
Para andar, bike
Para torcer, inter
Para viver, muque
Para matar, fome
Para esquentar, pé
Para olhar, filhos
Para leite, sucrilhos
Para sonho, coragem
Para inverno, lã
Para espirro, saúde
Para canções, alaúde
Para amaciar, doce
Para amar, você.
Que o deserto não me desertifique. Nem o mar me afogue. Aos contrários, ofereço me transformar em utilidade real. Que o silêncio não me cale. Que meu verbo crie. Ao caminhar, que ignore os atalhos fúteis e as inutilidades, mesmo (ou principalmente) as que considere importantes. Que meu tempo seja agora. Nem mais, nem menos, que certezas não me enganem e o inexato me receba sempre ao assimétrico da vida. Que não me iludam nem mudança nem movimento. Que eu não confunda uma e outra coisa ou tente usa-las em proveitos sonsos. Que a lucidez não me transtorne. Que o amar não me entristeça, nem o amor me pertença. Ao conhecimento, entrego o que trago de curioso ou belo. Que o outro me importe. Que eu me sinta parte, mesmo quando não faça. Que eu seja o que vim fazer. E que, desconhecendo o destino, que não esqueça a origem. Que pergunte a quem sabe, entendendo que todas as respostas também estão em mim, mas não apenas ali. Que eu frutifique as terras, mesmo as distantes e desconhecidas. Que inspire as inférteis com presença e punhados de água. Que meus argumentos não sejam punhais, nem arma a serviço da farsa. Que me baste ser e estar e que nem seja ou esteja entre os apontados por desumanidades. Que a riqueza não me impressione, pelo menos não a ponto de pertencer a isso. Que a pobreza não me use, pelo menos não a ponto de me socorrer disso. Que eu não espalhe medo ou finja afetos. Que aprenda a nadar e a não fazer nada, aquietando o que me acelera. Que receba tarefas e as execute com talento de amador. Que seja uma boa lembrança a minha passagem. Uma recordação que desperte algum riso. Uma ameaça aos covardes de toda a natureza. Que minha vida e minha vinda seja um aviso sobre os campos abertos para a felicidade. Que eu não volte ao pó, nem seja sal da terra, coisas incompreensíveis. Que eu seja dito. E que tenha feito tudo e qualquer coisa à minha imagem e semelhança. E havendo Deus, ele me diga “filho, que orgulho”. Que não havendo, meu pai sinta isso. E minha mãe e irmãos. E tu, a que amo tanto. Que meu viver seja terno, carinhoso, musical. Que possa escrever às vezes. Bilhetes a toa, rotinas da família, um gato que mia, um cão que uiva, pós de estrelas, fatos do dia e os segundos que nos presentearam. Que te conhecer seja permanente ato de reconhecer o talento, o colo, a nau frágil, os naufrágios, as rupturas, os elementos em atuação, a sintonia com a beleza, o sempre, o instante, a alegria, o ato de criação, o encontro atômico, a explosão transformada em portal, a fissão expandindo energia, o big bang, o lugar no cosmos e o azul. Que eu esteja à altura do que vivo. Que seja delicioso lembrar. Que seja emocionante reviver.
Todo mundo é ao contrário, feito ao avesso, uma distopia, de ponta cabeça, diferentão, tem outro por dentro. Falamos sobre isso, encontramos um ponto, o elo perdido entre o que vemos e o que achamos que entendemos. Passamos desapercebidos e talvez os que se amem se olhem e ao se olharem, se tornem melhores. Quem sabe por isso se chame encontro. Ficamos melhores quando nos encontramos. Ganha-se um poder, acho. Entendemos outra lingua, tateamos outro corpo, criamos um idioma, definimos sinais. Só se pode gostar de alguém havendo alguém ali. Pai, mãe, tio, prima, marido, um amigo chamado Olavo. Uma pessoa que não sei. Alma que não sabemos nem nunca estaremos no lugar, um espaço dela, dele, esse outro que coletivizamos, coletamos, reduzimos e julgamos. É um outro de conveniência, o outro que precisamos. O de verdade é o que é, tem marido, meia, barriga, mulher. Negocia com o Itau, torce para o Santos, conhece São Sebastião do Caí. Reconhecer o outro é inevitável, porque somos o tempo todo outro. Anjos tortos. Santos do Pau Oco, Mayas, miragens, vertigens, dotes. Ao olhar para você enxergo outro ou uma projeção entristecida do que não sou capaz de ser. Essa é a essência de um julgamento: eu sei, tenho certezas. E você? é um outro que não sabe, um rosto, um fato de estimação, ação indevida, opinião contrária, audácia vivida, fraqueza a corrigir. Admiro isso em você, que vê no outro o que ele traz, o que foi capaz, a história escondida, a curiosidade estendida, tapete macio onde o outro se deita e descansa de um dia longo e cheio. Me enriquece isso em você, me torna maior, resgata o humano, essa ideia maluca que à medida que cresce, nos torna únicos e lindamente desiguais.
A Invenção de Hugo Cabret é um filme que não vi, baseado num livro que não li e que alguém fez o favor de me guiar em direção ao mundo civilizado, me apresentando à obra. Quem me conhece, sabe que leio de tudo. Bula de remédio, folheto de imobiliária, Bíblia, Cartas ao Amor Distante, Gibis, (adoro Asterix, por exemplo. Mafalda, quem não?), livros, livros, livros, manuais, dicionários, avisos em elevador, jornais, revistas, livrões, leituras me encantam. Entrar em território desconhecido como a Invenção de Hugo Cabret, não tenho dúvida: será estar um pouco conectado a um espaço portal, onde o tempo não importa e sim o fato de alguém ter estado ali ou ali permanece. Sem precisar pensar muito, me dou conta que te conto como quem conversa tudo o que se passa comigo. Não sei se percebes citações, declarações, convites, há muita possibilidade interpretativa em silêncios alongados, como aqueles ruídos da estática, comuns nas transmissões dos rádios amadores e “amadores” foi uma insinuação luxuosa. Ainda assim, junto aqui e ali um sinal e faço disso um pedaço de lembrança, um círculo de confiança, um anel, uma aliança e sigo deixando meus rastros pelos caminhos onde passo. São dias felizes, não há dúvida e (espero), aproveitados com a alegria de quem semeia, de quem pedala, de quem escreve e de quem conhece (ou quer conhecer) belezas como A Invenção de Hugo Cabret. Como sempre, farei isso um tanto com você e repartindo com quem me lê um pouco das delícias que vivo. Aceita um domingo amarelo de sol? Queres um texto de Drummond ? Abre um portal? Quem sabe caminhamos descalços no quintal? Talvez a gente acorde mais felizes de manhã. O que quer aconteça, será bom de ver, de ouvir ou de contar, tirando o fato de não haver qualquer lembrança de muros. Imagina a vista, querida, imagina a vista.
O presente de hoje é declamado por Roberto Carlos, direto de Drummond.