Deve existir (ou deveria) existir uma porta no tempo onde está escrito “entre sem bater”. Ela dá acesso à Sala dos Esquecimentos, uma espécie de achados e perdidos da memória. A única condição para pertencerem à esse lugar é que os objetos, sensações, sentimentos, frases, qualquer coisa que seja viva, tenham sido levados

até ali pelas mãos da inocência. Depois que chegam e se acostumam com a luz em penumbra, passeiam por esse espaço não linear, contanto uns para os outros as suas jornadas, às vezes se consolando. Noutras, simplesmente escutando.
Não são histórias editáveis, como no mundo denso dos corpos, onde a vida é dublada, os diálogos são falas que vivem de aparências e mesmo as recordações se maquiam antes de entrar em cena. Entendo que posso pensar nisso motivado por mágoas, ego ou síndrome de abstinência. Sem problemas: reconheço que julgo decisões que me excluíram, ainda que saiba que todas as escolhas são legítimas, que não há peso absoluto, que definir é descartar todo o restante. Penso que um lugar pode ser lindo quando se está degredado. Ainda assim, mesmo que exuberante, é um exílio. Pronto, civilidade restaurada.
Na Sala dos Esquecimentos lembranças verdadeiras perdem a pressa, vivem fora do perigo da inexistência, da aceitação do menos, estão à salvo de silêncios cortantes, de febres estranhas, de queimaduras no deserto a que foram expostas. Mesmo que tenham sido tratados como inapropriados, inconvenientes, errados, feios ou inviáveis, tudo que existe na Sala dos Esquecimentos tem a alma das lembranças puras. O nome do lugar não esse porque vivem ali as coisas vivas que merecem permanecer existentes, mas lhes foi negado isso. Chama-se Sala dos Esquecimentos porque é onde esquecerão suas machucaduras, eliminações, desaparecimentos e abandonos. Um dia, quando prontos e restaurados dessas dores, reencarnam sob o anonimato do acaso, um acho que te conheço, uma pergunta sobre ilhas, esbarrões que dão início a uma conversa, presentes fora de hora, aromas, interesses, trocas, encontros, intensidades, admiração, amizade, confiança, cores, planos, sonhos, afetos, vocação, escolhas. Serão queridas de uma forma tão intensa que se tornarão escolhidas como valor, identidade ou propósito.
Quase tudo da minha arquitetura pessoal veio abaixo nos últimos tempos. Perdi referências importantes, gente que se foi. Projetos, planos e sonhos essenciais não encontram a terra prometida, tudo com minha assinatura, autorização e autoria. Não trato disso aqui para qualquer ação de consolo, coisa que de fato não quero. Primeiro porque não há consolo. Depois porque não há vítimas, nem o caminho fácil do vitimismo. Finalmente, porque se abriu uma cratera tão grande em mim que mais parece um leito de rio, um caminho aberto à força. Encontro, entre surpreso e assustado, um pedaço de uma casa com janela azul e lugar especial para leitura. Há livros espalhados em cima de uma poltrona de couro que parecia ser bem aconchegante. Cartões de embarque para viagens diversas. Certificados de cursos. Agendas de compromissos em comum. Resumos de anotações sobre filmes e séries, entendimento de livros, trechos de entrevistas, podcasts. Encontrei um quadro todo branco, simbolizando o futuro em construção. Restos de bilhetes. Tateio, entre insensibilizado e confuso, o semblante de estátuas aos cães que mais amei. Choro meus mortos e me conforto sem me conformar. Contorno escombros e quase tudo é automático, do acordar ao acordar, entre tantos desacordos. No entanto, estou aqui, vivo e apto. Algo pulsa e não é o coração, nem começará aqui um texto motivacional. O que acontece é de outra monta, outra natureza, outra coisa. Não se trata de otimismo ou esperança, é diverso disso. Tem sons, são músicas conhecidas, minha play list. São perguntas como já disse hoje? São sinais asterísticos, calendários próprios, textos do Mãe, mãos bailarinas, cheiro de terra molhada, parque das águas, bosque do Papa, abraços, pedaços de riso, gozo multiplicado, Natal fora de hora, entendimento, é tudo muito misturado, tudo muito real, tudo muito inocente. É quando durmo que encontro esse portal. Há uma porta de cores fortes, entre azul e amarelo, onde está escrito “entre sem bater”. Eu não bato e entro. E fico ali, conversando com as lembranças que vivem na Sala dos Esquecimentos. ***