Cuido de um menino que mora na rua da minha vida, perambulando entre a praça e o colégio. Corre nas vielas, morrinhos e riachos de um bairro lá longe. Espiando jogos no campinho ao lado da igreja com tijolos à vista, o garoto vive aos pulos como todo moleque. É craque. É piloto de Fórmula 1. Canta na TV. Inventa aviões e trajetos mágicos. Cowboy, xerife, espião e lavador de cavalos de corrida, o moleque também é campeão estadual de corrida de costas e mecânico oficial da Ximbica, um velho Jipe DKW que mora na garagem de um lugar distante.
O
visito às vezes e conversamos nos shows onde é astro. Ou no vestiário do Inter,
onde joga. Ouço suas entrevistas na Rádio Lua Nova, em exclusivas para o repórter
Porter. Participo das suas rodas de conversa sobre a vida, seres intraterrenos,
técnicas avançadas de suspiros, soluços e outros sentimentos invisíveis aos
naturais da Terra, esse planeta onde viaja inspirado pelas curvas do sol, essa
massa dirigida por almas enluaradas.
Volta
e meia, preciso vê-lo por uns dias e quando nos encontramos, é tempo de festa. Tagarela,
a criança que cuido gosta de melancia, manga e sorvete de flocos. Anda descalça,
calção azul e usa uma camiseta branca surrada, onde é possível ver o símbolo de
um colégio esquecido, onde a Professora Rosana lecionava letras.
O
meninote dorme no andar de cima de uma nuvem chamada beliche, que flutua perto
de uma escotilha de um navio que não está mais lá. Como também se foi a árvore
que dava uvas do Japão, de onde se podia ver o sol da Escandinávia e acenar
para os dançarinos mirins bolivianos. São espetáculos sem hora de início. Acontecem
entre espreguiços, bocejos e chás de hortelã, a marca do destilado mais forte
desse espaço nascido antes que surja o amanhã.
O
piazinho é bom de conversa e anda lépido entre artistas, malandros e outros
tipos em desalinho. Daria bom publicitário, ou filósofo, escritor ou algumas dessas
coisas que exigem certo angustiamento e poder de síntese.
Não
me preocupa quando ou como vou até ele. Acessá-lo é fácil, e sempre sou
bem-vindo em suas histórias cheias de fogões a lenha, fumaça na chaminé, cães
vira-latas, gente paraguaia, guarânias, vanerões, Beatles, riachos e
estradinhas sem asfalto. É onde a chuva flerta com o tempo e produz um aroma
inesquecível: o cheiro de terra molhada.
Seu
gosto é o oposto aos cigarros de cravo, música sertaneja, batidão, cachorro em
shopping, bolsas falsas, carros rebaixados, bicicletas com som, gente que diz “me
passa um zap zap”, motoristas que ligam o pisca alerta e dão o assunto por
encerrado, além dos gremistas, que sempre torcem para o Inter errado. Por isso,
quando ele vem, fico atento. É sinal de alerta as lembranças que traz na parte traseira
da velha bicicleta dourada. Surge quando lhe roubam a crença na inocência, somem
com a graça do pega-pega ou no instante em que os laços que nos unem são
colocados em perigo. Nesses momentos extraordinários, o pequeno me convida para
soltar pipa, dormir no quintal ou a fazer parte do clube interplanetário dos
andadores de patinete. É quando penso sobre de onde vim, onde estou e para onde
vou, as perguntas clássicas da Filô. Não há respostas prontas, nem rápidas, nem
mágicas. É o instante encantado de um encontro comigo mesmo. Procuro viver de
um jeito que este momento seja pleno, rico e poderoso o bastante para que o garoto
que vive comigo esteja à salvo do perigo de uma vida sem o prazer do amor consciência,
sem a confiança no amor resistência e sem a persistência do amor presença.
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