Há Deus

Há Deus

sobre fins

sobre fins

Homens, ao mar

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Todo marujo que se preza  sabe que não se reza por terra à vista. Corsários ou capitães da esquadra inglesa têm um inimigo comum: a vontade de aportar, lançar cordas, ancorar. Pra eles, voltar pra casa é alto mar, portos são um desvio. Um lobo do mar não se forma em águas rasas, precisa conhecer a força dos repuxos, os humores das correntes submarinas, a mistura perigosa entre sol e sal, a imensidão oceânica e a impressionante falta de esquinas. Um bom marinheiro não espera que suas viagens sejam feitas de sonhos, vento sempre à favor e primaveras azuladas. São inevitáveis as cicatrizes, as tempestades, a inspiração de sagres e as lutas inesquecíveis com os deuses de todos os mares.  Só então, depois de  rufados os tambores, Tufão separa entre os lutadores os melhores. É assim que os deixa singrar suas dores e contar histórias sobre tesouros escondidos em ilhas inacessíveis aos conformados de água doce. Nenhuma sorte aos resignados, aos sepultados em si mesmos, aos que vivem à esmo do que sentem. Abandonados, náufragos, solitários, renegados, perdedores, esquecidos, perdidos, ressentidos, sem pátria, exilados, enganados, estejam certos quanto aos mapas, rotas, guias e todo tipo de instrumento disponível à navegação. Serão imprecisos, mas fundamentais. Farão surgir histórias de conquistas e aventuras, ventos e vendavais. Soltar amarras, içar velas, enfrentar o medo e deixar o cais. Lá vamos nós, tripulação improvável de um tempo formidável, capaz de enfrentar os elementos, os transformando em um tremendo instante, transatlânticos sonhos, plenos de descobertas, muito além das ilhas desertas, um lugar nosso, nele não seremos intrusos. Enquanto ele não chega, homens, aos mar. Homens, ao mar, marujos.

Palavras de lua cheia

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Essa mania escrita, a palavra dita um terno falar sobre o eterno que passa, isso me acalma enquanto desoriento as palavras. Penso um tanto nos tantos desencontros e nos desencantos que trazem consigo. Há dias esperando um bilhete, há horas aguardando mensagens, anos de aguardente, anos de guardanapos, bilhetes pra si mesmo, flores em seu nome, lembretes. Essa mania de manter a palavra alerta, o verbo atendo, a espinha reta, um treino cotidiano de não curvar-se, isso ainda me acorda toda noite, o peito ensopado, o coração ofegante, são palavras não ditas, engasgadas, impedem a passagem do ar, entopem as veias, o coração bate mas estranha a cadência, bate outra vez, tudo está por um triz, um por cento, um aprendiz, uma cena feliz, um beijo, um gol do inter, o encontro das coisas, a resposta do amor, o mar da tranquilidade lunar, a lida que tudo é lavra, o peito aberto, a lua, a terra, a vida e suas palavras.

Medo

O maior segredo do medo é que ele não serve pra nada. Se alimenta de sombra e de criaturas da areia, lendas contadas sob luzez de lanterna e barracas improvisadas.

[ O maior segredo do me

do é que ele não serve pra nada. Se alimenta de sombras e de criaturas da areia, lendas contadas sob luze de lanterna e barracas improvisadas ]

Olhos arregalados, respiração suspensa, coração parado. E assim, congelados de medos, ouvimos melodias descompassadas, correntes se arrastam na parte de cima da casa, as janelas batem e o vento é gelado. Tenho medo de cavalos, são bichos grandes. Manadas de elefantes e de rinocerontes, além de todos os outros mastodontes. Cobras não gosto. Baratas me causam asco, o mesmo acontece com ratos. Mas medo de Saci Pererê, como ter? O carinha possui uma perna só e ainda por cima fuma. E mula sem cabeça, coitada? Deve se bater tanto entre as árvores enquanto corre de madrugada. Fantasma da meia noite, que emprego medonho. Assusta quem nesse horário de sonhos?

