apesar do Moro. Mas depois de uma certa tensão e atenção mais focadas, passados alguns cochichos, tudo se torna invisível e todos voltam atenção plena à polêmica da hora.
 
Onde minha alma costureira entra nisso? É que acredito que textos podem cerzir defeitos, puindo aquelas imperfeições vindas do atrito da gente com a vida. Minha escrivaninha é feita de uma antiga Vigorelli, uma marca que ganhou certa fama no mundo do corte e da costura. Assim que a encontrei, soube o que fazer. Primeiro, um bom banho, depois muitas mãos de pintura até chegar à cor chocolate de hoje. Finalmente um bom selante, além de generosas porções de óleo em suas juntas e encaixes. Achei um tampo de vidro perfeito e muitas lavações depois nasceu minha mesa de trabalho. Todo o mecanismo funciona, de modo que escrevo movimentando o pedal, como quem costura, tuc, tuc, tuc, tuc.

Tenho boas lembranças costureiras. Posso ver agora dona Lúcia concentrada em sua Singer (a motor). Do nada, bainhas. Calções. Meias refeitas. Vestidos renascidos. Toalhas, panos de prato, arremates cirúrgicos, delicadezas em linhas desenhadas no linho. A troca rápida dos fios, a precisão nos movimentos das mãos, os panos em desalinho ganhavam alma, um time inteiro do mundialmente famoso Partenon Corinthians Porto Alegre passou ali, do número 1 ao 22 cuidadosamente chuleado nas costas. Performances em formaturas, uniformes escolares e divisas militares, arremates escoteiros, botões reencarnados em seus antigos lugares, braguilhas reformadas, brasões refeitos, havia uma saída para o que houvesse de rasgado, moído, manchado ou vivido. E não havia exclusividade familiar. Bastava que um primo, um amigo, um boêmio, cães em geral ou cortinas em particular precisassem de alinhamentos em retas e zig-zags, lá estava ela, fosse qual fosse a espécie de fazenda, tudo estaria a seu tempo muito bem costurado, pronto pra ser usado ou vestido.

Talvez seja por isso que não me atreva a ficções. Só escrevo o que pode ser descrito. Bordo com um tanto de imaginação e ritmo tudo o que já vi ou vivi, sinto ou senti. Não invento personagens, situações ou épocas. Me importa cada acontecimento vivo, cada sentimento alinhavado, cada pessoa e seus milagres e sobre como cada viver é tecido.

Talvez escreva como costure, tuc, tuc, tuc, tuc. Talvez eu construa pontos mágicos, transformando asteriscos em sinais milagrosos de vindas desejadas. O silêncio tem um caimento defeituoso, às vezes. Ele pode retirar o viço e desbotar o que deveria ter a alegria do encontro, suave e à vontade como num moletom. A ausência traz o viés da falta, quando textos e costuras mantém seu vinco justo pelo esforço da presença. Amar é um molde para palavras e panos. Une fios, aquece almas, estampa cores em tudo que vivendo, tenho escrito e escrevendo, visto. Uma boa costureira sabe como fazer isso.
 

Minha asa, minha vida

mariel fernandes.construção.reflexão.filosofias.voar.parte

O avião está caindo, mas a paisagem é maravilhosa

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Silêncio, alguns dos nossos se perderam.  Estavam aqui agora mesmo, falavam nossa lingua, riam conosco de piadas que entendíamos, compreendíamos gestos comuns e éramos tantos, todos, um. Silêncio, vivemos um tempo noturno. Nós, que já enfrentamos coturnos e fardas altas horas da madrugada, precisamos impedir a turma do tudo ou nada. A que transforma ladrão em prisioneiro, roubo em companheiro e que contrata incendiário como bombeiro. Estão por toda parte essa gente. Se sentem cada dia mais à vontade, têm argumentos razoáveis e expõem números, crescimentos, estatísticas. Repetem frases místicas como jamais perder a ternura, mesmo tendo que apoiar ditaduras. Que os deuses nos protejam, que pelo menos nos vejam e nos salvem de enchentes, da falta de água, do inverno rigoroso, do verão arrasador, do prazer, da dor, da copa, da falta de sopa, da crise do pão. Os comedores da esperança têm uma fome que impressiona. Nos olham em 3D com seus óculos escurecidos e seu apetite enfurecido é multinacional. Mas não nos venceram antes, não venceram hoje e não vencerão depois. Mesmo que seja preciso enfrentar os todos os textos do Bial, a programação global, o Gugú, os programas religiosos, a reprise dos trapalhões, o super cine, as ilusões, não importa. Ainda vamos aprender (ainda que da forma mais dura), que o Brasil não é só um PIB, a soma das coisas que somos capazes de produzir. Precisamos compreender que somos a soma das coisas que não queremos mais, para sempre ou para nunca mais. Que fomos, somos e seremos as escolhas que fazemos, as pessoas que elegemos, tudo o que sonhamos e o que somos capazes de despertar. Talvez a gente esteja à deriva, andando em círculos, procurando à esmo. Mas não esqueça: a vida reserva as melhores surpresas para cada pessoa e cada povo que não abre mão de si mesmo.