
A gente não se conhece. Podemos nos gostar, nos admirar por feitos ou desafetos, nos amar por encanto ou conveniência, mas conhecer alguém? Isso é quase impossível, somos outros o tempo todo. Reencarnamos diariamente nas células, emoções, pele, cabelo, sinapses, neuropercepç˜ões, reações. Isso junto com opiniões, alvoroços e, claro, os outros que somos ou que seremos.
Depois que volto de uma pedalada não sou mais o mesmo. O projeto aprovado causa metamorfoses. A saudade martiriza e você nem sempre quer partir para o sacrifício. A decepção nos modifica, você torna-se alguém que sofreu por alguma coisa. Qualquer elemento mutante (são milhões por segundo) nos reduz ou agiganta e, acima de tudo, muda. Sentimos raiva ou prazer. Temos desesperanças ou acreditamos que dessa vez, vai. Ao cabo disso, seremos nós, modificados por nós e outros tantos. Seremos outros, entretanto. Entre tantos, seremos outros. Não irreconhecíveis, não chega a esse espaço. Pelo contrário, parecemos os mesmos. Mas estamos levemente tocados, trocados, outros.
Temos demandas diferentes, mesmo quando olhamos para o mesmo ponto. É que somos outros. Somos outras vozes, focos outros, outros que se vão e outros que silenciam. Somos recheados de experiências cuja maior consequência é modificar os corpos e as almas dos quais somos feitos. Por isso, estar ao lado de alguém ou participar de algo é uma escolha diária. Não há decisão fácil, não sabemos nada do outro, o outro é o inesperado no escuro. Por isso é indispensável reconhecer as mudanças ocorridas os seremos inexistências ao lado de inexistentes. Ignorar isso é condenar o outro (e a nós mesmos) ao exílio daquilo que se é. Os grandes silêncios, são justificáveis para um, mas talvez. E não para um outro, por certo. Quem se rasga silenciando não é o mesmo que fica exposto ao silenciado. Os dois sofrerão pela mesma coisa, mas por outros motivos. Serão outros nessa jornada. Um pelo que perde. Outro pelo que não ganha. Todos pela despedida que ocorrerá se não se apercebemos disso.
A vida nos remodela. Medos nos reestruturam. O amor nos renova. Mas ao te olhar hoje, és tu hoje. Ontem eras outro ser, uma vivência que nem existe mais no tempo, ele mesmo o cerne das variações percebidas ou ignoradas, porque todas são vistas. És tu agora, viajante daquilo que te importa. O que há são esses momentos breves, moldados pelos nossos encontros, cada qual inédito em sua profundidade e protagonista nos afetos que nos convertem em outros o tempo todo.
Poupar. Planejar. Precaver. Prevenir. A pretenciosa segurança que essas escolhas nos trazem é frágil. Não digo que não se deve fazer essas coisas, já que se deve. Mas também é necessário entender que é tudo por um triz, a poupança é confiscada. Já não aconteceu?. ´Basta um vírus e pluft, adeus planos, bem-vindos a novos destinos. Num zapt, lá se vai a precaução junto com uma chuva, um raio, um carro que anda rápido, uma pedra cai, um vento sopra, mudanças não pedem licença. Mudança é a vida se regeneranço e, às vezes, balança forte. Num zip, olha o inesperado do amor, da compaixão, do acolhimento, do riso que nos muda e do abraço que nos recebe.
Distraídos pela sensação de consistência que a rotina oferece mas não entrega, fingimos que não vemos que ela própria é formada por novidades compactadas umas nas outras. É prazer novinho em folha que é ver uma árvore dando folhas laranjas. Mudam a si mesmas e mudam os olhares que atraem, mudando quem vê. . Acontece com um segundo a mais que se mantenha na visão entre amantes. O pão de queijo daquela hora. O café naquele momento. A solução inédita. A demonstração nesse instante. A declaração ao vivo dos afetos e dos seres afetados. Só há isso para oferecer. Não havendo, não há nada para resistirmos ao desconhecimento dos conhecidos que nos cercam e que desconhecemos por completo.
Não é que você não me conheça. É que você não conhece ninguém. E que, basicamente, tudo que respira não sabe de quem somos e porque corremos o risco de dar a mão ao desconhecido. Esse é o milagre que existe entre nós, o eterno novo e o perene das infinitas novidades. Lutamos com força contra o que nos modifica, e tudo nos transforma em uma escala estupenda. Então temos que encarar que não conseguimos desvendar o outro. Que só podemos aceita-lo, sendo o outro o que é, o antigo do que segue adiante do Nando Reis. A mudança vencerá porque o contrário disso é a inaniç˜ão das águas paradas: não saciam, qualquer que seja a sede. O bom dia que você dá hoje é completamente diverso do oferecido ontem. O tom. A intenção. A energia. O corpo. A expressão. A forma e, dentro dela, a alma. Mudou quem disse. Quem escuta é outro. Para seguir amando ou seguir adiante, será preciso aceitar que momento a momento o desconhecimento. Assim, viver é será um apresentar-se sempre, sem medo de nós, nem de sermos outros. ***