Tenho medos mais concretos, como receber uma ligação de alguém que trabalhe com marketing direto. Medo não me tira o sono, a não ser que me sinta em estado de abandono. Medo é um cão cego te servindo de guia, serventia zero, proteção nenhuma, morderá a mão que lhe pede orientação. Ter medo é pedir companhia para a solidão.

Tive medo de água por um longo tempo. Disso o afeto me curou. Ainda exige um esforço de confiança pegar a barca que une dois pedaços de terra repartidos pelo mar. Vou de olhos fechados, como se assim não houvesse um oceano abaixo de mim. Pensando bem, vivemos a milhares de quilômetros por hora, confiando num piloto automático, um maestro invisível. Ultrapassamos asteróides, dependemos de humores solares, ninguém nunca sabe quando haverá um terremoto, um mar revolto, se vai chover e por quanto tempo. – É o El Ninho, dizem os cientistas. Não quero saber quem é, quero saber porque. Acontece isso em função do encontro das águas calmas com correntes mais nervosas e quentes. Se sabem tanto, por que não avisam dias antes?  O ponto é que vivemos cercados de perigos e nós mesmos (como raça) não somos exatamente um bando de escoteiros. Os bichos preguiça, as tartarugas do casco mole, a flora de um modo geral e os pobres de um modo particular que o digam.

Atacamos tanto pelos medos que temos. E tememos até as coisas que sabemos que vai acontecer, as controláveis. Você já reparou que dizemos “se eu morrer”? Como “se”? Não há cláusula nesse contrato. Vamos bater as botas, falar com Deus, ouvir o chefe, jogar no Santos, ver a grama pela raiz, ir dessa pra melhor, subir um andar, falar com as almas. Há milhares de escapismos para morte, menos não morrer. Não há condicional. No entanto, batemos 3 vezes na madeira sempre que o assunto surge. Talvez não seja da idade, da morte ou das perdas que tenhamos medo de fato. Possivelmente nos apavore mais do que assombração é o aparente descontrole disso. Um cara legal morre e o Maluf lá, firme. Qual é o critério? Talvez os fantasmas de uma vida medíocre sejam os verdadeiros motivadores desse pavor coletivo por tantas coisas.

Catalogamos medos, dando a isso o nome de “Síndrome”. E se conseguimos  catalogar de algum modo a desorientação geral, pronto, ufa, melhor assim. Quando alguém não se sente seguro nem dentro dele mesmo, chamamos isso de “Síndrome do Pânico” e estamos conversados. O problema é que não estamos conversados. O problema é justo esse: não temos conversado. O problema é exatamente aqui: não se conversa sobre isso, nem sobre aquilo, nem sobre coisa alguma. Terapia não é conversa. Análise não é falar. Nesses casos, estamos relatando nossas milhares de solidões a técnicos essenciais ao mundo contemporâneo. Falo de conversa, esse gesto em que alguém escuta como que enxergando a alma do outro. Falo de diálogo, esse momento em que o entendimento não depende de lingua, linguagem, idioma, mensagem, é apenas e tão somente entendimento. O silêncio entre partes pode estar cheio de verbetes, repleto de palavras, coberto de breus e julgamentos. Trocar frases e conversar são coisas completamente diferentes. Um espaço de conversa é a única forma de blindar relacionamentos, ligações, sentimentos.

É preciso sempre dizer o mais próximo de tudo que se tem a dizer de bom a alguém. Acredito que precisamos ser lembrados disso. Do quanto somos amados, queridos, bem-vindos, amigos, bacanas ou, sei lá, limpinhos. Não precisa ser toda hora, mas não pode ser um evento raro. Tenha medo de  tornar-se seco, durão ou invencível. De acreditar na desconfiança permanente como forma de vida, de preparar-se mais do que o necessário para qualquer atividade. Ninguém deveria ser impermeável às emoções sagradas do amor em suas manifestações diversas. Nem imaginar que esse sentimento é perfeição acima de tudo. O amor não é perfeito, apenas vê perfeitamente tudo e todos sob a lente da felicidade. Quem não ama pode ter medo do mar. Quem ama, anda sob as águas. De barco, com colete, mas anda. Parece estranho falar de amor e medo na mesma conversa. Talvez não seja. Talvez o medo básico seja o de não existir amor legítmo ou seguro o bastante. E que entre amar ou ter medo, a gente prefira o segundo, já que é mais conhecido. Isso é como escolher ser assaltado sempre pelo mesmo bandido.

