Entre

Na esquina de todas as ruas que vivo, há um artista que tece presentes improváveis. Um pacote de suspiros, uma lata de vontades, várias duchas de água fria, um pé de alegria, todo tipo de prece pra qualquer desejo pendente.

Entre em portas entalhadas por mãos habilidosas ou pelo tempo que as torna hábeis e estarás de frente pra todas as ruas onde piso descalço. Ali lembro de ti se faz sol ou quando chove um pouco, bem mirrado, um trapo de água doce, um naco fino de uma noite aguada, um veio dos diamantes azuis e seus brilhos silenciosos.

Já disse hoje? Já dei sinais, acendi fogueiras e subi na arvinha que a gente tem. O certo é que estou ali, onde parece que adormeço mas o que faço é vigiar a noite para alma que amo encontre o sol, brinque na rua e se quiser dormir, esteja tudo bem.

Bom findi

Você consegue ler “Toda Vida Daria um Filme” ?

Meu sono só não é maior do que minha vontade de dormir. Foi uma semana boa, dessas em que se levanta às 6 e só bem tarde mister Morfeu vem falar com a gente. Definitivamente, não estou ficando mais jovem, me contaram com riqueza de detalhes os últimos 7 dias de jobs intensos.

Quando pequeno, imaginava que viveria até os 50 e há 5 anos, quase acertei a previsão. Não vejo porque arriscar um novo palpite, nem motivo recusar os mimos que o tempo me traz, ainda que saber o que significa mimos revele o tanto que já percorri. Mesmo assim, é estranho estar prestes a pagar meia entrada no cinema, ter direito à vagas especiais nos estacionamentos da cidade e a preferência no atendimento em lugares públicos.

Às vezes não encontro o que gostaria. Então sigo pra outro tempo, como quem garimpa a preciosidade da vida, decifrando suas respostas rápidas, que (imagino) sejam as possíveis ou disponíveis. Ainda assim, valem o passeio e aquecem os joelhos, ao mesmo tempo em que me acostumo ser chamado de senhor com mais frequência. Que a sabedoria seja enluarada e feita de serenar profundo e sonhos se espreguiçando.

O presente de hoje é uma estrelinha que Vitor Ramil criou pra nos lembrar o silêncio bonito das noites. E que Milton canta confirmando o tom suave dos dias.

Hakuna

Soprada entre dentes, a história flui rio à dentro, noite à flora e fala na alma das matas. Escuta, apalpa, olha que água sonora, que brisa, que Nala, que coisa, que sonho sussurrado onde quer que a brisa brise. Olha que coisa, Mufasa. A sala, o quarto, a paisagem, o mato, tudo insiste e quando menos se espera, existe. Saboreia a lembrança nascente, a semente lançada e aceita na terra pronta a semeadura de sentir-se amada. Cheira o aroma, Scarbi porque Scar não te pega. Nem Shenzi aguenta Simão e a delícia de Hakuna Matata. Toca o teu sonho no colorido de Zazu e seus tons de azul até que amanheçam junto com o sol. É assim que Simba vem e cresce nas frestas da floresta, nas brechas da inocência, onde pulsa o puro e a pureza, a natureza, a beleza e tudo que transforma o real.

O presente de hoje são as vozes da floresta e a alegria da bicharada.


Sobre o real

Se alguém me perguntasse sobre a matéria-prima da imaginação ou do fato, diria que não são forças separadas. Pontes, livros, amantes, sinos, igrejas, milagres, filmes, alianças, crenças, canetas, esperanças, relógios, canções e luares, tudo depende de sonhos e o poder transformador dos seus olhares. Se alguém me dissesse que vem para entender suas dúvidas, alegrias ou tristezas, discordaria. Acho que viemos confirmar nossas certezas.

Tempo

Te escrevo do lado de dentro da saudade, onde Maria Bethânia (cuja voz é uma reza em todas as línguas) me canta Oração ao Tempo. Acho que um timbre desses deveria ser mantido ao alcance das crianças, receber uma medalha de honra ao mérito, ganhar roupa de domingo ou todas as opções anteriores.

Oração ao Tempo é um passeio, sabe? Acontece de mãos dadas com a alegria e o dia passa brincalhão e de bom humor, num azul que não deixa dúvida: Deus é uruguaio. Desses que é 31 do mês e a gente acha uma nota de cem dentro de um casaco antigo. Ainda sim, foi preciso visitar o lado de dentro da saudade e, daqui, escrever pra você.

Na sua Oração ao Tempo, Caetano pede “o prazer legítimo e o movimento preciso, quando o tempo for propício”. É um pedido gigantão, algo parecido com um “me vê um pouco de amor correspondido, um punhado de infinito e capricha na porção extra de sabedoria”. Tudo isso pra viagem, claro. Porque prazer legítimo é o afeto plenamente expressado. Movimento preciso é seguir na direção do acolhimento que tudo que é vivo merece. E tempo propício é a esperança disfarçada de discernimento. Essas bandas dificilmente tocam juntas, não achas? Se a resposta for sim, chegaríamos a um lugar onde ninguém é forasteiro, banido ou abandonado. Afinal, ao nosso lado estaria um compositor de destinos, algo inventivo e possivelmente contínuo, como o bom Veloso deliciosamente descreve a passagem de tudo. Se a resposta for não, talvez isso explique a atração que temos pelo eterno e o medo que alimentamos por tudo que a gente possa mesmo sentir falta. E essa tentativa de tirar a gradiência da vida que transforma em mistério cinza tudo que é, simplesmente, colorido e brando. Gosto de uma  frase do meu amigo curitibano Solda, um cartunista dos bons. Uma vez ele me disse algo que resume o espírito das almas felizes, leves e suspirantes: “para viver e desenhar, é preciso correr os riscos”.

