Prece

Que o deserto não me desertifique. Nem o mar me afogue. Aos contrários, ofereço me transformar em utilidade real. Que o silêncio não me cale. Que meu verbo crie. Ao caminhar, que ignore os atalhos fúteis e as inutilidades, mesmo (ou principalmente) as que considere importantes. Que meu tempo seja agora. Nem mais, nem menos, que certezas não me enganem e o inexato me receba sempre ao assimétrico da vida. Que não me iludam nem mudança nem movimento. Que eu não confunda uma e outra coisa ou tente usa-las em proveitos sonsos. Que a lucidez não me transtorne. Que o amar não me entristeça, nem o amor me pertença. Ao conhecimento, entrego o que trago de curioso ou belo. Que o outro me importe. Que eu me sinta parte, mesmo quando não faça. Que eu seja o que vim fazer. E que, desconhecendo o destino, que não esqueça a origem. Que pergunte a quem sabe, entendendo que todas as respostas também estão em mim, mas não apenas ali. Que eu frutifique as terras, mesmo as distantes e desconhecidas. Que inspire as inférteis com presença e punhados de água. Que meus argumentos não sejam punhais, nem arma a serviço da farsa. Que me baste ser e estar e que nem seja ou esteja entre os apontados por desumanidades. Que a riqueza não me impressione, pelo menos não a ponto de pertencer a isso. Que a pobreza não me use, pelo menos não a ponto de me socorrer disso. Que eu não espalhe medo ou finja afetos. Que aprenda a nadar e a não fazer nada, aquietando o que me acelera. Que receba tarefas e as execute com talento de amador. Que seja uma boa lembrança a minha passagem. Uma recordação que desperte algum riso. Uma ameaça aos covardes de toda a natureza. Que minha vida e minha vinda seja um aviso sobre os campos abertos para a felicidade. Que eu não volte ao pó, nem seja sal da terra, coisas incompreensíveis. Que eu seja dito. E que tenha feito tudo e qualquer coisa à minha imagem e semelhança. E havendo Deus, ele me diga “filho, que orgulho”. Que não havendo, meu pai sinta isso. E minha mãe e irmãos. E tu, a que amo tanto. Que meu viver seja terno, carinhoso, musical. Que possa escrever às vezes. Bilhetes a toa, rotinas da família, um gato que mia, um cão que uiva, pós de estrelas, fatos do dia e os segundos que nos presentearam. Que te conhecer seja permanente ato de reconhecer o talento, o colo, a nau frágil, os naufrágios, as rupturas, os elementos em atuação, a sintonia com a beleza, o sempre, o instante, a alegria, o ato de criação, o encontro atômico, a explosão transformada em portal, a fissão expandindo energia, o big bang, o lugar no cosmos e o azul. Que eu esteja à altura do que vivo. Que seja delicioso lembrar. Que seja emocionante reviver.