E se por um instante pleno de nós mesmos abrirmos mão dos medos, uivos, grunidos, histórias apavorantes, criadas por criaturas de um mundo triste? Não sei de você, mas acho o amor e a janela duas grandes descobertas. Mas se precisar escolher, deixe a alma aberta.

Fosse você um trailler, que filme você seria?

Its all, pessoal

Tem gente que não gosta, acho que a maioria. Eu adoro traillers, aqueles resumos do argumento geral, as cenas importantes, falas hilárias ou sérias que dão o tom do todo. Procuro chegar antes para ver o que andam preparando para colocar em cartaz. A voz profunda do locutor dizendo “um filme que você não pode perder”. Perco a maioria, mas se algum daqueles instantes que antecedem o filme me interessam, estou fisgado. Fico de olho para saber quando o “em breve” chegou e finalmente é possível ver a projeção completa, sem cortes, edição definitiva. Dizem que há um filminho que passa quando a pessoa está prestes a morrer. Se é verdade não sei, morrer parece que é o que acontece na última sessão e eu vou protelando a exibição enquanto posso. A declaração-padrão é algo como “passaram todas as coisas que fiz na vida naqueles segundos em que achei que morreria”. É um trailler ao contrário. Primeiro você vive “todas as coisas” e todo mundo vê. Depois vem a edição dos melhores momentos. E só você assiste. Ou seja: justo as imagens selecionadas, com seu perfil mais favorável, ações elogiáveis e sentimentos estupendos, justo isso é mostrado para quem já sabe o enredo todo e só desconhecia o final. Tem gente que é um filme chato, interminável. Você acha que chegou o fim e então aparece a plaquinha de “seis meses depois…”. Outros são rápidos demais, quase um vídeo clip e quando você começa a entender o argumento daquela vida, The End. Há quem goste de ser uma continuação. Repetem o cenas do pai, refazem as falas da mãe, reprisam os gestos da família, usando sempre a mesma trilha e o enquadramento geral. Remakes, originais, previsíveis, geniais, adoramos filmes porque normalmente a vida ali tem 20 minutos de tempo ruim e no fim aparecem os créditos, nunca os débitos. Depois, como em Um Lugar Chamado Notting Hill, você pode se dar bem com a Júlia Roberts, mesmo que seu nome seja Hugh Grant. Em Casablanca, o Rick  abre  mão do amor da sua vida, age como se isso não fosse o fim do mundo e ainda por cima consegue dizer adeus com um “sempre teremos Paris” para ninguém menos que a Ingrid Bergman. Eu choraria o resto dessa vida e mais duas reencarnações, balbuciando “fica, fica”. É a desvantagem de ser um filme nacional. Homens e mulheres podem ser uma película de terror, contar histórias de encontro ou simplesmente se comportarem como coadjuvantes numa história maior. Seja qual for a nossa opção (é uma opção), fomos criados para nos transformar em sucesso mundial, com diálogos incríveis, cenas hilariantes, risos, lágrimas e muitas passagens de tempo. O fantástico é que ao contrário dos atores, nosso maior risco é interpretar um personagem, acreditando em ficção, decorando falas, desenvolvendo técnicas, expressões, vivendo num cenário. Ao contrário do cinema, temos um orçamento reduzido, não podemos editar nossos dias e o roteiro muda a todo momento sem maiores avisos. De repente, o tempo grita “corta” e faremos companhia para outros títulos na prateleira. É quando faz toda a diferença ter sido o mais humano possível, o mais leal à ideia central da nossa trama. Podemos ter uma existência cult, cabeça, alternativa, dramática, romântica ou cheia de aventura, nos transformando em clássicos. Melhor não correr o risco de ouvir o locutor anunciar isso sobre nós:  “perca, não é lá essas coisas”.