Caetano deixa claro que uma vez atendido na prece que faz ao tempo, seu espírito poderá conquistar um “brilho definido” para, em troca, “espalhar benefícios”. Sendo mesmo realizado, é um gesto que engrandece a raça, já que um tal brilho teria como benefício espalhado o encontro entre a capacidade do amar com a felicidade de ser amado. Se é possível? Sei que se fosse fácil não precisaríamos de uma oração, precisaríamos?

O ponto é que adoraria te abraçar sem prazo pra desabraçar. Longe do tempo, à salvo de todo tipo de pra sempre e dentro de todos os nossos portais. É assim que passo os dias: prestando atenção no que me dizes nesse tempo em que não estás. Não pensa que me passa desapercebida a tua presença. É sempre um presente quando podes vir ao canto de cá da gente. Caetano conta que “quando tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido”. Queria que soubesses que sigo experimentando esse algo que nos expande, nos acolhe e nos compreende. É o que me faz entender que serei e que seguirei pertencendo e pertencido.

Sobre as estações

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Quando nasce uma estação é um acontecimento, um vão, um momento, uma celebração, é gol do Flamengo. Ficamos sabendo não exatamente quando a vida ressurge ou renasce, porque isso acontece um instante antes do fato ser percebido. É lenta a volta de um náufrago que honre seu acidente. Uma primavera leva tempo até que certos aromas fiquem claros, até que os dias fiquem mais longos e -em alguns casos, mais claros. Se entendi algo nas estações e nos sofrimentos é que são isso, uma coisa e outra, outra coisa e uma, anti-horários, um não calendário ou -como diria Veríssimo, o Tempo e o Vento. Então, nada mais havendo, acontece de você olhar longe e isso fazendo ver horizontes quando ninguém mais está vendo. Talvez seja miragem, náufragos precisam de algumas. Mas se não forem, encha o peito, grite com o mar e deixe que a primavera chegue. É o que as primaveras fazem: chegar.

O fim das coisas

As coisas acabam. Há, parece, um objetivo nisso, talvez a vinda de novas coisas que acabam. Jamais acreditei nas coisas que acabam e  trazem consigo novas coisas que acabam. Nisso sou um seguidor de Mikhail Lomonosov. Ele sacou que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Quem entendeu a importância da descoberta foi Lavoisier. Portanto, há quem tenha a informação e aqueles que transformam isso em conhecimento. Concordo se você disser que devo me sentir só por crer nas coisas que não acabam. Faço isso, mas com um data vênia: jamais quis lhe convencer a acreditar nas coisas que não acabam. Na maior parte do tempo e mesmo nesse exato momento, qual é o fim das coisas que acabam? Elas deixam de existir quando acabam ou se transformam, as reciclamos enquanto buscamos informações surpreendentes no Google? Outro dia vi num programa de TV que cientistas finalmente descobriram uma pírula. Não é, ainda, a da eterna juventude. Por agora apenas retarda o envelhecimento, engana as células, ilude o célebro, permite que sigamos vivos (não obrigatoriamente altivos) até uns 120 anos. Perguntaram ao Niemayer se ele tomaria a pírula da juventude eterna. Hum?, perguntou. Já não ouve bem o velho arquiteto. Tenho dúvidas se algum dia escutou alguém, teimoso que é. Sei que defendeu com unhas e dentes seu conceito de forma e função. Projetou mundo à fora obras que são uma poesia aos olhos, apesar de vocação pouca para uso diário. Arcado (mas não triste) diante da passagem que se avizinha, o bom comunista declarou que não tomaria a pírula da juventude. O que ele não disse é  mais revelador, trata-se de uma pergunta. Se as coisas acabam, ser eternamente jovem pra que? Visitamos os monumentos, as quedas d’água, as ilhas gregas, os túmulos dos faraós e as pirâmides. Vamos a Machu Pichu, andamos pelos Caminhos de Santiago, Niágara, Capela Sistina, gostamos de nos mover entre as coisas que resistem por sabemos que resistentes ou não, as coisas acabam. O fim das coisas, desde o início das coisas, é que cada coisa tem um fim. O fim das coisas que acabam talvez seja a de nos chamar atenção para o que há de perene, interminável, eterno. Um solo de fagote, um foguete que deixando o solo revela a sede de companhia que temos, tanto que procuramos vida em outros lugares. De tanto que nos sentimos sós, temerosos de detectar em nós o gem das coisas que acabam. E tremendo, tomamos drinks inusitados, fugindo do velho futuro para fingir num passado novinho em folha. Há milhares de anos, os Sufis falavam de um Deus presença, um Ser para o qual não havia distâncias. Que vivíamos em vãos da nossa própria história. Que insistíamos em existir em sótãos, fazendo a partir daquilo nossa ideia de casa. As coisas acabam por serem coisas, seu fim é dar passagem a mais coisas que acabam. Mas você não é uma reunião caótica de átomos, células, pele, osso e algum recheio. Entre o pouco que vemos e a maior parte que ignoramos, há algo no meio. Não o paraíso culpado, apostólico e romano. Não a desistência covarde dos suicidas, nem a vida conformada das manadas. É o nosso encontro com o outro, essa batucada universal de sons, luzes e danças. Não é um terremoto. É o povo sobrevivente do Haiti cantando em honra aos seus mortos. Há em ti algo que toca a canção essencial, algo que te chama sempre, uma chama que mais do que aquecer, te aproxima desse espaço que é feliz por nos ver contentes. Quando Deus disse “faça-se a luz”, Ele não falava para as coisas que acabam. Ele falava da gente.