Admirável mundo velho

mariel fernandes.releituras.alma enluardada
O carteiro gritava o nome das pessoas, fulano! E andava ruas e ruas gritando nomes, crianças o cercavam. Ele andava com um maço imenso de cartas, postais, avisos, emoções escritas à mão, algumas perfumadas. Um batalhão de coisas precisa acontecer para você receber uma carta, havia um ritual a ser superado entre suas idas e vindas, o que lhe conferia graça e aura. Nada é tão especial quanto o mistério e o tempo que leva para ser descrito.
O torcedor comemorava o nome do ídolo. Fulano joga tudo! E no próximo ano, ele estaria ali, correndo pelo seu time. Não por outras cores, mas aquelas de sempre, fulano era nosso ou deles. Não se amava dois escudos, não sem enfrentar o desprezo infinito e a vaia eterna, lembrando sempre a falta cometida. Nada é tão eletrizante nem tão manipulado quanto a fidelidade coletiva.
O professor dizia “ele veio de São Paulo”. Fulano era paulista! E todos o olhavam como se a cidade ficasse do lado direito de Marte e ele próprio tivesse oito olhos. Ser de um lugar que não o nosso, o de sempre, o mesmo lugarejo, da vila de todos, era em si só uma aventura cercada de lendas, admiração e uma certa dose de mentiras. Nada é tão longe quanto o que não conhecemos.
Os amigos cochichavam “fulano tem um Kichute”. Fulano é rico! E todos ficavam alucinados com as voltas imensas que o cadarço exigia, as travas de segurança no solado, a cor preta do produto e o sorriso vencedor do seu proprietário. Não chuteiras de várias cores, nem marcas piscantes em neon, não. Um Kichute era um marco social. Nada como a ignorância para manter certas inocências.
Todos comentavam que os fulanos estavam separados. E já não haveria lugar na igreja para ele e – principalmente – para ela. Ser divorciado era ser transformado em uma pessoa-bomba, um monstro do lago, o Sacy Pererê, um perigo para lares bem formados. E os filhos, a família, tudo desapareceria no inferno para onde Deus nos mandaria em caso de separação.  Nada como moral e bons costumes para comemorar bodas de infelicidade.
Quando penso no passado, lembro de praças com campinhos de futebol, ninguém praticava outra coisa. Recordo telegramas (uma espécie de Twitter impresso). Revivo, mas não o quero de volta, mesmo remodelado feito o New Beatle. Estive lá, vivi o melhor que pude, me transformei no que existo hoje. Olho pra trás e cumprimento o caminhante que fui e a coragem com que foi em direção a si mesmo. Entre a chegada há tanto tempo e a partida sem tempo definido (mesmo depois do susto), há o espaço do meio. Intenso, imenso, cheio. Nada como o amor do sempre para nos guiar entre o ser e o estar.